Nossos poetas de hoje, ousando rir dos dogmas. Com versos doídos e ternos

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1984-03-03. Aguardando revisão.

“Um dia as fórmulas fracassam”

(Paulo Leminski)

“São tantos cintos

a enforcar nossas cinturas

tantos tapetes puxados

entre o início e o fim”

(Ricardo Soares)

“Dividi a poesia

em partes iguais

………………………

escandi

o poema até

a última tônica

mas era átona

a dor do poeta”

(Roberto Bicelli)

Os poetas de hoje entoam juntos, sem acordo prévio, a nênia, o pranto pelo viver como o viver nos é imposto. Leis, proibições, censuras, patrulhas ideológicas, o silêncio da maioria dos meios de comunicação em torno de sua criação - tudo reforaç a gargalhada e o asco dos rinocerontes reunidos nas academias literárias. Cemitério de talentos que se acreditavam vivos, regados a chá ralo, todas as múmias embalsamadas a repetir, como um coro de corvos embriagados: “Aquilo não é poesia, é patuscada, é porcaria”. Os poetas novos se movem em terreno minados. Prestam-se a todas as acusações possíveis: querem subverter a ordem estabalecida, são pervertidos sexuais, vivem ao deus-dará, não tomam posições políticas radicais, são uns ignorantões até para alguns críticos que pelejam em colocá-los em qualquer camisa-de-força, sob perigo de contaminar a sociedade, mormente os jovens. Os castrados em sua possibilidade ontológica de ser dão as mãos, sem o saber, aos vitorianos do comunismo pudico, seguidor estrito do pensamento burguês mais sufocante e certinho. Fechados à diferenciação do outro, o Partidão e o status quo de mãos dadas. Stalin convidando a rainha Elizabeth para mais uma valsa sobre o muro de Berlim.

Os poetas de hoje não escapam aos dogmas dos Novos Jesuítas - a esquerda leninista brasileira - que dolorosamente procura arrolá-los entre “os seus”. É o erro basilar que comentem Heloísa Buarque de Holanda e Carlos Alberto Messeder Pereira ao manipular o farto material de amostra poética de seu catecismo marxista: Poesia Jovem - Anos 70 (Editora Abril). Seria aliás melhor que essa série, denominada Literatura Comentada, sinceramente assumisse seu nome verdadeiro por baixo da máscara didática: Literatura Violentada. Mas longe de aceitarem o suicídio de Mayakóvsky ou de Essenin, os poetas comtemporâneos escrevem suas litanias com sangue, mas também com gozo, execram os medíocres “donatários” da cultura da direita e da esquerda. Corajosamente anárquicos, são mortos-vivos sem realce nas universidades, nos rodapés literários, leprosos expulsos das editoras como espectros de uma verdade incômoda que tomando Doril passa. Mas não passa. Não há ainda entre eles o que a tradição costuma celebrar no fim do ano - os Dez Melhores, prática copiada do analfabeto árbitro do “soçaite” Ibrahim Sued: não têm fortuna, nem fortuna crítica importante, seus poemas sonegados de todas as maneiras lícitas e ilícitas imagináveis. Delineia-se, porém, a bandeira/bandalheira do grupo e seu panteão de deuses exóticos, indigeríveis: William Blake, Nietzsche, Reich, Lautréamont, Rimbaud, Baudelaire, o surrelismo, o dadaísmo, Jack Kerouack, Allen Gisnsberg - todos paranóicos, todos malditos motociclistas suicidas ou assassinados pelo cerco da Igreja, dos partidos, da indústria e do comércio, das baionetas contra a flor dos hippies, Woodstock em vez da carreira rumo ao estrelato: ah, ser um dia um executivo! O terno não assenta bem nesses filhos de Whitman e suas Democratic Vistas, nesses companheiros do Poeta en Nueva York de García Lorca, à sombra da ponte diante da qual se matou seu adorador delirante: Hart Crane.

Roberto Piva, sociólogo de profissão, sem emprego possível (“os donos do poder e os marxistas me impedem de fazer qualquer coisa, quanto mais trabalhar, estou em tantas listas negras ao mesmo tempo)!” é o iniciador dessa explosão amortecida pelo silêncio sepulcral em torno do seu nome. No entanto, Paranóia, com a colaboração de outros dois paranóicos, o editor Massao Ohno e o artista Wesley Duke Lee, em 1963 foi o estrondo ao qual se seguiram todos os outros. Mas, sob o jugo da política, quem ouviria sob o discurso de Jango aos sargentos na praça da Central do Rio de Janeiro e sob o fogo cerrado da retórica guerreira de Brizola improvisado Ho Chi-Minh dos pampas, quem ouviria aquela voz poética inteiramente nova, alucinatória, um paroxismo que se erguia dos edifícios e praças de São Paulo?

