Doris Lessing, derrubando mitos

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1984/02/11. Aguardando revisão.

Das células de um corpo vivo à teoria de Trotsky de que uma revolução política não se mumifica mas é uma “revolução permanente”, da biologia até um dos mais famosos pensamentos de Heráclito, segundo o qual nunca podemos banhar-nos duas vezes no mesmo rio, pois suas águas fluem e não serão mais as mesmas, a mudança é um traço que rasga toda a existência viva e, impreterivelmente, se torna sinônimo da própria vida em si. A prodigiosa escritora inglesa Doris Lessing, que o Brasil vem conhecendo aos poucos, suas obras pingadas de lento conta-gotas, cumulativamente combateu como antirracista, pró-judeus, comunista, feminista: cada livro seu documenta vividamente esse percurso íngreme de militante. O título Exilada em seu País (Editora Record, 269 páginas) não consegue reproduzir exatamente o matiz sinistro do original inglês: Landlocked que tem o duplo significado de confinamento forçado e de parto. Pois se trata realmente das duas realidades.

Foi na Rodésia, hoje Zimbábue, que ela se sentiu prisioneira de uma reclusão: a de ser mulher, a de ser branca, a de não pertencer à cultura autóctone daquela nação africana. E foi nessa Rodésia efervescente que essa inconformista corajosa, coerente, viu ruir sua crença dogmática na superioridade intrínseca do marxismo. Contrapôs às imagens heroicas, estoicas, da batalha de Stalingrado, os horrores perpetrados por Stalin e que pouco a pouco penetraram até na longínqua África Negra e que, esperemos, na próxima caravela, chegarão até o Brasil, quase 30 anos depois de Kruchev os ter denunciado e documentado minuciosamente no XX Congresso do PCUS, em 1956.

Doris Lessing sorria se lhe aplicassem imediatamente um dos dois únicos rótulos existentes na farmacopeia ideológica dos nossos tempos: se não era comunista obediente e fervorosa, sem fazer perguntas… é óbvio que ela só podia ser reacionária, fascista, vendida ao capitalismo ou, crime dos crimes, social-democrata ou trotskista, inomináveis delitos de opinião. A trajetória lúcida e coerente de Doris Lessing vem revelando, volume após volume, quanto a artista inteligente e sensível em nossa época se afasta mais e mais do panfletarismo, da polarização estulta, do sectarismo binário. Ela soma ao ódio ao colonialismo bárbaro imposto pelos europeus aos negros da África, o colonialismo machista que amordaça a liberdade e vontade femininas ao arbítrio do macho prepotente. Defende suas teorias de destruição de um sistema social e estigmatizado pela injustiça, pela crueldade e pela estupidez e vai cada vez mais longe e mais profundamente. A psiquiatria que confina, à força, nos hospícios, os dissidentes da sociedade “normal”, não são os verdadeiros são os que “enlouquecem” diante da bestialidade insana do mundo “lá fora”? A antipsiquiatria de Ronald Laing a impulsiona nessa direção. A sua aproximação recente com o sufismo (um ramo da religião muçulmana que capacita o ser humano a conquistar o livre-arbítrio através da tenacidade, do desapego e da renúncia) e as misteriosas aparições nunca “explicadas” de Objetos Voadores Não Identificados a levaram a criar a ficção espacial. Não se trata de “ficção científica”, como ela está cansada de insistir: Shikasta (Editora Nova Fronteira) especula sobre a vinda à Terra de seres mandados de galáxias evoluídas e, em termos humanos, benignas, para anular os efeitos devastadores que fizeram a humanidade decair ao nível da fome, da guerra, da robotização, do desespero, da violência.

E Exilada em seu País, publicado originalmente em 1958 e NÃO em 1965, como faz crer a Editora Record, embora chegue tarde ao Brasil, teve a compensação de chegar traduzido por uma excelente tradutora: Lia Luft. Deve ser esta a solução, talvez, para a tradução no Brasil: confiá-las a escritores, como aconteceu com as traduções magníficas de Proust e Virginia Woolf feitas por Manuel Bandeira, Mário Quintana, Carlos Drummond de Andrade e outros. Escritora sensível, densa, Lia Luft já tinha traduzido magistralmente, do alemão, uma obra sumamente difícil: Anesteria Local, de Guenther Grass (Oertliche Betaubung, no original). Ela capta um sem-número de sutilezas de Doris Lessing, a ponto de o livro se tornar transparentemente em uma obra-prima em português também, com seus lances de ironia, de finíssimo humour e reiterada, penetrante, abrangente poesia, como por exemplo: “A expressão do seu rosto… era esse o cerne do sonho”; ou “Fechou com a mão a boca do cachorrinho branco e parou num canteiro de flores debaixo da janela, o frio aroma de violetas (grifo meu) subindo de onde seus sapatos mergulhavam num solo úmido” São raros os deslizes da tradutora, como interpretar “gallant” como “galante” apenas. Na realidade em inglês a palavra tem dois significados: além de “galante” quer dizer “valoroso”, “destemido”, “bravo” no sentido militar ou de feito civil heroico, que é o sentido que Doris Lessing dá, várias vezes, a esse termo neste livro e que foi incorretamente traduzido, um erro menor.

