A Literatura espanhola, universal
A Espanha democrática atual – é uma triste realidade – não pode nem rivalizar com a pequena Renascença literária portuguesa, que conta com nomes tão importantes como os dos novelistas José Cardoso Pires, Augustina Bessa Luís e José Saramago, além do frequentemente sublime poeta contemporâneo Eugênio de Andrade. No entanto, é inegável que com Jorge Semprun e Juan Goytisolo a literatura espanhola atual atinge a qualidade de uma literatura de valor universal. Infelizmente para a inteligência brasileira, Jorge Semprun, quando de sua passagem pelo Brasil, foi sabatinado em um canal de televisão por Antônio Callado, Flávio Rangel e outros luminares que, aparentemente, desconheciam toda a sua obra. Resultado: com a superficialidade da Esquerda Brahma-ipanamense, a “patota” carioca que se acha vanguardeira da intelligentsia do Rio de Janeiro – ai de nós! – queria saber mesmo é qual era a “fórmula” de Semprun para... conquistar tantas mulheres, “bicho”! Pano rápido, como diz o certeiro Millôr Fernandes.
O Brasil, esmagado pelo lixo norte-americano na música popular, nos livros, no cinema, na tv etc., demonstra pouco interesse pela qualidade literária: o cifrão é o critério de importância de um autor – ele vende bem?
É pena. Juan Goytisolo nos chega agora – e mesmo assim muito fragmentariamente – através de resenhas publicadas... nos Estados Unidos! Território Proibido, se for fiel à tradução do título espanhol para o inglês (Forbidden Territory), é a mais recente criação de Goytisolo. E foi recebida com efusivo entusiasmo pelo New York Times Book Review. Folheando como que o álbum de fotografia de sua memória, com retratos de família, Juan Goytisolo evoca personagens delirantes como os de um filme de Buñuel ou de um quadro de Salvador Dali. Exemplos:
Seu pai obtém do Papa Leão XIII uma indulgência plenária quando já está no leito de morte, (in articulo mortis, na linguagem do Vaticano). Quer dizer: as três gerações seguintes de seus filhos, netos e bisnetos têm seu lugar garantido pelo Papa no céu; os descendentes de seu tataravô (ou tetravô?), que fez uma imensa fortuna com a importação de açúcar cubano, dissipam rapidamente o vasto patrimônio legado pelo diligente Don Agustin. Seu irmão, Don Ramón, traduz, anos a fio o Rubayat para o idioma catalão, sem jamais ter trabalhado na vida. Outro irmão, Don Juan, usava os trens com o nome Goytisolo gravado em placas folheadas a ouro para levar seus convidados de sua mansão senhorial de volta a suas casas: sua irmã, a tia Trina, estava sempre circundada de ávidos padres, de olho em sua fortuna como os que circundavam, como uma roda de urubus, a milionária Titi, de A Relíquia, de Eça de Queiroz. Etc. etc.
Da própria mãe, que morreu em Barcelona durante um dos bombardeios de Mussolini durante a Guerra Civil espanhola, Goytisolo só guarda uma lembrança: a de uma mulher muito elegante, envolta numa pele cara, jovem e usando sapatos de saltos altos, as mãos cheias de presentes para os filhos.
Durante todo o período da longa ditadura fascista de Franco, a família Goytisolo vive num esconderijo, sufocados numa casa escura na capital da Catalunha. O avô do Goytisolo ainda menino se enfiava à noite em sua cama infantil e daí talvez se derive a bissexualidade de Goytisolo, apaixonado por sua amante francesa e, no entanto, procurando, à noite, uma aventura sexual pelas ruas da cidade. O que para ele cria uma equação terrível: tudo que for erótico pertence ao território das coisas proibidas.
Os vários traumas de Goytisolo o levam a criar uma literatura fantasiosa. Desde cedo ele imagina que Santa Joana foi salva da fogueira e terminou morrendo guilhotinada por ordem de Robespierre, na Revolução Francesa de 1789, em pleno período o terror fanático que decapitou 17.000 pessoas. Da mesma forma, em sua obra-prima, um Conde Julião remaneja um passado intolerável. A Espanha das touradas e dos cantos flamencos é invadida por hordas árabes (uma visão profética do sonho fundamentalista de Khomeini de reivindicar a Andaluzia como território muçulmano?) e é novamente conquistado pelos mouros.
O admirável escritor engenhoso, inovador, que é Juan Goytisolo, merece uma atenção mais acurada de nossos editores. Examinando o passado cômico e doloroso deste seu livro, ele compara as memórias de um autor a um sucedâneo laico de um sacramento católico: a confissão. Ele quer ver o que há, realmente por trás da máscara mentirosa das aparências, da farsa da vida. E com isso afirma-se nesta resenha, cria um livro poderoso que, em meio ao ódio e contra as ruínas do presente, mantém uma revigorante fé na sobrevivência do elemento humano que traz deleite e confiança a seus leitores.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2023,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {A Literatura espanhola, universal},
booktitle = {Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra
os despotismos e os totalitarismos},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {12},
date = {2024},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-12/03-europa/00-a-literatura-espanhola-universal.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1989 (?). Aguardando revisão.}
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