A hora das estrelas
Para muita gente que pensa que lê, a literatura é como as prateleiras de uma farmácia: os autores sociais, “engajados”, não se misturam com os “herméticos”, que falam de metafísica, assim como o mertiolate está longe dos psicotrópicos.
Para esses pretensos farmacêuticos da Literatura, uma autora abstrata a maior conquista das Américas, Clarice Lispector, não poderia, de modo algum, retratar “a miséria do Nordeste”. Seria inconcebivelmente como cruzar castas de brâmanes e de intocáveis na Índia.
Quem limita o elemento social da literatura às meras relações econômicas e identifica denúncia do latifúndio em si com grandeza de talento, não consideraria “sociais” as sutilíssimas inspecções que Clarice Lispector vem fazendo, desde o primeiro livro, sobre a incomunicabilidade dos seres humanos entre si, os velhos, as crianças marginalizadas do mundo sólido, pretensamente racional, real e unifacetado dos engenheiros infensos a qualquer indagação não utilitarista, não mensurável por aparelhos científicos, assim como o mistério não se registra na escola binária do computador.
Comprovadamente, percorre toda a gama de contos e romances, crônicas esparsas e ficções curtas da autora pernambucana, um fio contínuo de pluralidade de visões sociais, com o elemento de desníveis econômicos aflorando na percepção do mundo que os personagens têm: as noras pobres do subúrbio desprezadas pelas cunhadas ricas da Zona Sul do Rio de Janeiro em “Feliz Aniversário”, as criadas povoando de inocência e perplexidade o mundo dos apartamentos burgueses onde se desenrolam tragédias mudas de solidão, incompreesão e abandono: a pobreza transparecendo como uma forma diferente de apreender a realidade.
Agora, com este último livro publicado, A Hora da Estrela (Editora José Olympio), seria ridículo afirmar que Clarice Lispector sucumbiu às pressões para que escrevesse um livro “em defesa dos oprimidos” ou que ela aceitasse o desafio absurdo de “provar” que é capaz de escrever sobre os seres que só existem nas estatísticas populacioanais, como o naturalista Zola “provou” ser capaz de criar voluntariamente uma obra romântica.
Não. A raiz oculta de A Hora da Estrela está em qualquer de seus contos ou romances, mas mais evidentemente em “Amor”. A ligação é marcante: um “Amor” (incluído na coletânea Laços de Família) a personagem cenral, acomodada dona de casa, esposa e mãe devotada, de repente tem toda a sua vida bem arrumada sacudida pelo sobressalto de ver um cego, as pupilas vazias, contemplando o Nada, no ponto de bonde. Da mesma forma, em A Hora da Estrela é um olhar furtivo que modifica toda a perspectiva do narrador: “É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina”.
Como um espelho, essa nordestina anônima revela a confusa culpa individual de quem se omitiu da tragédia coletiva: “Ela me acusa e o meio de me defender é escrever sobre ela”. Escrever sobre alguém é transgredir os limites de si próprio, é tocar uma realidade insuspeitada. Baça, indistinguível de milhares de outras nordestinas dentro de uma cidade hostil ou pelo menos indiferente a elas, ela representa um acontecimento real, um fato: “Apaixonei-me subitamente por fatos sem literatura - fatos são pedras duras e agir está me interessando mais do que pensar, de fatos não há como fugir”.
A humildade da moça semi-analfabeta, incapaz de uma revolta, trocável por qualquer outra idêntica a ela na engrenagem que a considera um mero parafuso substituível, se por um lado a aproixma da santidade, por outro rouba qualquer noção de identidade própria, ela é um acúmulo de docilidades e de incompetências: “Ela era incompetente. Incompetente para a vida”. Por isso ela não fazia perguntas: tudo era como era, pré-organizado, inquestionável. Com um envolvimento emocional crescente e tocante, Clarice Lispector retrata, sem comentários, sem retórica, aquela que nem pode ler sobre si mesma:
“Se é pobre, não estará me lendo porque ler-me é supérfluo para quem tem uma leve fome permanente”.
Cada vez mais, o não-ser da nordestina datilógrafa sem ortografia, sem família, crescendo na vida como capim ralo entre os paralelepípedos da rua projeta uma luz de auto-inspecção sobre o autor. Ele se questiona com intensidade maior: ele sabia o que era a realidade? E Deus, o que era? Seu próprio cachorro não comia melhor que a maioria da população de seu país? A própria literatura era supérflua diante da urgência da vida: ele despreza o intelecto para pensar com o corpo, amar aquela criatura que recordava o Nordeste e a infância, com seu gosto de farofa seca na boca e nunca se queixava de nada: dentro de seu limbo impessoal “nunca pensara em ‘eu sou eu’. Acho que julgava não ter direito, ela era um acasso. Um feto jogado na lata do lixo embrulhado em um jornal”.