Paranóia, de edição esgotada e que é importante reeditar, não hesita: como nas obras de Beckett, parte conscientemente, deliberadamente, do reconhecimento do Nada; e enumera, em paroxismo de imagens espantosas, de livre associação de ideias, o contraponto o espetáculo feroz, multicor, belo/apavorante da cidade e a dor/alegria do poeta que celebra o inferno/purgatório/paraíso das imagens citadinas. Entre as árvores tocadas pela luz noturna, junto aos letreiros pobres, circenses dos bairros miseráveis, na avenida (oficialmente boulevard) São Luís as imagens: chusmas de rapazes diante de um bar, conversando, vendo o homem-sanduíche a vender ouro, sob o peso da fome; loucos ouvindo os pássaros que celebram o crepúsculo fulvo e lilás da poluição. Essa magnífica sinfonia multifacetada inaugura uma poesia nova no Brasil como Jorge de Lima e sua Invenção de Orfeu ou Grande Sertão: Veredas, partitura para imaginação e orquestra do bruxo Guimarães Bartok Joyce Rosa:

“As mentes ficaram sonhando penduradas nos esqueletos de fósforo invocando as coxas do primeiro amor brilhando como uma flor de saliva.

o frio dos lábios verdes deixou uma marca azul-clara debaixo do pálido maxilar ainda desesperadamente fechado sobre o seu mágico vazio marchas nômades através da vida noturna fazendo desaparecer o perfume das velas e dos violinos que brota dos túmulos sob as nuvens de chuva.

fagulha de lua partida precipitava nos becos frenéticos onde caftinas magras ajoelhadas no tapete trocando o trombone de vidro da Loucura repartiam lascas de hóstias invisíveis a náuseas circulava nas galerias entre borboletas adiposas e lábios de menina febril colados na vitrina onde almas coloridas tinham 10% de desconto enquanto costureiros arrancavam os ovários dos manequins”

Este vigoroso, polifônico introito tem a presidi-lo o rosto de Mário de Andrade, o poeta da tristeza e da solidão estoica “curtidas” na Paulicéia Desvairada e inclemente:

“Minhas alucinações pendiam protegidas por caixas de matéria plástica eriçando o pêlo através das ruas iluminadas e nos arrbaldes de lábios apodrecidos

na solidão de um comboio de maconha Mário de Andrade surge como um Lotus colando sua boca no meu ouvido fitando as estrelas e o céu que renascem nas caminhadas

noite profunda de cinema iluminados e lâmpada azul da alma desarticulando ao trombolhões pelas esquinas onde conheci os estranhos visionários da Beleza”

Os instantâneos da cidade vista por um voyeur/voyant, um misto de marquês de Sade e de Baudelaire, sucedem-se mas não são meramente a justaposição ou a enumeração de visões urbanas. São clarividências Zen do interior do que se vê e sente, fiel ao princípio de Novalis: “je poetischer, umso wahrer” (“quanto mais poético, mais verdadeiro”). Correm diante do leitor extasiado o eco lancinante dos fragmentos, todos signos em rotação, como anotou Octávio Paz, do efêmero, mas plenamente gozados com alegria, como queria o Nietzsche da Gaia Ciência. Roberto Piva, embora tenha espontaneamente a magia do encantatório, tem ao mesmo uma hilariante percepção do engraçado que se soma à Graça teologal, com G maiúsculo, como na irrisão que momentaneamente rompe o ritmo solene e grave:

“Imensos telegramas moribundos trocam entre si abraços e condolências pendurando nos cabides de vento das maternidades um batalhão de novos idiotas”

A cidade-São Paulo? Astrakan? Nova York? Iguape? - é o panorama de “crianças católicas que oferecem limões para pequenos paquidermes” e “adolescentes incendeiam internatos” e “onde manifestos niilistas distribuindo pensamentos furiosos puxam/ a descarga sobre o mundo”.

