A Negritude - Transfiguração Poética do Rosto Africano

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Correio da Manhã, 1964/12/20. Aguardando revisão.

Em sua obra-prima sobre os anos que viveu na África, a escritora dinamarquesa Karen Blixen (que usa o pseudônimo de Isak Dinesen) referiu-se à diversidade dos povos negros e à sua integração plena na paisagem indígena:

“Os indígenas eram a África em corpo e sangue… Eram expressões diversas de uma ideia única, variações sobre o mesmo tema. Não uma amálgama sintética de átomos heterogêneos, mas uma amálgama heterogênea… em que os negros estão sempre em eterna harmonia com os elementos da sua terra natal..”

Dispersos pela História forjada pelo homem branco, em vários continentes, guardam porém uma origem comum, um passado de ritos, de ritmos, de danças e mitos ancestrais, herança que perdura confusamente em sua memória e em seu sangue. Durante séculos, a humilhação do cativeiro, a destruição violenta de culturas, de hierarquias de nobreza e de seitas religiosas os segrega, na “casa grande” das Américas. Em contato com uma civilização estruturada, sua erradicação forçada de seu habitat original explode em complexo de inferioridade, em impossibilidade de integração num novo mundo ao qual lhe era negado o acesso por meio da pressão econômica, da relegação a um estágio primitivo em que o analfabetismo constituía o primeiro obstáculo à ascensão social e cultural. Durante séculos, das plantações de cana de açúcar se erguem cantos melancólicos, de resignação, de fé no Deus crucificado dos brancos e cantos nostálgicos que exprimem o desespero silente desses seres murados entre o trabalho, a promiscuidade e a tristeza – são os blues e os spirituals. O jazz é a primeira manifestação híbrida de uma alegria reconquistada, de uma fé no futuro, de uma exaltação dos sentidos: forma africana com instrumentos da Europa.

Mas se a abolição da escravatura nos Estados Unidos custara uma guerra e a morte de Lincoln, constituíra ao mesmo tempo a primeira conquista do negro que teria consequências artísticas além de sociais – da sua raiz brota a flor do ritmo sincopado de Chicago, Nova Orleans, Manhattan. A libertação do jugo colonial na África criaria as condições indispensáveis à nova expressão da alma e da consciência negras, mas em circunstâncias diferentes. Em contato com a cultura eminentemente literária da França, fascinados ele também como os americanos da “geração perdida” pela Cidade em que germinaram os pensamentos de liberdade, de igualdade e fraternidade, pela aceitação da arte negra por Picasso e pelos pintores cubistas, os intelectuais negros – expoentes de sua raça – tomam consciência de sua “negreza”, nas palavras de Heidegger: identificam-se “como negros no mundo”. É a Négritude.

Léoplod Senghor a defende claramente:

“Quando nós, poetas negros, cunhamos o conceito de négritude, criamos com isso o recipiente para o qual confluíram todas as correntes da África… O homem africano tem que compenetrar-se do seu passado, das suas origens e aceitá-los conscientemente, isto é a négritude – uma inter-relação total de todos os valores da cultura neo-africana e ao mesmo tempo uma defesa da nossa dignidade”:

“E eu me erguerei, ó África, para te anunciar com o olhar imóvel como o escultor de máscaras”. É a própria máscara que passa a simbolizar o misticismo e a magia negras, a natureza de uma beleza violenta, o amor e a dança, o sofrimento e a liberação:

“Tu, semblante de máscara, imaterial e sem olhos, voltado para o passado,

Tu és perfeita, cabeça de bronze. A pátina do tempo não é maculada pela maquillage, pelo rouge, pelas rugas, nem por vestígios de lágrimas e beijos.

Oh, semblante que Deus criou antes da memória dos tempos,

Semblante da madrugada radiosa, não assumas o encanto,

De um pescoço macio, para excitar minha carne.

Eu te adoro, oh Beleza de olhos mortos e monótonos!”

