O teatro político de Piscator

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Diário de Notícias, 1960/03/20. Aguardando revisão.

Ao justificar a construção, por Walter Gropius, do seu teatro total, isto é: aquele que arquitetonicamente circundaria os espectadores, integrando-os nos acontecimentos dramáticos, Piscator formulou com clareza seus propósitos políticos no setor artístico. Para ele – como depois para Brecht, que deve muitíssimo a esse seu importante predecessor – o teatro preenche fundamentalmente uma função social. Ele próprio declara em seu livro autobiográfico: Politisches Theater (Teatro Político, tradução argentina da Editorial Futuro, Buenos Aires), dedicado intencionalmente “ao proletariado Berlim”: “No palco, o homem assume para nós um conteúdo, uma função social. O ponto central (da ação dramática) não são as suas relações consigo mesmo nem suas relações com Deus, mas unicamente as suas relações com a sociedade. Onde quer que o homem surja, surge ao mesmo tempo com ele a sua classe ou camada social. Por mais que a antiguidade considerasse como ponto central (da sua concepção do mundo) a posição do ser humano com relação ao Destino e a Idade Média com relação a Deus (...) a nossa época, para a qual se tornaram atuais as relações universais, a revisão de todos os valores humanos, a revolução de todas as condições sociais, a nossa época não poderá deixar de considerar o homem em sua dependência da sociedade que o circunda, analisando, portanto, o ser humano como ser político”.

Para o movimento de profunda renovação artística levado a cabo pelos diretores e homens de teatro da extrema Esquerda na Alemanha – notadamente em Berlim – na primeira metade de nosso século, a realidade não deve ser apresentada no palco desprovida de um critério crítico. Por conseguinte, o espelho que eles erguem perante a sociedade é deformado propositalmente. O teatro de Piscator denuncia, inicialmente, o status quo social e político de 1914/1918, já pressentido pela veemente geração expressionista, que, sem estar ligada ao comunismo, se insurgira contra o capitalismo, a burguesia e os fomentadores da guerra e da injustiça social que criara a virtual escravização do proletariado. Utilizando os termos de Piscator: “nosso teatro... toma como ponto de partida a realidade atual, a fim de elevar a discordância social ao nível de elemento de acusação e de revolução, tornando-se um fator capaz de preparar o advento de uma nova estrutura político-social”.

É significativo o fato desse genial diretor de teatro assinalar o ano de 1914 como o do início da sua cronologia. Um jovem de vinte anos, então, ele tem de defrontar-se como milhões de outros em toda a Europa, com a Guerra. Deste encontro com a hediondez em sua forma mais caótica e ofensiva à dignidade do homem emerge um novo ser. É também sumamente importante a origem social de Piscator: seus pais eram camponeses estabelecidos na pequena cidade universitária de Marburg, onde um seu antepassado lecionara Teologia na secular Universidade. Como toda a sua geração, Piscator sofreu a influência de Nietzsche e, em seu caso particular, também a de Oscar Wilde, um marginal escorraçado pela “hipócrita sociedade burguesa, ferida pela aridez certeira de sua imaginação brilhante, sua inteligência e seu sarcasmo reveladores da podridão moral dessa mesma burguesia que o condenara”. A apatia das classes “bem pensantes” com relação aos problemas sociais e a avalanche de acontecimentos políticos que conduziram a Alemanha à Primeira Guerra Mundial foram os fatores decisivos na crise espiritual daquele adolescente: “Para mim, um jovem de vinte anos, era incompreensível que uma geração inteira, que passara a vida discutindo sobre a liberdade individual, se abandonasse repentinamente, sem a menor resistência, a essa vertigem global que se apoderara das massas... Eu e muitos outros como eu estávamos entregues a uma desilusão sem limites perante essa bancarrota moral de nossos pais...”.

É durante a guerra, no exército, que Piscator descobre a sua vocação artística, mas a sua recusa moral em aceitar uma atividade relacionada com o teatro é expressa de maneira patética: “Ao mesmo tempo que eu (respondendo ao oficial) declarara ser ator de profissão, pareceu-me este ofício, ao som das granadas que explodiam por todos os lados, tão ridículo, tão absurdo, tão pouco adequado à nossa época, que então senti mais vergonha dessa profissão do que medo das granadas”. A arte, que antes fora um dos seus mais elevados ideais, parece-lhe ser agora uma atividade inútil, supérflua, num mundo em que milhões de pessoas jazem à míngua, sem teto, suas vidas destroçadas pela guerra e pela miséria econômica de sempre. É o jornal Die Tat (A Ação) que vem dar novo alento à sua vida. Dirigido por Pfemfert, este órgão fora o único que se erguera contra a hecatombe da destruição militar e foi nele que Piscator publicou seus primeiros poemas. Antes de ser amordaçado pela censura oficial, Die Tat demonstrou ao jovem ator que a Arte não necessita recuar, horrorizada, perante uma realidade bestial e infra-humana. Este é o ponto culminante da sua evolução espiritual: Piscator encontrou como solução pessoal para seu impasse entre Arte e Realidade a fusão desses dois elementos contrastantes. Daí em diante, a Arte estaria para ele a serviço da revolução político-social, como sucedeu mais tarde também a Brecht: “Eu comprrendia agora claramente que a arte é somente um meio para atingir um fim. Um meio político, propagandista, educador...”. A Revolução Bolchevista de 1917 foi saudada como “um milagre... uma esperança gigantesca...” e, terminada a guerra, Piscator passa imediatamente à ação, fazendo do tablado o seu quartel-general.