Nada há que o recomende a um meio que o considera apenas como um infrator dos códigos sexuais vigentes, um “fracassado” na pirâmide da ascensão social, um erudito leitor de Dante, Norman Brown e dezenas de poetas, pensadores, teóricos dos Estados Unidos, da Europa, do Brasil. Seus solilóquios são distribuídos para quem quiser incorporá-los à sua mente e à sua carne, hóstia e celebração de um paganismo dionisíaco, frenético, mas não menos religioso em sua essência. Em sua biblioteca rica, caótica, ao lado de seus discos de jazz plangentes ou estrondosos de alegria de viver, ele dá destaque a um nome que no Brasil será um nome confundível com o de qualquer indústria química, qualquer coisa de som alemão: o excelso Jacob Boehme. E Roberto Piva brande como uma carta de alforria ou um diploma dado por um Paraíso anterior ao cristianismo deturpado pelas Igrejas que se dizem cristãs a frase que lhe parece uma chispa do Conhecimento esotérico, vetado ao conformismo de “deixar tudo como está”.

“Em seu Signatura Rerum, Boehme explicita que Cristo significa a propriedade do livre prazer: e na língua da Natureza ele quer dizer violador. Sim: o poeta é o violador da língua, das leis, dos comportamentos estereotipados”.

E, proibido pelos poderes reconhecíveis e pelos poderes subterrâneos, talvez mais homicidas e estranguladores da liberdade do que os “oficiais”, ele cita o proibido: o poeta cubano Lezama Lima, violador do código machista opressor, violador da linguagem, reinstaurador do sagrado, do eterno que é o agora. Abaixo a “literatura” careta, ousemos fundir a visão poética com o próprio viver, em oposião aos uivos das Pudicas Senhoras de Santana, aos fanáticos da Tradião, Família e Propriedade, vendo na esquerda castradora a anuência diante dos parâmetros burgueses e perguntando com Wilhelm Reich: a miséria sexual da população não é uma forma de mantê-la subjugada a uma minoria que a explora? A cada repressão da libido não corresponde uma repressão política que toma a forma de um totalitarismo de Estado? No mundo houve um número infinito de revoluções, mas nunca ocorreu uma revolução sexual: por quê?

A violência da transgressão da linguagem, da transgressão da Tábua das Leis judaica sobre a fornicação, o adultério, a homofilia, tudo, como ele assinala na epígrafe de Leopardi, se insere no próprio viver: “… e quindi il vivere è di sua propria natura uno stato violento” (“… e portanto o viver é, por sua própria natureza, um estado violento”). “O apito desintérico das fábricas expulsando escravos”; “meu esqueleto brilhava na escuridão/ repleto de drogas/”; memória de arsênico que eu dei a uma pomba/ os olhos cinzentos do céu meu oculto Totem espiritual”; “o girassol de Oscar Wilde entardece sobre os tetos”; “São Paulo e Rússia não podem parar” até “as palavras cobrem com carícias negras os fios telefônicos/ no ar no vento nas poças as bocas apodrecem enquanto a noite/ soluça no alto de uma ponte”. A sucessão de relâmpagos poéticos torna impossível a sua citação, que abrangeria toda esta página. Estes lampejos de uma poesia atormentada pelos cambiantes moods do seu eu egoísta, onipotente, megalomaníaco, dão à sua poesia, frequentemente grandiosa, um urro de originalidade no nosso panorama bem-comportado ou debilóide; dão à sua poesia um tom jaculatório, de reza curta pagã, de viosionário do laser a medir com o estreboscópio a alma/corpo em sua junção grega original. Jaculatórias fascinadas pela linguagem, pelo seu ritmo, pelo seu som e cor encantatórios:

“Papé Satan, papé satan aleppe/ Stradivus cordis meus/ formavulva falastros/ chimbando cullus puer/ Pasolini-panqueca/ Plebiscito Bakunin sin nombre ni sustancia/ Mon grosse Lewis Caroll/ suchiando le bambine/ tiger/ milhafres/sai de baixo”

(de Quizumba, 1983)

Ou a originalidade admirável dos fiapos poéticos sem seguimento lógico. “Africa buon giorno”, em meio a uma longa evocação de vidrilhos de um caleidoscópio fascinante: “o Amazonas espera para transbordar”, “porta acesa/ olhar inchado no escuro”, “Signorine, la danza della Morte è servita” algumas ficaram/ LOUCAS”.

Sempre Roberto Piva delicia o leitor com seu hilariante senso de humor, sua ironia, seu brasileiríssimo modo de enxertar em sua poesia nomes vetustos vetustos como Trakl e Benn, dos mais inquietantes poetas da Alemanha moderna ao lado de Cobra Norato e o Raul “b” Bopp. Palavras que cria, “astralucidez”, associações que desossa, impávido colosso: “Rimbaud Diadorim Billy the Kid” ou noções que tomografa em batidas Morse:

“adolescentes violetas na porta do cinema.

