Um produto que a Alalc não negocia: cultura

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Uma Alalc cultural?

Grosseiramente, sim, poderíamos descrever esse primeiro encontro entre professores brasileiros e hispano-americanos encerrado na semana passada em Campinas, organizado pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), como uma Associação Latino-Americana de Livre Comércio Cultural.

Já que no plano econômico, social e político a América Latina se vê compelida a manter um urgente e crescente intercâmbio de produtos agrícolas e industriais, que englobam desde o vinho chileno até o eletrodoméstico brasileiro comprado por ondas de turistas argentinos que vêm ao Brasil atualmente, por que não incluir a literatura e, mais abrangentemente, a cultura da América Latina nesse bloco comum que vemos se formar diariamente quando vamos ao supermercado ou quando constatamos , de Fortaleza até Porto Alegre essa “invasão” pacífica de cerca de 300.000 turistas argentinos, uruguaios e outros? Por que não incluir na bagagem dos viajantes brasileiros que visitam Buenos Aires um livro de Borges ou Cortázar e na dos nossos vizinhos um livro de Clarice Lispector ou Guimarães Rosa?

O problema, como ficou imediatamente delineado no primeiro dia do Seminário, é que somos e não somos idênticos: brasileiros e hispano-americanos temos problemas e situações similares e opostas ao mesmo tempo. A Grande Pátria Maior, sonhada pelo Gran Libertador venezuelano, Simón Bolívar, na realidade tem uma complexa multiplicidade de rostos simultaneamente, alguns parecidos, outros totalmente diferentes entre si. A integração, se for possível, terá que ser feita seguindo o motto dos Estados Unidos, também formado por regiões e etnias diversas e às vezes diametralmente opostas umas às outras: Et pluribus unum, ou seja, da pluralidade obter-se a unidade.

Os dois professores estrangeiros convidados que ladeavam o professor Antônio Cândido, presidente da mesa, abordaram já desde suas primeiras frases a dificuldade da tarefa a ser empreendida no plano cultural. Lembrei-me do postulado do grande historiador deste século, Arnold Toynbee, que depois de estudar profundamente mais de 40 civilizações diferentes especificou, em conclusão: cada época apresenta a uma civilização um desafio específico e se ela não souber lhe dar uma resposta adequada estará fadada a desaparecer.

Vindo da mais antiga universidade da América do Sul, senão das Américas, a Universidad de San Marcos, de Lima, fundada em 1551, o professor peruano Antonio Cornejo Polar, com seu tipo andino autóctone, contrastava etnicamente com o professor brasileiro e seu colega uruguaio, Ángel Rama. Esta diferença superficial revelaria, porém, divergências mais profundas em cada um dos três encontros da Unicamp. Tentaram-se aproximações genéricas: todos os países latino-americanos sofreram o domínio brutal dos dois países ibéricos que os colonizaram nas duas áreas linguísticas: a Espanha e Portugal impuseram a todos os povos e culturas ao sul dos Estados Unidos a dominação do espanhol e do português como forma de aglutinar homogeneamente as culturas indígenas, africanas, asiáticas, impondo como padrão a Europa, a tecnologia, a raça branca, uma abordagem utilitarista e individual em contraste palpável com a complexidade e multiplicidade de civilizações e culturas que já existiam antes da descoberta da América por Colombo e antes da vinda de milhões de africanos trazidos para cá como escravos.

Embora ninguém, no decurso do Seminário, mencionasse o autor uruguaio Eduardo Galeano, estava subjacente aos debates e exposições um único tema em comum: a catástrofe da destruição das culturas maia, asteca, inca e outras e sua consequente pilhagem de riquezas, não só pela Espanha e Portugal, mas, mais tarde, pela Inglaterra, como Galeano consignou apaixonada e documentadamente em seu trágico e veemente livro As Veias Abertas da América Latina. Hoje em dia, a dominação é plural ainda: os Estados Unidos sufocam até a língua portuguesa que falamos todos os dias, com centenas de palavras em inglês, do topless até joint ventures; o Japão, a Alemanha, a Suiça, a França etc., despojam os países saqueados, devastando florestas no Amazonas, poluindo cidades, rios e mares, enquanto em Cuba, nas palavras destemidas do maior ensaísta da América Espanhola, o grande poeta cosmopolita Octavio Paz, a ilha se vira transformada, contra a vontade de seu povo, “de um bordel norte-americano em um quartel soviético”.