Iniciando suas atividades junto ao Volksbühne (Teatro Popular), um teatro para as massas proletárias, moldado no Théatre Libre de Antoine, ele dá forma concreta ao conceito até então teórico de “um teatro que expresse aspectos da vida coletiva, da vida dos operários”. Já o teatro de Hauptmann inaugurara, com seu naturalismo social, a era das peças dedicadas ao problema da miséria dos trabalhadores, das suas lutas e esperanças (Die Weber, Os Tecelões). Agora, porém, tratava-se de uma tarefa mais específica e mais ambiciosa: a de “denunciar os crimes da burguesia” e de literalmente envolver os espectadores no processo histórico desenrolado no palco, para que eles pudessem julgar e condenar os responsáveis pelo flagelo eterno das “classes oprimidas”: “os privilégios dos ricos e dos burgueses, o trabalho forçado nas fábricas, e esqualidez de vidas assoladas pela fome, pelo frio, pela ignorância e finalmente pelo aspecto medonho da Guerra imposto por aqueles que dela exigiam – e tiravam – lucros”. Em 1919, Piscator e Hermann Schüler fundam o Teatro do Proletariado, utilizando a estrutura da Volksbühne como seu instrumento de ação. Declara-se virtualmente guerra sem tréguas ao campo capitalista. No comunicado oficial do Teatro do Proletariado, em 1920, incita-se o grupo ao combate, exclamando-se textualmente: “Ou o comunismo... ou afundaremos de novo na barbárie!” A Rússia de 1917 é saudada como “o rochedo firme em meio ao fragor da revolução mundial”. Propaga-se abertamente a luta de classes. Rompem-se todas as ligações com movimentos anteriores – Expressionismo, Romantismo, Neo-romantismo, etc. – e com seus estilos e problemáticas: o Teatro do Proletariado impõe, acima de tudo, uma expressão direta, sem artifícios, da verdade socialista, a Arte se transforma em mero e consciente instrumento de doutrinação revolucionária das massas. Algumas das diretrizes traçadas são radicais:

“Quase todas as obras literárias burguesas poderão ser utilizadas a fim de, adaptadas para o teatro, poderem ilustrar a decomposição moral da estrutura burguesa e capitalista.

Poderão, conforme o caso, ser introduzidas grandes modificações nas obras levadas à cena, seja eliminando partes e adicionando outras, seja dando maior ênfase a certos detalhes – o essencial é servir à causa do proletariado”.

O teatro passava a desempenhar uma função paralela à da imprensa: as peças tornavam-se um fragmento da vida diárias e competiam com as manchetes dos jornais, palpitantes de realidade, desprovidas de qualquer ornamento ou artifício artístico. Piscator dá-nos ainda particularidades interessantes:

“As decorações eram as mais primitivas possíveis. Ao apresentarmos O Dia da Rússia, usamos um mapa imenso como fundo, que servia para explicar a situação geográfica da cema e esclarecer a sua significação política...”. E precedendo as intenções do teatro de Brecht, afirma-se que “o teatro não deve produzir somente uma reação sentimental nos espectadores, mas deve dirigir-se conscientemente à sua razão, à sua faculdade de raciocínio. Para maior realismo, eram utilizados de preferência operários em vez de atores profissionais, os quais só se juntaram ao grupo mais tarde e que – será necessário dizê-lo? – tinham as mesmas tendências políticas da equipe teatral. Como ressalta Piscator:”o ator tinha que estar plenamente consciente de estar servindo a uma causa claramente determinada, a sua atuação devia ser objetiva e não satisfazer a sua vaidade pessoal...”.

Para arrebatar o público, testemunha dos processos quase jurídicos levados à cena, Piscator constrói estruturas imensas sobre o palco, utiliza a representação simultânea de várias cenas, introduz o emprego – revolucionário – de filmes que ilustram as causas do proletariado, a revolução bolchevista ou a guerra. Cria-se o teatro épico. A iluminação torna-se um elemento fundamental, ativo, que substitui os cenários. “Constrói-se com luz”. Uma crítica dessa época pode dar-nos uma ideia clara do clima dessas representações: “Não se sabe se estamos em um teatro ou em um comício, sentimos que devemos intervir na ação, ajudar, gritar... O espectador sente que tudo que se desenrola diante de si tem um valor real, á parte da vida em si... e ele é arrebatado irresistivelmente pela ação cênica...” (Die Rote Fahne, A Bandeira Vermelha, 1921).

Uma das mise-em-scène mais audazes de Piscator, a da peça Bandeiras, de Paquet, criou uma terrível e ardorosa celeuma entre os críticos e mais tarde determinou o seu afastamento da Volksbühne e a fundação do Teatro Piscator. Essa obra baseia-se no choque entre os operários e os “magnatas dos trustes” em Chicago: “Os operários lutavam pela adoção do horário de oito horas de trabalho diário.