Seria quase impossível enumerar os “temas” deste livro: continuando os três anteriores, focaliza Martha Quest (haveria intencionalidade no sobrenome : Martha Quest, que quer dizer Busca, Indagação?) à procura de um amor absoluto; da realização prática de seus ideais de arrancar o domínio odioso da minoria colonialista branca de coma dos ombros da desvalida população negra, espezinhada, esmagada, anulada; o sonho de uma sociedade igualitária para todos, independentemente da cor, da religião, do sexo; a efetiva liberação da mulher do tacão machista capaz de sufocar seus talentos debaixo de vetos caprichosos,, sádicos e injustos por parte dos que “usam as calças e mandam para serem obedecidos”; o ideal do comunismo que faria ruir, finalmente, o capitalismo criminoso e odiado.

Exilada em seu País é o ponto do rompimento da autora, nesta cristalina autobiografia, com as certezas graníticas e nunca questionadas antes. O conhecimento estarrecedor das prisões stalinistas, os relatos que pouco a pouco se acumulam sobre o Gulag e os milhões de mortos que exigiu desde sua instauração o bolchevismo em 1917, enxerta a primeira dúvida: seria o comunismo russo o regime ideal, se recorria a esses métodos para se manter no poder? Os “camaradas” – aquele punhado de gregos, poloneses, holandeses, ingleses, cujo total talvez não chegasse a dez ou doze rebeldes – tentam resgatar o sonho que se esfarrapa: a partir de 1949, com a chegada dos comunistas ao poder na China, aquela civilização “nobre, antiga, sábia” seria o rumo a seguir, em vez dos desvios e erros da nação atrasada que era a Rússia, incapaz de adotar o comunismo eficazmente. E Hiroshima e Nagasaki indagam outros “camaradas” menos idealistas: não estava comprovado que os socialistas concordaram com sua destruição atômica?

Os russos, que só combateram algumas horas o Japão já exangue, não se tinham apoderado das Ilhas Kurilas japonesas para nunca mais devolvê-las?

Doris Lessing tem, a mais, a grandeza de compadecer-se de um povo bestializado por um psicopata como Hitler. As imagens cinematográficas mostram jovens alemães com os pés apodrecidos de gangrena na neve de Stalingrado (hoje de nome trocado para Volgogrado), mostram crianças fugindo em pânico das bombas e uma população civil faminta, aviltada. A voz do locutor inglês que ironiza o Herrenvolk – a raça de super-homens germânicos, arianos, que Hitler jurou tomaria conta do mundo e varreria do globo as “raças inferiores” – tem um efeito contrário: traz, para além da ideologia, a compaixão, a empatia humana, solidária com outro ser humano. Os prisioneiros dos campos de concentração irmanam-se, estranhamente, às mulheres que fogem com os bebês enregelados, mortos, nos braços, diante da sanha dos tanques russos em Berlim, do estupro cometido pelas tropas russas sob o olhar benevolente dos comandantes em Moscou. O sofrimento iguala os negros despojados de sua dignidade pelos “senhores” brancos na África Negra aos alemães que ensandecidos optaram pelo Partido Nacional-Socialista e suas promessas de glória, grandeza e um Terceiro Império (Reich, em alemão) que o Führer demente como Calígula prometeu que duraria 1000 anos e se esfacelou depois de 12 anos e cerca de 80 milhões de mortos.

De forma inesquecível, Doris Lessing derruba os mitos da classe dominante, os brancos com sua “moral” vitoriana hipócrita, seus ritos grotescos do que “se faz” e “do que não se deve fazer”, juízos rígidos, imutáveis, inquestionáveis. Duas ilustrações bastam para que se tenha uma vaga noção da grandeza da percepção e da demolição verbal de que Doris Lessing é assombrosamente capaz. Referindo-se à própria mãe, escreve: Em resumo, a sra. Quest era como noventa por cento da humanidade: se passava uma tarde fazendo geléia, enquanto sua mente estava cheia de pensamentos de inveja, rancor ou de uma violência sensual, então passara a tarde fazendo geléia”.

E antecipando-se ao terrorismo organizado, banal, de hoje, que vai das prisões de Khomeini ao “Sendero Luminoso” do Peru ou à guerra civil de El Salvador ou à ferocidade argentina exercida contra “los desaparecidos”, tal qual George Orwell, em 1984, macabramente previra:

“Há homens que, se você os mandar matar cinquenta homens a tiros, ficam deitados a noite toda preocupados porque podem ter matado um a menos… o papel mostraria que havia um homem a menos. Bem, é disso que falamos agora, da atitude burocrata diante do assassinato. Os pequenos empregadinhos de escritório que estão no poder são perigosos”.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Doris Lessing, derrubando mitos .” In As três grandes damas da literatura europeia: Virginia Woolf, Marguerite Yourcenar e Doris Lessing, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 7. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.