Antônio Cândido introduziu a primeira tese de fino humor, ao explicar que em todos os congressos internacionais de que participara fora do Brasil reconhecera que o espanhol é uma língua universal (aliás uma das cinco usadas pela ONU) enquanto lhe recomendavam que não falasse em português, pois é uma língua que não existe. Como superar as barreiras históricas de países de línguas gêmeas que se dão as costas e só agora começam a reagir aos Estados Unidos, que lhes impõem padrões ou rígidos ou violadores da identidade específica latino-americana? Em primeiro lugar, advertiu o professor da USP, era preciso estarmos atentos para um fenômeno de que talvez não estivéssemos tão conscientes: o próprio Brasil com sua vastidão territorial, sofreu, no discurso de sua História, numerosas revoluções separatistas. Se o Brasil não tivesse mantido a sua unidade política como Estado, hoje Santa Catarina seria uma República Juliana, depois São Paulo seria a República do Piratininga, haveria no Nordeste uma República do Equador, no Rio Grande do Sul uma do Piratini etc.

Chamou a atenção para outro fenômeno: a elite cultural brasileira conhece incomparavelmente mais e melhor os grandes escritores hispano-americanos, como o mexicano Juan Rulfo, os argentinos Jorge Luís Borges, Julio Cortázar e Manuel Puig, do que os nossos vizinhos conhecem a literatura brasileira em seus momentos universais. Cortázar, por exemplo, confessara-lhe que da literatura brasileira só conhecia um episódio: o de porcos que devoram crianças em Canaã, Borges admirava Os Sertões, de Euclides da Cunha. Em contraste flagrante, já antes da Semana de 22, o modernista Mário de Andrade lia regularmente literatura hispano-americana através de livros e revistas; o erudito ensaísta gaúcho Augusto Meyer conhecia Borges; Brito Broca, Alexandre Eulálio, Haroldo de Campos, ele próprio, Antônio Cândido e eu estávamos todos em diversos graus a par da grande literatura que vai do Rio de La Plata até o México de Arreola, Carlos Fuentes, Rulfo e Octavio Paz. Essa longa tradição da crítica brasileira, sublinhou Antônio Cândido, parecia-lhe um dos traços característicos da solidez da visão da história literária do Brasil que já vinha desde Veríssimo, Sylvio Romero, Araripe Jr. – e que não exista na América Hispânica, onde “se mostrava menor mediata a percepção de como passavam as tochas de um autor a outro, com mesclas estilísticas e culturais dependentes do Capitalismo, mas com atrasos de época” como, por exemplo, tanto o Brasil quanto os hispano-americanos importando movimentos do romantismo ao parnasianismo, do surrealismo ao naturalismo.

O professor convidado daquele primeiro dia das “Jornadas”, David Arrigucci, autor de O Escorpião Encalacrado, aludiu também, a essa dependência latino-americana de matrizes europeias e, recentemente, norte-americanas também. Modestamente, considerou-se um “amador em matéria de literatura latino-americana em sua parte escrita em espanhol”. Ela o interessara, porém, por motivo de ordem política: durante o auge da repressão da Censura no Brasil, “de 1960 a 1970, tínhamos uma literatura de resistência” e aludiu à escritora Lygia Fagundes Telles, presente ao conclave, a Autran Dourado e Osman Lins, entre outros, como integrantes dessa resistência. Explicou, porém, que seu interesse pelos livros de um Cortázar, para citar apenas um escritor vizinho, decorria da abertura para o imaginário” que os grandes autores davam a um Brasil temporária, mas ferreamente fechado pela Censura draconiana então existente. Com pleno acerto, destacou a grandeza de Juan Rulfo, o deslumbrante contista e romancista de obra exígua, mas que influiu até em um compositor maior da música popular brasileira, como Chico Buarque de Holanda, inspirado no mestre mexicano para adaptar Tomala e termonou destacando que Borges lhe parecia maior do que Cortázar como escritor e que Gabriel Garcia Márquez, na sua opinião, era um equívoco literário, ambas observações lucidíssimas. A literatura deste continente que se fazia fora do Brasil lhe pareceu, na época que precedeu a atual abertura política, uma forma de escapar “rumo ao Belo e ao Arricado”.