Mas não é só na África que a négritude encontra sua expressão poética: Léon Damas, da Guiana Francesa, celebra em seus versos a mesma paixão por um mundo perdido e canta a inocência da África violada pelos capitães de negreiros:

“Dá-me de volta minhas bonecas pretas;

Quero brincar com elas

Os brinquedos sem peias de meus instintos,

Quero ficar à sombra das minhas leis, reencontrar minha coragem, minha ousadia, sentir-me eu mesmo de novo, sentir o eu que eu era ontem,

Ontem,

Sem complicações,

Ontem,

Antes da hora de arrancarem minhas raízes”

Para o movimento da négritude, que se alçava justamente quando as nações africanas emergiam para a independência e para o século XX, não existe o ressentiment cego e fanático contra o colonizador de ontem. Movimento “evangélico” na sua essência, como o definiu Sartre, constitui politicamente uma expressão de um humanismo pan-africano, uma reconciliação com o homem branco, senhor de ontem, irmão de agora no soerguimento material das populações africanas com a sua técnica – ao invés do racismo, é uma solidariedade humana superior às diferenças da pele:

“Mas protege-me, meu coração, de todo ódio,

Não faças de mim um servo do ódio,

Pois só odeio o próprio ódio,

Integra-me, funde-me numa única raça,

Pois conheces meu amor que abrange todo o mundo”

Pela miscigenação, pelo contato direto de raças que convivem através dos séculos, a négritude pode também significar simbiose, harmonia, encontro pacífico, como a reminiscência de uma remota origem parcialmente portuguesa de Senghor, cujo nome é uma corruptela de “Senhor”, nome trazido pelos portugueses a Joal, aldeia natal do poeta, num oásis do sul de Dacar:

“Escuto dentro de mim o canto de voz sombria da saudade.

Será a voz antiga, a gota de sangue português,

Que ressurge do fundo das idades?

Meu sangue português perdeu-se no mar de minha Négritude

Sobretudo, porém, essa consciência africana é fruto da reflexão do negro sobre a as suas características raciais: para o êxtase dessa descoberta de uma identidade própria não há lugar para recriminações coléricas contra o usurpador de ontem nem contra a discriminação que perdura ainda hoje, na África do Sul, nos Estados sulistas dos Estados Unidos. À Négritude falta, por escolha, a revolta amarga de seus contemporâneos norte-americanos cifrada na criação de um Richard Wright, de um Langston Hughes como também não possui o lúcido poder de análise de uma inteligência ativa como a que permeia os ensaios de um James Baldwin. Pois a négritude antes de reivindicar novos territórios, explode em celebração quase mística do seu próprio rosto que contempla agora no espelho, pela primeira vez, assumindo consciência e responsabilidade pela sua condição de negro:

“Mulher nua, mulher negra,

Vestida com tua cor que é vida, com tua forma que é beleza!

Cresci à tua sombra, a doçura de tuas mãos vedava meus olhos.

E eis que no cerne do verão e do meio-dia eu te descubro.

Terra prometida, do alto de um desfiladeiro calcinado

E tua beleza me fulmina em pleno coração,

Como o relâmpago de uma águia.

Mulher nua, mulher obscura,

Fruto maduro de carne firme, êxtase sombrio de vinho negro,

Boca que faz lírica minha boca,

Savana de horizontes puros, savana que vibra

Às carícias ardentes do vento do Leste

Tantã esculpido, tantã tenso que ribomba sob os dedos do Vencedor:

Tua grave voz de contralto é o canto espiritual do Amado.

Mulher nua, mulher obscura,

Óleo que nenhum sopro enruga, óleo calmo no flanco do atleta,

Nos flancos dos príncipes do Olali,

Gazela de vínculos celestes, as pérolas são estrelas

Na noite da tua pele;

Delícias espirituais, os reflexos de ouro rubro e tua pele que se ondeia.

À sombra de tua cabeleira, os sóis próximos dos teus olhos iluminam minha angústia.

Mulher nua, mulher obscura,

Eu canto tua beleza que passa, forma que fixo no Eterno

Antes que o Destino ciumento te reduza a cinzas

Para nutrir as raízes da vida.”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “A Negritude - Transfiguração Poética do Rosto Africano .” In Racismo e literatura negra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 1. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.