Ionesco e a Expressão da Angústia

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Diário de Notícias, 1961/10/29. Aguardando revisão.

No teatro de vanguarda francês, além da imprecisão do cenário a que aludimos, há uma indefinição total também dos figurinos. Os personagens como os mendigos de Beckett e os pequenos burgueses de Ionesco, sendo seres desprovidos de vida própria e de uma personalidade que os caracterize dos demais, suas roupas passam a ter cores neutras. feitios uniformizados, já que vestem todo mundo e ninguém.

Mas como conteúdo essencial dos autores contemporâneos franceses no setor da dramaturgia ressaltam duas diretrizes fundamentais: a da provocação ao espectador habituado “ao teatro que é mero entretenimento, ao teatro digestivo” e a da angústia que determina no espectador mais sensível que se debruça sobre o vácuo simbólico daquelas figuras que se arrastam inutilmente pelo palco.

Como já ressaltou a crítica especializada francesa, a parte decisiva, do ponto de vista formal, se encontra, no teatro de vanguarda, na natureza do diálogo. Pode-se dizer quase que o diálogo passa agora a constituir como que a ação exclusiva dessas peças revolucionárias em sua técnica e em sua mensagem. O autor de teatro tradicional conduzia o espectador à análise das paixões humanas e dos caracteres apresentados em cena utilizando uma linguagem que era comum a ambas - ao autor e ao público. Até mesmo autores que determinariam as mais profundas modificações no panorama do teatro moderno - Strindberg e Buechner, Wedekind e Ibsen - basearam-se no terreno comum da comunicabilidade entre o criador e o espectador. No teatro de vanguarda a linguagem enigmática, voluntariamente inacessível utilizada pelo dramaturgo constitui um atributo francamente provocatório. O escritor se recusa a identificar-se, por meio da linguagem, com o público e só alguns espectadores captarão como que a mensagem cifrada, em código, que ele lhe transmite. As situações trágicas, sórdidas, belas ou cômicas são sempre transmitidas por meio de uma enxurrada de palavras sem concatenação lógica quase e que em vez de seduzir ou comover o espectador - como no teatro tradicional - destinam-se francamente a conturbá-lo e a aliená-lo de si mesmo. Neste ponto, os dois extremos, o teatro de vanguarda ocidental - mais afastado da análise direta dos problemas sociais, especificamente – e o teatro marxista - dedicado quase que exclusivamente à apresentação de teses sociais e ideológicas, se encontram, Naturalmente, a linguagem passa a ser uma linguagem nova. Inédita, estranha, que arranca o espectador do centro de suas associações mentais bitoladas e das imagens que lhe são familiares.

Fique bem claro, porém que não se trata, absolutamente, de mera magia verbal, de magnífica criação literária através de linguagem esplêndida de um Giraudoux ou de Claudel. Como anota Jean Vannier, um eminente crítico do Théatre Populaire. A linguagem passa a ser uma forma de interjeição, fazendo a palavra humana regredir à fase pré-linguística da expressão. A palavra substitui a ação e o enredo, mas também substitui o pensamento, para se tornar grito, brado, expressão emotiva. Daí portanto o diálogo e o monólogo assumirem a função teatral da representação cênica em si, num fluxo interminável de palavras que procura meramente ocultar o vácuo de sentimentos e de pensamentos do ser humano atual, na sombria apreciação dos autores de vanguarda. Todas as relações humanas se travam então no plano da linguagem, a ação em si passa a um nível secundário. Exatamente da mesma forma que Brecht colocava as ações humanas no palco para que o público as julgasse como juiz supremo, os autores de vanguarda colocam em cena as palavras por meio das quais os seres humanos se comunicam – ou mais precisamente - por meio das quais os seres humanos não conseguem comunicar-se, ilhados em sua solidão invencível.