Ángel Rama foi explícito ao constatar que nunca se produzira uma integração das literaturas latino-americanas anteriormente e que paralelamente se consolidaram dois fenômenos históricos diferentes: enquanto o Brasil se solidificava em uma só vasta Nação, a Hispano-América se fragmentava em 20 ou mais Nações – “foi a balcanização política do nosso Continente”. Em seguida destacou que, nascidas de revoluções, as pátrias latino-americanas davam à sua propalada vocação de integração meramente, um sentido retórico. Hoje, contudo, para sobrevivermos é forçoso que nos integremos e nos comuniquemos, vivendo na era eletrônica de instantânea transmissão das informações por satélites abarcando toda a Terra. Impressionou-o o fato de o decantado boom da grande literatura latino-americana ter nascido na Europa ou/e nos Estados Unidos, portanto, fora do ambiente geográfico do qual ela se origina. No entanto, dava importância à coincidência de, apesar da dependência dos países latino-americanos, das colônias, de matrizes europeias, ter surgido em países que não se comunicavam naquela época e se desconheciam mutuamente, como o México e o Brasil, “um movimento simultâneo de Arcádias literárias suculentas com seus pastores e apaixonados”, criando uma literatura fora das Academias vetustas de Madrid e Lisboa, das quais as colônias americanas tinham sido alijadas. Nos últimos 30 anos, a comunicação se tornara um fenômeno planetário e a América Latina, que fora repartida seguindo fronteiras nacionais impostas de forma inteiramente arbitrária pelos colonizadores, de forma análoga à da divisão da África pelas potências imperialistas, hoje se comunicava e precisava urgentemente comunicar-se para sobreviver.

Não obstante, o que quer dizer América Latina? perguntou Ángel Rama. É “uma definição infausta, pois ficam fora dela as culturas indígenas autóctones e as culturas africanas importadas”. O que é Literatura? “A concepção sacralizada da Literatura que se tinha tradicionalmente já é algo do passado” e é tarefa nossa recuperar as literaturas não só integrando nesse conceito, segundo Foucault, a literatura de cordel do Nordeste como o desenho original de nossos países que foi desfigurado e que devemos recuperar e reivindicar.

Austero, conciso, quase solene, o professor Cornejo, do Peru, lançou como que uma bomba-relógio no Seminário: o tema daquele primeiro dia de debates era “Integração e/ou marginalidade da Literatura Brasileira no conjunto das literaturas latino-americanas”. Ora, se há uma só literatura brasileira e uma única literatura hispano-americana, é de fundamental importância não nos abstrairmos dessa interrogação e reconhecermos, logo de início, que há várias literaturas brasileiras e várias hispano-americanas simultaneamente e sequencialmente. O que – perguntou de forma explícita – existe de mais heterogêneo do que a literatura indígena andina e a que se faz do Rio de la Plata ou entre a novela do Nordeste e a poesia concreta do Rio e de São Paulo? Deus a preeminência a fatores políticos, sociais e econômicos de atraso da América Latina que proveem da sua História e pairam acima dos fatores culturais e literários, já que as literaturas latino-americanas são o resultado de formações sociais de atraso, de predominância da vida rural pré-capitalista. A seu ver, era decisivo examinarmos o fenômeno literário e cultural continental a partir do tipo de organização e dominação sociais, portanto, a crítica e a teoria literárias sozinhas não resolveriam nunca essa problemática e precisavam pedir socorro às ciências sociais, pois só por meio de um enfoque interdisciplinar poderíamos obter uma imagem mais fiel da nossa literatura e da nossa cultura em toda a sua multiplicidade e diversidade.

Encerrada a jornada com uma exposição impromptu de Ángel Rama, que fulgura e magnetiza a plateia, e com intervenções de Hilda Hilst e Lygia Fagundes Telles contra uma visão apenas política da literatura (Hilda Hilst: “Todo ato, será preciso repeti-lo?, é intrínseca e inelutavelmente político. Se eu defecar aqui neste recinto agora será um ato político”), o segundo encontro, um dia depois, me pareceu o mais profícuo dos três, o mais equilibrado, o menos inflamado e por isso mesmo o mais sumarento pelo que dele restou. Em sua exposição, o professor argentino convidado, Ángel Nuñez começou dando ênfase à compartimentação das literaturas latino-americanas não só dentro de um país como de um país a outro. “Em Buenos Aires não consigo comprar livros publicados em Lima”, exemplificou. Par em seguida destacar o conflito entre as técnicas expressivas diferentes mesmo dentro das mesmas fronteiras nacionais: de um lado uma literatura popular, de outro a da elite, mas são culturas estanques, que não se comunicam e não se fecundam mutuamente, pelo menos até agora. Foi adiante: o Martin Fierro é recusado, ignorado e negado pela cultura oficial argentina. Além desse preconceito cultural, há deformações ideológicas que marginalizam certas formas de expressão literária ou cultural, além das deformações que o mercado comercial, por parte das editoras, já por si impõe. No entanto, a ‘balcanização’ a que se fizera referência anteriormente não anulara certos centros geográficos regionais de cultura comum: o Rio Grande do Sul, a Argentina e o Uruguai, por exemplo, participavam da mesma literatura regional homogêssnea. “Os critérios políticos apriorísticos, em última instância, trazem o perigo mecanicista capaz de deformar a realidade”. Concluiu salientando que havia traços comuns identificáveis entre as literaturas criadas no exílio imposto pela política dominante, daí resultando uma literatura que dá seu testemunho de uma situação totalitária. Mas, frequentemente, se trata de uma literatura jornalística, não se sabendo ainda se ela permanecerá ou se ela tem apenas um valor documental passageiro.

