Encontrei a frase “os escritores aquém e além da literatura” para designar os três escritores aqui reunidos em um artigo do próprio Leo Gilson Ribeiro sobre Clarice Lispector presente nesta antologia e me pareceu conveniente adotá-lo para nomear a coletânea de textos aqui reunidos.
Ao longo de minha amizade de duas décadas com ele, recordo-me sempre de suas lembranças de episódios relativos a encontros e conversas que havia tido com Guimarães Rosa e com Clarice Lispector. Quanto a Hilda Hilst, bem, essa foi a razão mesma de eu ter conhecido Leo Gilson Ribeiro, pois fiquei muito impactado ao ler A Obscena Senhora D. - obviamente em função de ter lido à época uma resenha do LGR no Jornal da Tarde sobre esse livro – eu queria conhecer a escritora que o criara. Uma amiga me deu como presente de aniversário o suposto telefone da escritora, hoje tornada célebre, mas logo descobri que esse número não era o correto. Mais uma vez, essa amiga me forneceu um número de telefone, mas desta vez do LGR, pois eu lhe havia dito que foi por intermédio de uma resenha dele que eu havia chegado ao livro de Hilda Hilst comprado na saudosa livraria Duas Cidades. Foi assim então que, a fim de saber como eu poderia entrar em contacto com a escritora, que eu acabei telefonando para o LGR e acabamos falando por quase duas horas ao telefone sobre o Zen Budismo e sobre textos sagrados da Índia. Ao final dessa longa conversa telefônica, ele se ofereceu para irmos um dia à Casa do Sol, o que fizemos algumas semanas depois. A partir daí conheci HH, que revi diversas vezes e acabei com o passar dos anos me tornando amigo de LGR. Em nossas tertúlias literárias ao longo dos anos de nossa amizade era constante ele evocar os dois primeiros escritores aqui enfeixados, bem como a Hilda Hilst, a única dos três que ainda estava viva naquele momento, com incontida admiração por suas obras, de modo que essa recolha de textos sobre esses três escritores de quem LGR foi amigo pessoal e cujas obras ele julgava transcender a propósitos meramente estéticos e literários me parece plenamente justificada.
Dado que Clarice Lispector entrevistou seu amigo Leo Gilson Ribeiro para a revista Fatos e Fotos/Gente (nº 822, pp. 38-39) da editora Bloch no dia 23 de maio de 1977, poucos meses antes de ela falecer, e dado que esta entrevista não se encontra no livro Clarice Lispector. Entrevistas (Editora Rocco, Rio de Janeiro, 2007) organizado por Claire Williams, o que infelizmente parece perpetuar um esquecimento imerecido em relação a nosso crítico, julgamos adequado transcrever algumas respostas dadas por Leo Gilson Ribeiro que me parecem bastante esclarecedoras de sua atividade como crítico literário. Respondendo à pergunta de Clarice sobre a razão de ele ser considerado pelas pessoas um crítico ranzinza, ele enumera quatro motivos: “Porque eu quero o melhor para a cultura brasileira. E porque a maioria dos escritores, de qualquer país do mundo, é de uma mediocridade avassaladora. Porque detesto os best-sellers, que prefiro chamar de”bestas-de-selas”. Porque as traduções no Brasil são criminosas, pela incompetência com que são feitas e pelo preço aviltante com que são pagas (e desistimuladas)“. Em outra resposta, ele caracteriza, com a sua ironia habitual, o tradutor brasileiro típico:”um milagre ainda não divulgado no mundo: é um dos poucos que traduzem de um idioma que ignora totalmente para outro que conhece mal, ou seja, o seu próprio.” Essas quatro razões ajudam-nos a entender por que em função desse rigor adotado em suas análises muitos preferem atualmente ignorar nosso crítico ou fingir que ele não existiu ou ainda que não teve nenhuma importância em nossa vida cultural. Depreende-se, contudo, da referida entrevista uma lúcida e eloquente visão que ele tinha da literatura como sendo “o admirável mundo novo, em que coexistem todos os modos de ser e se exprimir possíveis: o naturalismo, a novela psicológica, o poema místico, o romance de especulação filosófica, o poema ético, político, social, popular, aristocrático…”. Por isso, segundo ele, “literatura é sinônimo de democracia viva, de liberdade total, que vai desde Sade até San Juan de la Cruz.” Em poucas palavras, ele exprime com clareza meridiana o modo de redigir seus artigos na imprensa: “eu não posso falar”critiquês”, ou seja, de modo que só os iniciados entendam […] não posso também falar em “linguistês”, ou seja, “em uma análise erudita de um texto, baseada na linguística”, pois “minha maior intenção é justamente o contrário: captar adeptos para a literatura.” Por fim, inquirido por Clarice sobre qual seria exatamente em sua opinião a função do crítico literário, ele assevera: “A de um defensor do leitor, no plano da sociedade de consumo, da difusão de material cultural através dos meios de massa. No nível cultural, o crítico deve ser um elo entre o racionalismo da reflexão que se debruça sobre o mistério da criação literária e a intuição lúcida, que brota do escritor. Em nível de nação, o crítico geralmente preserva os grandes valores de um povo, reconhecendo que eles são tão universais quanto os valores de qualquer outro povo do mundo. A tarefa do crítico brasileiro, hoje mais do que nunca, é integrar o Brasil na sua realidade e na sua época, e esses elementos incluem, geograficamente e no plano da reflexão, da ação e da criação, a América hispânica. Conscientizemo-nos de que somos mestiços: a partir daí, entenderemos que o português ensinou ao mundo como será o futuro. Quero dizer: através da fraternidade, entre todos os seres humanos, não haverá mais ódios raciais nem violência; só tolerância e respeito para com as ideias alheias. Afinal, o salazarismo passou. E a lição de Portugal, que descobriu o mundo, ficou.”
Que essas palavras finais tão otimistas e esperançosas de Leo Gilson Ribeiro possam medrar em nosso país onde atualmente o desrespeito em relação aos outros e a intolerância ante as suas ideias têm grassado de forma deveras daninha em nossa sociedade. Esperemos que logo mais possamos dizer, como ele o fez outrora, que esse horrível tempo no qual vivemos atualmente passará logo e que valores humanos autênticos e verdadeiros de tolerância e respeito às ideias diferentes das nossas possam se expandir e se enraizar em nosso país de modo profundo e duradouro.
Fernando Rey Puente
Reuso
Citação
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doi = {10.5281/zenodo.8368806},
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