Não é piedade que ela inspira, pois quem narra quer que seu relato seja frio: é sentimento de culpa - e se tivesse nascido como ela? - é medo, é surpresa pela ausência de revolta. Reveladoramente, o título do livro que a nordestina cobiça na mesa do patrão dado a leitura é justamente Humilhados e Ofendidos de Dostoievsky: “Ficou pensativa. Talvez tivesse pela primeira vez se definido numa classe social. Pensou, pensou e pensou. Chegou à conclusão que na verdade ninguém jamais a ofendera, tudo que acontecia era porque as coisas são assim mesmo e não havia luta possível, para que lutar?”
Como o inseto humanóide de A Metamorfose de Kafka, que se aproximava do som do violino como que tomado pela saudade de uma forma superior de ser, ela também, que ouve rádio, talvez até chorasse, adivinhando na música “talvez que havia outros modos de sentir, havia existências mais delicadas até com um certo luxo de alma”. Quanto a ela, que ilusões podia ter? Ter um futuro era luxo sobreviver era luxo, para ela que “parecia ter nascido de uma ideia vaga qualquer dos pais famintos”, era um consolo saber pelo rádio que havia bilhões de pessoas no mundo: ingenuamente ela crê que eram sete bilhões dispostos a ajudá-la.
Da “raça teimosa dos anões” famélicos da parte do Brasil que aquiesce diante da fome, ela não pertencia “ao clã do Sul”, industrializado, neurotizado, repleto de proteínas e poluição, no entanto ela não teria direito, um dia, ao grito de rebelião? Teria consciência de sua condição de vítima particular de um mundo em que, afinal, todos eram vitimados ou pela miséria ou pela angústia, todos diminuídos pela perda de alguma coisa essencial?
Com ironia lancinante Clarice Lispector disseca esse ectoplasma, essa vírgula dentro de um gráfico de subnutrição nacional: ela gosta de Coca-Cola, a mesma bebida que patrocinou o último terremoto na Guatemala. Traços de humor negro se alternam com o patético da desvalia da moça feia, insignificante quando ela agradece ao médico quando ele lhe comunica que ela está com início de tuberculose pulmonar ou quando responde à pergunta da cartomante, Mme. Carlota que a aconselha a procurar o amor de outra mulher já que o de um homem está tão difícil: “Você tem chance de ter uma mulher?”
- Não senhora”.
Ela não tinha presente nem passado? Ao deitar-lhe as cartas, a ex-prostituta reles lhe prevê um porvir portentoso, deixando-a leve, “grávida de futuro”.
Com segurança, chega-se ao desfecho para aquela que, em menina, na falta de um ser humano ou um bicho, beijava a parede e que não ousava roubar um bombom porque tudo era dos outros.
Clarice escreveu deliberadamente um romance ou conto longo de tema vincadamente social? Tornou-se conscientemente uma escritora “comprometida”? Certamente que não. O social já estava implícito em sua literatura dos impotentes. A protagonista fundamental não é apenas oprimida, mas um ser múltiplo no seu estado comatoso, é um devir que nem a morte pode arrancar: ela revela a grandeza potencial de cada ser humano à espera de redenção total, não só social, ela é o prenúncio do silêncio que sobrevirá com a vinda de Deus à terra: “O silêncio é tal que nem o pensamento pensa”.
Hesitante em um terreno novo, a magnífica autora de Felicidade Clandestina não se “responsabiliza pelo que escreve”, interroga-se se o que está descrevendo não é um meio-drama, cansa-se de descrições, não crê no intelecto para captar o que obstinadamente chama de “a essência das coisas”, essa sua existencialista saudade de Deus e de penetração do mistério. Esta Hora da Estrela, a estrela de cinema Marilyn Monroe, que a nordestina sonhava ser, é um desvendamento, pela comoção, pela identificação do leitor com a anti-heroína desta ficção captada da realidade circundante, de um morno que imitou a aparência da vida. É talvez a primeira incursão da literatura brasileira naquele terreno ético de Kierkegaard em que o ser está condicionado pelo tremor de se saber mortal e pelo temor mesclado à sua crença em um Deus kafkianamente incompreensível e incognoscível. Portanto, é um triunfo de uma lucidez nova sobre um material entrevisto e rude de manipulação. Sem pieguismos, é o mimetismo de uma sensibilidade com uma condição desconhecida de se ser e, portanto, o aprofundamento da linguagem além do meramente estético e constativo para iluminar a apreensão dolorosa de uma verdade.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {A hora das estrelas},
booktitle = {Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa,
Clarice Lispector e Hilda Hilst},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {2},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-2/2-clarice-lispector/06-a-hora-das-estrelas.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1977-11-19. Aguardando revisão.}
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