O professor Cornejo falou em seguida, aprofundando a questão das categorias de literaturas que coexistem no espaço e no tempo, às vezes sem nenhum contato, mesmo dentro de uma só Nação, as camadas sociais, culturais, econômicas etc., incapazes de comunicar-se ou entender-se entre si. Assim como há dentro de uma única literatura rotulada de “nacional” a diversidade de sistemas rurais pré-capitalistas, feudais, ao lado de regiões já capitalistas, há igualmente uma diversidade profunda de idioma numa mesma nação. “Aqui temos falado apenas de duas línguas (o espanhol e o português), mas que papel desempenham então as outras culturas, mas nativas, como a cultura quéchua, aymará, guarani e outras? Esse é um erro cometido pela crítica latino-americana; o de negar estas literaturas, de classificá-las de ‘pré-históricas’ quando elas não morreram, depois da Conquista e da colonização, elas continuam vigorosas, como então são rotuladas de ‘marginais’?! Esse erro torna-se escandaloso no Peru, no Equador e na Bolívia: só é considerada literatura nacional aquela escrita em espanhol, esquecendo-nos de que à margem dela continuam as literaturas aymará e quéchua”. E convocou os antropólogos, os linguistas e os sociólogos a colaborarem na recuperação e no reconhecimento pleno dessas manifestações culturais paralelas e riquíssimas. Citou exemplos específicos irretorquíveis: no Peru, Mario Vargas-Llosa escreve La Ciudad y los Perros ou La Casa Verde ao mesmo tempo em que prossegue a tradição ininterrupta dos relatos orais, sem que haja qualquer comunicação entre o texto de Vargas-Llosa e estes. Ampliou o problema para áreas geo-culturais além do seu país:

A literatura gauchesca do Rio de la Plata, marginalizada, embora neste caso não haja a cisão de idiomas diferentes, pois é escrita em espanhol, apesar de considerado um espanhol popular, inculto, rural;

A poesia de négritude, que ele chamou de “negrista” do Caribe;

A literatura indigenista andina e a do México e da Guatemala (creio que o professor Cornejo pensava especificamente no texto esplêndido do Popol Vuh da Guatemala e no romance do guatemalteco Miguel Ángel Asturias, autor também de El Señor Presidente, Prêmio Nobel de Literatura em 1967 Hombres de Maiz (Os Homens de Milho) que recupera as culturas maias em oposição à dominação dos EUA na região;

O real-maravilhoso de um Alejo Carpentier, por exemplo, que demonstra esta pluralidade de concepções do mundo e, portanto, essa diversidade simultânea de literaturas e expressões culturais. Referiu-se a um personagem de Carpentier que ao mesmo tempo morreu e não morreu (provavelmente queria referir-se a El Reino de este Mundo?): para os colonizadores ele está morto, para os negros, não. São, consequentemente, duas visões opostas e simultâneas do mundo. Nomeou também o prosador peruano Arguedas e sua vinculação com a cultura autóctone do Peru em oposição à literatura urbana e espanholizante. Arguedas transforma a estrutura do romance com elementos provindos da música indígena, visões do mundo que vem de outro universo filosófico incorporado à literatura ocidental dominante. Abre um campo novo de experimentação e mantém a diversidade através de uma transculturação.

Mesmo sem seu ímpeto verbal fulgurante do encontro inaugural, Ángel Rama trouxe novas contribuições às premissas assinaladas por Cornejo. Distinguiu dois eixos sincrônicos nas imbricações entre Literatura e História: existem áreas horizontais e estratos sociais que se engrenam uns com os outros, dentro de um pluriclassismo dinâmico. Deu um exemplo concreto: na Colômbia (onde talvez se cultive o espanhol mais castiço e puro das Américas), os que nasceram, foram criados e vivem na capital, Bogotá, são apelidados cachaços. Usam terno e gravata, são tradicionalistas, conservadores e nunca “desceriam” até o que consideram “baixo”: os valores culturais do negro que povoa a região costeira do Norte da Colômbia, assumidos por Gabriel Garcia Márquez. Rapidamente, citou ainda, no Brasil, Ariano Suassuna em contraste com a literatura urbana, e aludiu à pluralidade entre as preferências de cada segmento social, afirmando que pertencer a um estrato, a uma classe social, é aderir a um conceito de cultura. Há, concomitantemente, quem prefira as telenovelas, outros gostam de filmes de protesto político, ou fitas norte-americanas de faroeste ou de violência, espionagem, crime – e há os que elegem o diretor sueco Ingmar Bergman como o gênio cinematográfico, com Gritos e Sussuros.