Bar Jeca esquina da São João/Ipiranga.

revoada de revoltados (maravilhosos), jamais capitular.

pijamas, família tv doméstica: a

ordem Kareta se representa

a si mesma.

corpo doce-delicado-quente na manhã alaranjada.

o planeta entre na órbita do coração.”

(20 Poemas com Brócoli, 1981)

Em seu livro agora reeditado pela Kairós Livraria e Editora Roberto Piva está maravilhosamente situado entre um lúcido prefácio o poeta e crítico Willer e um posfácio “de próprio punho” em que o múltiplo Piva lírico-demente-hilariante-lancinante melhor se revela diante de um espelho de intenções. Atribui à poesia uma tarefa, a meu ver, nunca negada pelo Cristo mas apenas pelos mercadores de bulas, hóstias e santinhos que encarnam, na verdade, o anticristo do amor ao próximo:

“As cavilosas maquinações contra a Vida em consequência de um Eu ideal (Deus, Pai, Ditador) nos obrigando a renúncias instintivas nos transformando em conflituados neuróticos sem possibilidades de Brecha alguma, reduzindo a vício o nosso espontâneo interesse pelo sexo, o cristianismo como a escola do Suicídio do Corpo revelou-se a grande Doença a ser extirpada do coração do Homem. Em todos os meus escritos procurei de uma forma blasfematória (Piazzas) a la Nietzsche explicitar minha revolta e ajudar muitos a superar esta Tristeza Bíblica de todos nós, absortos num Paraíso desumanizado, reprimido aqui e agora.”

Cláudio Willer em seu Jardim da Provocação (Editora Massao Ohno-Roswwitha Kempf, 1981) submerge, como debaixo de uma avalancha, o seu considerável talento poético sob uma floresta de citações eruditas e sempre bem colocadas. Creio, porém, que seus poemas precisam correr como animais selvagens em fuga, em luta ou se espoajando por prazer na floresta de palavras. O racionalismo, para quem como ele conhece todos os arquitetos do irracional, que já traduziu, com grande acerto poético, como Antonin Artaud e Allen Ginsberg, entre outros, se choca com seu culto a André Breton, a Reverdy, a Tristan Tzara. Frequentemente, Cláudio Wille relata e enumera, freando a explosão de imagens e vocábulos, o erudito autêntico e o crítico competente esmagando a força de gêiser da poesia não-policiada pelo querer e pelo saber. Que seu talento poderia ser uma eclosão renovadora da poesia que se faz hoje no Brasil não há dúvida. Basta ler os versos iniciais de sua “Homenagem a Dashiell Hammett”:

“Uma geração pulou no abismo

mas você foi mais adiante

ou saltou mais fundo

levantou a tampa da vida

para ver o que havia por baixo

para ver que não havia nada embaixo

parar

reescrever

começar tudo de novo

passar a limpo mais uma vez

a selva das cidades

por trás de cada crime

uma teoria do conhecimento

por trás de cada janela

um olho rasgado”

Ou o trecho de Palavras da Tribo, escrito coletivamente com Juan e Cristina Hernandez e Roberto Piva:

“Eu procurava a espécie do meu destino e o humano aumentava de volume enquanto cisternas de adolescentes enrolavam seus cabelos entre medusas e cadilaques de chocolate a sub-raça existia torpedeada nas axilas dos calendários a espécie era um esparadrapo traficando o humano e suas religiões de ébano suas duas dúzias de corações suas ladainhas cheias de silêncio suas roupas penduradas contra o céu cinza suas arapucas com rolinhas dentro suas marcas azuladas no pescoço do dia que se abre suas filas duplas de jockeys suas panelas gastas suas gargantas mais dramáticas que seus intestinos suas bocas mais mortas de amor que um punhal cravado num girassol de escorpiões… Ah! Espécie humana mais divina que todos os céus enlutados do teu destino não fossem as catedrais os teus amores piedosos não fossem tuas culpas acarameladas por correntes ditadoras tuas enciclopédias beócias e termais”

O melhor momento qualitativamente - se for possível tal escolha subjetiva - é o de “Visão de Nova York”, do livro Dias Circulares:

“O grande cavalo de lágrimas azuis desce do Oeste, lento como a névoa dos trigais. São hoteis de granito e espuma plástica em ruas que outrora foram violentadas, em manhãs mais suaves do que a brisa dos grandes portos. Todos os túneis, todas as cavernas encontram-se num desfiladeiro de torreões metralhados. Todos os trilhos convergem para um só ponto, todos os subways apontam para uma só direção, e na vegetação dos grandes parques cresce o arbusto andrógino cujas raízes são de metal e seda. Os retângulos magnéticos geraram uma cidade onde cavalos à solta pisoteiam os gerânios dos patamares e a combustão espontânea anima os corpos dos amantes nas tardes de verão. Sementes germinarão violentamente em Blecker Street pois um pântano noturno sacode os alicerces dos grandes prédios embebidos em aguarrás. Os gritos gelados soam num corredor de pálpebras estreitas, e no parque onde pastam as llamas emergem montes de cristal, despertando a última sentinela de uma paisagem de antenas partidas e ventiladores retorcidos.”

