Virginia Woolf. Pensamentos ainda brilhantes, 40 anos depois
“Nossos contemporâneos nos afligem porque cessaram de crer” V. Woolf
Há 40 anos a grande literatura inglesa desaparecia entre um ataque devastador da Luftwaffe - a aviação alemã - com bombas incendiárias sobre toda a Inglaterra, e uma nova crise de profunda depressão da romancista Virginia Woolf. Em seu bilhete deixado ao marido, Leonard Woolf, ela prevê que não resistirá a outro ataque (derradeiro sinal da loucura que já a tinha levado várias vezes a instituições de tratamento mental), alega que não quer estragar a vida dele premeditadamente e se afoga no rio Ouse. Em seu vestido encontraram-se pedras pesadas costuradas com fio grosso para impedir que seu corpo, tocando o fundo das águas emergisse. À beira do rio, sua bengala e seu chapéu de palha.
A grande maioria da crítica realça o pioneirismo de James Joyce na renovação drástica do próprio conceito de literatura, indicando Finnegan’s Wake como a talvez mais radical tentativa estilística e filosófica de uma reflexão sobre a vida e a arte através da palavra. No entanto, ao destacar apenas os dois livros do período médio da criação literária de Virginia Woolf – Mrs. Dalloway e To The Lighthouse – essa parte da exegese se esquece ou deixa de lado propositalmente a meta árdua que Virginia Woolf colocou diante de si mesma e que, em certos pontos, ultrapassa até mesmo as conquistas de Joyce.
Virginia Woolf, certamente, admiradora do Ulisses de Joyce e até influenciada pela ousadia de captar a associação livre, ilógica e sem cronologia dos pensamentos que formaram o conceito de stream of consciousness, ficou, porém, muito mais perto da vibração humana da literatura, não a tornando um abstrato jogo cerebral sofisticado como o puzzle Finnegan’s Wake. Esta é uma obra de deleite e de adivinhação de seus labirintos e alusões, de sua colcha de retalhos de neologismos, de variantes dialetais irlandesas e termos caídos em desuso ou usados, de forma deslumbrante, mas enigmática, pelo autor de The Dubliners. Virginia Woolf, uma das primeiras vozes na Europa a exaltar o empreendimento de Marcel Proust em recapturar a durée bergsoniana do tempo congelado na Arte e na sua evocação duradoura, foi mais democrática, com toda a estrutura aristocrática e erudita da sua criação literária, do que o hierático e por vezes indecodificável autor irlandês.
Virginia Woolf estava muito próxima de E. M. Forster, o autor que se atrevera a detectar e revelar o racismo e o complexo de superioridade britânicos a par do esnobismo e da inescrupulosidade da colônia inglesa na Índia em seu magnífico A Passage to India. Se Forster tinha como um de seus alvos a igualdade racial, a fraternidade socialista não marxista da Sociedade Fabiana, Virginia Woolf tomara a si, contra sua própria vontade, também a missão pioneira de desmascarar o machismo em seu admirável A Room of One’s Own, um dos primeiros alertas contra a discriminação que ao mesmo tempo que negava os votos às mulheres lhes vetava o acesso às universidades. Ela relata esse contraste de, autora célebre, ser convidada a pronunciar uma conferência na Universidade de Cambridge e ter sua entrada na biblioteca dessa vetusta instituição arcaica de ensino superior barrada “porque aqui não se admitem mulheres”.
O feminismo – veja-se o seu brilhante ensaio sobre Jane Austen como sua predecessora na literatura inglesa – era, porém, apenas um dos aspectos da sua incursão e certamente não o principal deles. Em Orlando, seguramente um de seus livros mais fracos, ela faz não só as épocas como igualmente o sexo do personagem principal mudarem, mostrando que as aparências não mascaram a realidade da ambivalência humana e que o puritanismo que massacrara a obra de D. H. Lawrence e sua libertação da libido reprimida pelos padrões vitorianos era antiético e obsoleto.
Virginia Woolf queria certamente mais: queria livrar o romance da pregação de sermões de edificação moral como Fielding, Sterne, Richardson e constatar, não por meio de evasivas e tangencialmente como Jane Austen, mas claramente e com destemor que a moral vigente do colonialismo, da guerra, da industrialização massificadora e anonimizante diferenciava-se irreconciliavelmente da moral do artista, consciente da liberdade individual, dos valores democráticos de fraternidade, igualdade perante a lei e supremacia do intelecto e do caráter sobre as origens nobiliárquicas ou de riqueza.
Ela aproximou-se mais do que nenhum outro autor da riquíssima literatura inglesa, do ideal dos pintores impressionistas franceses, Manet, Monet, Pissarro: captar o fugidio da luz, da cor e captar simultaneamente o evanescente dos estados de espírito, dos sonhos sopitados, das frustrações e melancolias do ser humano no mistério indecifrável do Tempo e suas mutações inelutáveis.
Em The Waves (As Ondas), são seis personagens que, através dos anos, se desenham como sensibilidades e inteligências díspares em contato com a natureza cambiante, com os eventos líricos, grotescos ou trágicos da existência humana. Em Mrs, Dalloway é a trajetória de várias pessoas que não se conhecem umas às outras e que se enfeixam no prisma focal da personagem-título: o amante que desesperado partira para a Índia, o soldado enlouquecido pelo estouro das granadas durante a guerra, o marido vazio, pomposo e de elevado cargo na hierarquia do poder – tudo se desvanece diante do Nada da morte inesperada, da futilidade da aparência contrastando vivamente com a solidez dos sentimentos humanos a que ela, tolamente, renunciara.
Durante mais de 30 anos crítica literária eminente do Times de Londres, integrante do movimento literário de renovação denominado vagamente de The Bloomsbury group, pois era nesse bairro elegante de Londres que quase todos os seus integrantes moravam, ela é uma das mais requintadas mentes da literatura deste século e uma das mais cultas, sem nenhuma pomposidade de erudição.
Até hoje seus ensaios esplêndidos do The Common Reader ou Granite and Rainbow brilham com frases profundas e indeléveis sobre a tragédia grega, os novelistas russos, e até mesmo sobre os pensamentos que perpassam pela mente de um povo acossado pela Blitzkrieg nazista, enquanto os aviões num raio aéreo espalham incêndios, morte e destruição. Não era, contudo, a guerra que Virginia Woolf mais temia, embora como ser civilizado a achasse um resquício do brutalismo do homem das cavernas. Em uma de suas últimas anotações em seu imenso Diário, ela anotou, meses antes do suicídio, gravando um dia furtivo de felicidade no campo, abandonada sua casa devastada em Londres pelos bombardeios do Hitlerismo:
“Se não fosse traiçoeiro dizê-lo, um dia como este é quase demais – não feliz, mas receptivo, tratável. A canção varia de uma bela melodia para outra. Tudo de desenrola (hoje) em tal teatro. Colinas e campos: não consigo parar de olhar. Outubro floresce. Arado marrom, e as cores que recendem e se avivam no brejo. Agora o nevoeiro se levanta. O globo gira de novo em torno de si mesmo.”
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Virginia Woolf. Pensamentos ainda brilhantes, 40 anos depois},
booktitle = {As três grandes damas da literatura europeia: Virginia
Woolf, Marguerite Yourcenar e Doris Lessing},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {7},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-7/01-virginia-woolf/03-virginia-woolf-pensamentos-ainda-brilhantes-40-anos-depois.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1981/4/3. Aguardando revisão.}
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