Sem saber, Rama concordava com o pensamento da eminente arquiteta brasileira Lina Bo Bardi (que criou, entre outras obras importantíssimas, o Museu de Arte de São Paulo e o hoje destruído Solar da União, em Salvador, na Bahia) ao declarar que não existem mais folclores puros: o folclore hoje é mera congelação do passado, porque a contaminação da urbanização e outros valores alheios à autenticidade do folclore o relegou a um estado rígido de cristalização. “Não existe literatura sem ideologia, a literatura não se reduz à ideologia apenas, mas se faz dentro de uma ideologia”. Concluiu, encerrando o segundo dia do Seminário, chamando a atenção para o impacto da era moderna nas comunicações: no século XIX, cabos submarinos unem o Rio de Janeiro e Buenos Aires com a Europa, o jornalismo, o livre acesso à informação, as viagens resolvem o problema da comunicação com os centros europeus culturalmente dominantes. Este processo se acelera: o rádio na década de 50, a tv na de 60 tornam a estratificação imposta pelo Estado homogeneizante mais rígida e a mobilidade social menos possível, tese, na minha opinião, muito discutível.

O professor brasileiro convidado, Norman Potter, abriu o terceiro e último encontro ressaltando que era a primeira vez que vemos colegas hispano-americanos no Brasil dialogando conosco: “É mais fácil encontrarmos Jorge Luís Borges no Texas do que em Buenos Aires.” Indagou: o batidíssimo boom da literatura norte-americana na Europa e nos Estados Unidos, ao criar um público ledor importante para esses escritores de sucesso de crítica e de mercado, não terá influído na própria criação literária? Não há, sobretudo nos Estados Unidos, um vasto número de professores universitários que se digladiam, uns recusando o boom porque veem nele apenas o aspecto comercial do business que impõe o best seller e o lucro, mas raramente a qualidade, outros fazendo do boom a base de suas mercenárias e florescentes carreiras acadêmicas?

Mário de Andrade, revelou o professor Potter, antevira problemas e situações que só hoje emergem plenamente nessa imbricação entre Literatura e seu uso para fins comerciais de outros que não os do autor. “Procurando traduções de Mário de Andrade nos Estados Unidos, eu vi em cartas dele que já em 1930 ele exigia 50% dos direitos autorais e de filmagem eventual de qualquer de suas obras.” Finalizou sua contribuição apontando para outros fatores de distorção da Literatura: “além do critério do lucro comercial a ser extraído dela: sendo nós todos professores, não estaremos dando à Literatura um sentido pedagógico? Nos Estados Unidos, por exemplo, os alunos estão mais preocupados, quando estudam a literatura latino-americana, em ressaltar e aprofundar o exame de seus aspectos formais, com influências marcantes do new criticismo (nova crítica, introduzida no Brasil predominantemente por Afrânio Coutinho) de Wellek e Warren, do close reading etc. Depois, na França, e logo no Brasil, tivemos o modismo do estruturalismo – tudo isso tira a Literatura do seu contexto literário e histórico elementar. Em 1957, quando estive na Alemanha, deparei com uma atitude remanescente do século XVII: lá se fala da nossa literatura como de Überseeliteratur, (isto é a literatura além-mar), como na França se fala do mesmo tema como sendo a literatura de là-bas, a literatura que está lá embaixo. Ora, tudo isso pressupõe a arrogância etnocêntrica europeia, a arrogância do homem branco que se crê”superior aos povos das Américas, da África e da Ásia, numa atitude tão obsoleta que está, culturalmente, numa fase anterior ao próprio Capitalismo, aquém dele.”

Aí o professor peruano Cornejo tomou a palavra para indagar: como se desenvolve uma reflexão sobre a crítica literária? Esse é o “problema que vertebra y organiza todas las críticas literárias latino-americanas”. Essas fontes, na sua opinião, seriam duas:

A reflexão te uma dinâmica própria, quase científica, de proceder a retificações de problemas e de abrir novos campos ou examinar os novos campos que a Literatura abriu para si e para a crítica. Aí existiria uma relativa autonomia da crítica literária.

O aparecimento de uma grande obra literária acarreta uma mudança na própria crítica. Há, por exemplo, uma crítica antes e outra depois do Ulysses, de Joyce. Como se coloca esse problema na relação entre Literatura e crítica literária na América Latina? perguntou.