Também Cláidio Willer, no posfácio desse mesmo livro, elucida de maneira admirável o choque da imensa maioria dos novos poetas com o dogmatismo marxista: trata-se, relembra Cláudio Willer, de maneira irrespondível da divergência fundamental: Marx pensa “mudar a sociedade”, Rimbaud crê apenas em “mudar a vida”. Ousando perder um banquete com Fidel Castro, ao lado de Chico Buarque ou Regina Duarte, ele concorda com Allen Ginsberg ao constatar que a revolução do peredón fuzilou também a linguagem, mumificando-a (nunca será demais lembrar que o grande escritor cubano atual, Guillermo Cabrera Infante, fugiu deliberadamente da masmorra cubana). Mais ainda:

“Todos os governos, inclusive o cubano, continuam operando dentro das regras de identidade forçadas sobre eles por modos de consciência já caducos. Digo caducos posto que levaram a todos os governos a margens de destruição do mundo. Nenhum governo, nem sequer o mais marxista, revolucionário e bem-intencionado, como o de Cuba presumivelmente (! do redator), é inocente do descalabro mundial geral. Nenhum pode considerar-se justo já. Justiça e bem e mal são todavia patranhas da velha identidade suicida.”

Roberto Piva, Sílvio Pires e Cláudio Willer - que na minha opinião se destacam nitidamente do grupo de vários talentos poéticos que o Brasil tem produzido subliminarmente quase, nas últimas décadas - são, com Hilda Hilst, a grande revolução copernicana do ser e das variadas formas que o poético vem assumindo entre nós, nesta década inicial de 80. Seria injusto esquecer, porém, os poetas que dispõem de meio ainda mais escassos de se fazer ler ou ouvir: afinal, é elementar recordar que Eliot e Borges foram totais “encalhes” paa seus esperançosos e ousados editores, anos a fio.

Com muita irreverência, brilho, malícia, verve, inventividade, pululam poetas dos três sexos, de todas as misturas raciais, como no soberbo Jornal Dobrábil de Glauco Matoso & Cia. Não faz parte, no entanto, da poesia do riso, da “gaia ciência poética” de Nietzsche enquanto lúcido a revista Matraca? Quem a folhear não duvidará que sim. Seu “anúncio” de página inteira do Instituto Universal Cotiano corre paralelo aos livros dos poetas editados: oferece cursos notáveis de praticidade e atualização como (ornado por uma fotografia): “Seja como eu um Técnico em Corrupção (nível Dois). Com aulas no Destrito Federal”ministradas” pelos mais requintados mestres da economia e política locais, este curso lhe garante um futuro alvissareiro No curriculum matérias como “Escândalo da Mandioca I”, “Técnicas Lotéricas” e “Propina Comentada III”. A seguir há cursos par auxiliar de acadêmico da Academia Brasileira de Letras, que em sete anos em período integral “lhe ensinará, entre outras coisas, a higienizar a dentadura dos imortais, a polir as muletas e a aplicações de morfina e soros anafiláticos. Curso reconhecido pela dra. Aslam”. E as aulas de albanês em fita cassete…

A irrisão é também uma arma válida para os poetas jovens, inseridos entre profecias da Grande Onda que varrerá os pecadores da orla marítima do Brasil e só preservará os filhos das inúmeras seitas místicas do Planalto. Com cartas de baralho e calendários como chamarizes para a poesia nova e um renovador ímpeto de iconoclastas, os poetas de hoje, aqui e agora misturam à face solene de uma dor dilacerante de ser em um mundo que lhes proíbe e coíbe a existência verídica a gaiatice da zommbaria inteligente e saudável. Rimbaud e Nietzsche entraram para a umbanda poética brasileira, nestes slides fulminantes do Absoluto.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1984) 2022. “Nossos poetas de hoje, ousando rir dos dogmas. Com versos doídos e ternos .” In Poetas brasileiros contemporâneos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 4. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.