Outras camadas da população apoiaram os trabalhadores, mas Mac Shure, o proprietário de Chicago e de 10.000 operários, subornou a polícia e a justiça. Durante uma reunião pacífica dos proletários, dois espiões lançaram uma bomba no recinto, resultando daí a prisão de todos os líderes da greve e o esmagamento das reivindicações operárias”. É evidente aqui a a afinidade entre esta obra e a Joana nos Matadouros, de Brecht. Piscator ao apresentá-la no teatro monumental do Grosses Schauspielhaus, de Berlim, utiliza letreiros explicativos que precedem as cenas, como no cinema mudo, fotografias dos personagens principais são mostradas junto com o prólogo que antecede a obra, a fim de que elas possam ser facilmente reconhecidas pelo público. Bandeiras – declara o próprio diretor – “foi o primeiro drama épico consciente... o primeiro drama tendencioso... capaz de elevar a obra teatral do seu nível primário a outro mais alto: o instrutivo, o didático...”. Com isso “liberava-se o teatro da sua ‘petrificação’ e de seus atavismos burgueses puramente estetizantes, estabelecia-se uma relação direta, imediata, entre a situação política representada teatralmente e a realidade ambiente”. A peça tornava-se “um documento”, saí por diante, a representação transformava-se “na montagem gigantesca de discursos autênticos, de recortes de jornais, de fotografias e de filmes sobre a guerra”, a sala e o palco integravam-se num todo uno e indivisível. Obtivera-se o propósito fundamental da dramaturgia comunista:

“Em uma época de máximo explendor – afirma Piscator triunfante – o teatro estava profundamente ligado à vida da população, do público. Hoje, que a imensa massa do povo quer intervir na vida política e dar à estrutura do Estado seu conteúdo próprio, o destino do teatro, se ele não quiser ficar reduzido a uma fonte de prazer para quinhentos eleitos apenas, deve estar ligado forçosamente – na prosperidade e na ruína – às necessidades, às exigências e aos sofrimentos da massa. Em última análise, o teatro tem como missão única despertar, nos que afluem à sala de espetáculos, tudo que está adormecido no seu subconsciente...”.

É evidente que podemos insurgir-nos contra essa utilização abusiva e unilateral do teatro, que o transforma em mero instrumento de propaganda política. No entanto, desconhecer as realizações artísticas – revolucionárias – do comunismo seria ignorar uma das mais importantes manifestações da dramaturgia de nossa época, que atinge, com Piscator e Brecht, dois de seus pontos máximos. Devemos sempre distinguir entre conteúdo político e conteúdo artístico, dando a primazia a este sobre aquele, certos de que nossas sólidas convicções democráticas não poderão ser abaladas por uma apresentação manifestamente tendenciosa da realidade. Cremos que eliminar a priori toda e qualquer produção artística que provenha da “Cortina de ferro” seria reduzir lamentavelmente nossos horizontes artísticos. Um dos mais eminentes teatrólogos americanos da atualidade – Elmer Rice – cuja formação democrática nem seus adversários mais fanáticos poderão pôr em dúvida, afirma em seu livro The Living Theater: “é decisivamente falso afirmar que o teatro soviético esteja unicamente a serviço da propaganda comunista e que, portanto, deva ser considerado insignificante e sem valor. Ao contrário, o teatro da União Soviética é, em seu conjunto, um dos mais interessantes do mundo, social e artisticamente, sendo a propaganda só uma de suas funções...”.

Se, para o comércio tão lucrativo com os países comunistas, é invocado o critério de “venham as mercadorias, fiquem as ideologias”, com infinitamente mais razão podemos exigir, do elemento imponderável da Arte, que não sejamos privados do contato com essas renovações artísticas importantes do nosso tempo. Ao reconhecermos que no teatro político, há sempre, malgré soi-même, um conteúdo artístico, podemos também abster-nos de ser ludibriados por sua doutrinação declarada. Durante seus últimos anos de vida, Brecht desesperava-se porque o Ocidente, se entusiasmava com o valor artístico de suas obras e não, como ele quisera, pelo seu conteúdo marxista. Da mesma maneira que admiramos Shakespeare, o teatro grego e espanhol, sem com isso aceitarmos os seus cânones morais e sociais, saberemos distinguir os elementos diversos que compõem o teatro comunista.

Reuso

Citação

BibTeX
@incollection{gilson ribeiro2023,
  author = {Gilson Ribeiro, Leo},
  editor = {Rey Puente, Fernando},
  title = {O teatro político de Piscator},
  booktitle = {Aspectos do Teatro Contemporâneo},
  series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
  volume = {11},
  date = {2024},
  url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-11/02-o-teatro-doutrinario-marxista-na-alemanha-precursores-e-sucessores/03-o-teatro-politico-de-piscator.html},
  doi = {10.5281/zenodo.8368806},
  langid = {pt-BR},
  abstract = {Diário de Notícias, 1960/03/20. Aguardando revisão.}
}
Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “O teatro político de Piscator .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.