Prosseguiu realçando a dinâmica excessivamente dependente das matrizes europeias e norte-americanas no campo da crítica literária latino-americana, o que implica uma relação quebrada com a própria Literatura e dando dois exemplos:

A crítica literária latino-americana importou a noção de genre ou gênero literário, que é uma noção que não se aplica a toda a literatura no Novo Mundo latino. O Facundo, por exemplo, não se enquadra em nenhum gênero e querer enquadrá-lo seria violentar um texto que na verdade é muitas outras coisas além do gênero. Por conseguinte, a crítica literária, ao não consultar a sua própria Literatura, leva a resultados errôneos e tergiversa a realidade da nossa literatura.

Aqui se falou muito de estratificação, de literatura imediatista jornalística, testemunha da sua época, mas não se consultou a multiplicidade de movimentos e estratos sincrônicos. Por exemplo: o romantismo na Argentina e no Peru foi um movimento heterogêneo, deixando claro que, formalmente, a Sociedade e a Literatura são opostas. Continuamos a aceitar valores e conceitos que não são os nossos: até quando vamos continuar assim? Entre a excessiva subjugação a critérios de fora e o perigo igualmente estéril de um regionalismo ou nacionalismo xenófobos, que levam fatalmente a um provincianismo literário, como nos colocarmos diante dessa dialética da nossa História latino-americana?

Ángel Rama não tardou em intervir: “Sinto terror pelo terrorismo crítico: quem quer que seja que não tenha aplicado as teorias marxistas ou estruturalistas de Jakobson é automaticamente um obsoleto execrável etc., como se fôssemos importais e não devêssemos errar nunca. Mas a minha criação religiosa me faz, ao contrário, crer é nesta carne viva, permanente. Como no poema de Rubén Dario:”Livrai-nos, Senhor, das Academias literárias!“. Em lembrou um poema de Carlos Drummond de Andrade que igualmente dizia, com referência jocosa e irônica ao excesso de jargão tirado da linguística, mais ou menos:”Livrai-nos, Senhor, dos fonemas e morfemas!” Demonstrou o temor de que matérias alheias à Literatura pudessem matar a beleza e nos deixar com saudades do Belo que havia originariamente nela. Achou “enfadonhos” os sociólogos e questionou o valor final de uma interpretação algébrica do texto literário, utilizando-se a matemática da linguística ou os dogmas da psicologia: tudo é símbolo fálico ou de neurose etc. “O que resta então da beleza da Literatura quando terminaram tais exegeses? Hoje é de rigueur sermos engajados politicamente, mas eu sinto saudades daquela liberdade caótica de antes da linguística, da sociologia, de Freud, Marx, Lévi-Strauss etc. etc. A Arte não está contida em nenhuma receita apriorística, já pronta; não. A Arte tem paradoxos intrínsecos e um caos implícito indecifráveis.” Lembrou a posição do ensaísta alemão Walter Benjamin diante da obra pictórica de Klee, para acrescentar que a crítica e a obra de arte se defrontam em um saboroso corpo-a-corpo de conhecimentos e desconhecimentos mútuos. Em contraposição ao conceito grego de daimon, que Sócrates definia como sendo a busca do artista de encontrar seu semelhante, o espírito moderno postula, ao contrário, que “je suis l’autre” (“eu sou o outro”). Desde Cervantes, pelo menos, existe o “curioso impertinente”, é o crítico que quer pôr tudo à prova, o que é perigoso porque na Arte tudo pode ser ao mesmo tempo, essa busca do outro (la búsqueda de la alteridade) é que nos permite reintegrar-nos na humanidade por meio das obras de Arte.

Seguiu-se uma deliciosa escaramuça entre o professor Carlos Vogt, do Departamento de Linguística da Unicamp, e o coordenador do encontro, o professor Antônio Cândido e que este resumiu concisamente, pedindo desculpas por exorbitar de suas funções e falar, função que não é, normalmente, a de um coordenador, sendo-lhe até mesmo tacitamente vetada. “O Carlos Vogt, está fazendo uma provocação tão escandalosa que eu não resisto, pois ele está propondo justamente uma pesquisa para averiguar em que medida a linguística e a teoria literária podem colaborar. Como, então, uma não tem importância para a outra?! O Vogt está preocupado com certos exageros de teorias linguísticas recentes, mas todo o progresso da teoria literária moderna está ligado à linguística. Totalmente. Se eu pego por exemplo a linguística spitzeriana (do ensaísta alemão Leo Spitzer), que é fundamental para a crítica moderna, vejo a busca do traço literário por meio da intuição que permite, depois, extrapolar numa visão genérica muito arbitrária, mas que é feita com uma rigorosa análise linguística.” Depois fez referências várias à chamada “estilística positiva” da Suiça, que tem resultados dos mais importantes, a distinção entre um estrato estético e um estrutural que pressupõe uma sensibilidade e uma capacidade de análise linguística e à Escola de Praga, em torno de Karovsky e principalmente aos formalistas russos, que revolucionaram a teoria literária a partir da linguística e, como o Carlos Vogt, quer que se estude a possibilidade de uma união entre a linguística e a teoria literária. Eu acho que eu sempre soube que ele estava fazendo esse paradoxo para chegar a essa conclusão, ele quer uma relação adequada, justa, entre teoria literária e linguística. Mas dizer, como ele disse, que as relações entre elas são catastróficas para ambas, eu tomo isso como uma boutade, pois o progresso da teoria literária se deve à fecundação nela por parte da linguística”.

Carlos Vogt revidou, mas como não havia tempo para essa polêmica que Antônio Cândido chamou de “problema pessoal” entre ele e seu contentor, e que durava há quase 20 anos, da mesma forma, não há espaço aqui para transcrever todos os lances desse duelo que foi transferido para uma conversa a dois. O público riu gostosamente quando Antônio Cândido declarou que Carlos Vogt não trouxera da França o cumprimento da missão sagrada de que fora incumbido, o de trazer de volta a unidade operacional da teoria literária que seria o literaturema.

Daí por diante, na minha opinião, o último encontro das “Jornadas de Literaturas Latino-Americanas” passou a ter um enfoque excessivamente, abusivamente político. Antônio Cândido, como fiel da balança, foi fecunda e etimologicamente o autêntico e justo mediador entre os dois campos de batalha que se abriram. Observou judiciosamente que Ernst Jünger é um grande escritor, apesar de ter aderido ao nazismo. Documentou o sectarismo deformante do grande crítico marxista húngaro Luckacs, “que ao estudar os grandes romancistas distorceu a realidade e deu relevo a Galsworthy na literatura inglesa e a Romain Rolland na francesa, ignorando Joyce e Proust”. O absurdo de tal posicionamento pusilânime ou fanático não precisa ser ressaltado, a meu ver, mas mesmo assim eu pedi a palavra, naquele conclave democrático, fruto da abertura política recente, depois das trevas totais do governo Médici e sua Censura castradora. Lembrei que já se insistia tanto na palavra “dominação estrangeira” e “exploração” dos povos e dos direitos humanos de nós todos, infelizes latino-americanos manipulados hoje pelo capitalismo norte-americano, japonês ou europeu ocidental, por que não falarmos também da nova “dominação estrangeira”, da nova “exploração” dos povos e dos direitos humanos que a União Soviética impunha e impõe crescentemente a Cuba, à cultura cubana e à literatura cubana desde a tomada do poder por Fidel Castro? Citei o magnífico ensaísta e poeta mexicano, Octavio Paz, que teve a coragem de denunciar que “Cuba se transformara de um bordel norte-americano, antes de Fidel Castro, num quartel soviético, agora, com Fidel Castro no poder”. Recordei que Cuba, exatamente como o resto da América Latina, tinha já seus mártires, como Hubert Matos, seus escritores no exílio como Cabrera Infante. Por que ver apenas um lado da questão e não os dois? No que fui apoiado por Antônio Cândido que aduziu outro nome: o de Severo Sarduy, tão exilado de Cuba e tão proibido na Ilha quanto Vargas-Llosa tinha sido exilado do Peru e seu livro Batismo de Fogo (La Ciudad y los Perros, no original) proibido pelas Forças Armadas e incinerado em praça pública em Lima.

Foi lembrado por mim que a magnífica tradução dos irmãos Haroldo e Augusto de Campos e Boris Schnaiderman da moderna poesia russa esbarrava num único senão, a meu ver: de repente os poetas desapareciam de cena. Já que estávamos com vários estudiosos argentinos presentes e um dos problemas cruciais da Argentina era o da peregrinação diária das mães que perderam os filhos misteriosamente e desfilam diante da Casa Rosada, ou seja, o Palácio do Governo, em Buenos Aires, pedindo que o Governo do General Videla esclareça onde estão os seus pranteados filhos e parentes, os trágicos los desaparecidos da guerra travada no país vizinho entre os militares e os terroristas de Esquerda e Direita, o que acontecia com os grandes poetas russos vítimas dos expurgos stalinistas que lhes dava a faculdade de bruscamente evanescerem no ar? Por que se ocultava o nome do grande poeta Ossip Mandelstam, que morreu no campo de concentração gelado de Stálin, o Gulag apavorantemente descrito com precisão por Soljenytsin? Por que se ocultava, exatamente como acontece até hoje na União Soviética, a criação poética extraordinária de uma Anna Akhmatova?

Já que a professora Lígia Moraes Leite, da USP, declarara que não era stalinista, não era tarefa precípua dos que não são stalinistas recuperar toda essa grande literatura de um Pasternak, que até hoje tem seu Dr. Jivago proibido na Rússia? Trata-se de correntes poderosíssimas que nos foram subtraídas pelo totalitarismo do mesmo Stálin que mandou trucidar Trótski e que Rosa Luxemburgo já profeticamente previra, em 1921, levaria o “centralismo democrático” de Lênin ao Partido único e à supressão de todos os ideais de liberdade que ela via implícitos nos escritos de Marx, pelo menos do jovem Marx.

O professor Carlos Vogt abriu fogo contra mim, referindo-se indiretamente à “mente diminuta” que, presumo, só pode ser a minha, pois nela não cabem nem os dogmas nem os axiomas nem os teoremas nem os ukases nem os ultimatuns. Assim como não houve espaço para a linguística, que travara uma luta abstratamente corporal entre Carlos Vogt e Antônio Cândido, tampouco há espaço aqui para resumir todos os lances desse choque que inclui certas táticas que conheço há 20 anos e que já eram utilizadas na Escola do Teatro da Bahia, em Salvador, na década de 60 antes de 1964: quando eu falo há risinhos de mofa orquestrados antes de eu abrir a boca. Outros figurantes saem acintosamente no momento em que eu começo a falar, gravadores são desligados automaticamente mal enuncio a primeira sílaba do que seja que eu vá dizer. São as famosas e palpavelmente existentes “patrulhas ideológicas” que Cacá Diegues teve a coragem extraordinária de denunciar sozinho e antes que qualquer outra pessoa, publicamente, no Brasil. Vemos substituir-se em vários lugares a horrenda censura da dobradinha Buzaid-Falcão dos funestos tempos em que o Brasil estava fora do seu tempo e do seu espaço, por uma censura clandestina, subliminar, atuante e eficaz, que busca aperfeiçoar-se e calar a todos nós, dissidentes das Verdades Eternas e Universais emitidas pela Nova Inquisição, a Inquisição política, praticada pela URSS e todos os seus satélites, de Cuba ao Vietnam. Lembrei que assim como a psicologia, no Ocidente, não ficara presa aos ensinamentos de Freud, mas os retificara e enriquecera com as contribuições sucessivas de Jung, Wilhelm Reich, Melanie Klein, Bio e outros, por que os intelectuais da Esquerda legítima – a Esquerda que é lúcida, se questiona, se autocritica e se corrige – são privilégio da Itália e da Espanha, com o secretário-geral do Partido Comunista Italiano, Enrico Berlinguer, ousando condenar a invasão do Afeganistão pelos tanques russos? Por que só na Itália se repensa Marx, não só a partir de Gramsci, mas com Giorgio Amendola, Rossana Rossanda , Pietro Ingrao e Lucio Lombardo Radice, e com a adesão de importantes cientístas e pensadores? Por que o Brasil não poderia, através do pluralismo democrático autêntico, dar a sua contribuição que não pode ser a mumificação do pensamento da Esquerda, a ponto de lhe dar a rigidez cadavérica do corpo embalsamado de Lênin no mausoléu pomposo na Praça Vermelha, em Moscou? Por que o Brasil ainda não tem o seu Felipe González, antimarxista de esquerda?

Por que, quando os Estados Unidos praticaram ações abjetas contra o Vietnam, penso, as fotos e os textos dessas atrocidades de genocídio foram manchetes obrigatórias dos jornais e agora o genocídio do Camboja e a invasão do Afeganistão são relegados a páginas interiores, com o futebol passando a ser o ópio do povo? Como que escutei os versos de Chico Buarque de Holanda que falam do alienamento brasileiro, referindo-se ao fato de no Brasil se continuar a jogar muito futebol, a ouvir rock e um dia bater sol e outro fazer chuva. Quando eu ia deixando o recinto do Seminário, Ángel Rama, que me concedera uma extensa entrevista exclusiva no dia anterior, talvez inconscientemente abandonou o tratamento de “tu” que tínhamos adotado espontaneamente entre nós. Disse-me, caminhando rápido e quase sem se voltar para mim: Usted es un peleador, eh?(O Sr. é um lutador ou o Sr. é combativo, briguento, polêmico). Concordei. Um peleador muito solitário, execrado por determinada Esquerda, mas que é aceito em diálogos com a Esquerda Lúcida, que vai desde Deng Xiao-Ping até os comunistas italianos e Jorge Semprun na Espanha - são os que veem, como o sublime Sakharov, que o Rei Breznev está nu.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. Um produto que a Alalc não negocia: cultura . Edited by Fernando Rey Puente. Conferências, ensaios e alguns artigos especiais. Vol. 9. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.