Mas, como será fácil deduzir-se a palavra passa a ser o espetáculo em si, cria-se com isso, consequentemente, o antiteatro, já que o teatro implica forçosamente a movimentação cênica que complementa o diálogo e o enredo que the serve de fio condutor, a fim de evitar meras conversações transcritas no palco. A palavra conduz à sua autodestruição pela instituição do absurdo: ora, principalmente no teatro de Ionesco, qual é a obsessão fundamental de todas as suas peças? No teatro de Brecht constata-se facilmente a sua preocupação com o capitalismo e suas instituições, no teatro americano atual o sufocamento e a frustração dos personagens em seu cruel e sombrio convívio humano. No teatro de Ionesco, a obsessão fundamental que o leva a escrever, é a documentação da esterilidade do lugar-comum, da frase feita, “dos provérbios que encerram a sabedoria popular” e que são contraditórios entre si, ora aconselhando a prudência, como “mais vale um pássaro na mão do que dois voando” ora, ao contrário, exaltando o risco e a audácia: “quem não arrisca não petisca”. A crítica que Ionesco formula pode ser talvez resumida assim: vivemos em meio a pessoas que são incapazes, na sua esmagadora maioria, de pensar por si próprias, pessoas que meramente repetem os clichés e as frases feitas recebidas da imprensa, dos líderes políticos e religiosos, da publicidade, do cinema e da televisão. A alma dessa sociedade passiva, dessa sociedade de autómatos, é a estupidez. dela se derivando, como consequências quase involuntárias, a indiferença à sorte alheia, o egoísmo feroz, a insegurança monetária. O meio pequeno burguês que é, como diz o próprio Ionesco, aquele contra o qual ele se revolta, é exposto assim em toda a sua indigência mental, em toda a sua impotência volitiva e sua passividade e receber julgamentos já feitos. Seu ridículo é denunciado da maneira mais cabal e convincente possível. Paralelamente a Kafka, que Ionesco confessa ser o autor que considera superior a qualquer outro de nosso século, sem exceção, o autor de A Cantora Careca surge, portanto, em nossos dias como o cronista teatral do absurdo, da hostilidade dos homens entre si, da malignidade dos pensamentos e ações dos seres humanos uns com os outros. Ao contrário de Kafka, porém, enraizadamente trágico em sua essência, Ionesco desvenda, as mesmo tempo que a angústia e o lado trágico da vida, com seu absurdo visceral, a condição pateticamente risível e ridícula do homem. Seus personagens falam sem nada dizer, utilizando todos os lugares comuns tradicionais que revelam o deserto mental de seu interior. Suas reações estandardizadas, mecanizadas, perante situações incomuns causam hilariedade pelo absurdo que contém.

Da mesma maneira, por conseguinte, que em seu magistral conto, A Metamorfose, Kafka se transforma em monstruoso inseto por ter renunciado à sua própria personalidade e por se submeter às leis imperiosas da maioria, em O Rinoceronte, Béranger será o único que não se transforma em rinoceronte – o símbolo da aceitação paquidérmica da estupidez e da agressividade violenta contra os demais – por não se render às frases feitas, ao conceito do “todo mundo diz, todo mundo faz, não fica bem” etc. Ele luta até o fim da peça para defender sua individualidade medíocre em si, ele se recusa peremptoriamente a ser absorvido pelo anonimato da maioria.

A linguagem de seus personagens não resiste a uma análise racional, pois ela é constituída meramente de frases desconexas e até mesmo de jogos verbais com certos sons da língua francesa. As falas dos personagens não têm encadeamento lógico, pois não constituem a expressão de uma ideia, de um pensamento ou de um sentimento autêntico. É fácil constatar que a palavra, dita pelos personagens de Ionesco, se desumaniza, como todas as relações entre os seus personagens são essencialmente relações de desumanidade do homem para com o homem. Essa torrente de palavras, insistimos, equivale, na realidade, a um total silêncio, simbólico da impossibilidade de comunicação de que sofrem os seres humanos e da sua impossibilidade de lançar pontes de suas ilhas solitárias, unindo-as uma às outras. Por esse motivo, em Jacques ou la Soumission, como já ressaltou Vannier, no final da peça uma única palavra: chat (gato) passa a substituir todas as outras palavras da língua francesa, pois já que as palavras em si não têm um significado definido, um único som escolhido arbitrariamente, ao acaso, poderá substituir todos os outros. Na última cena, efetivamente, Jacques e Roberte têm o seguinte diálogo final:

“Roberte – Oh, meu gato!

Jacques – Minha gata, minha castelã (um jogo de palavras em francês: chat e châtelaine).

Roberte – Em meu castelo (chateau) tudo é gato.

Jacques – Tudo é gato.

Roberte – Para designar as coisas usamos uma só palavra: chat. Os gatos se chamam chat, os alimentos chat, os insetos chat, as cadeiras chat, você chat, eu chat, o teto chat, o número um chat, o número dois chat, três chat, vinte chat, trinta chat, todos os advérbios chat, as preposições chat... É fácil falar...

Jacques – Para dizer: vamos dormir, querida?

Roberte – Chat, chat...

Jacques – Para dizer: traga-me massas frias, limonada quente, mas nada de café?

Robert – Chat, chat, chat, chat, chat, chat.

Jacques – E como se diz Jacques e Roberte?

Roberte - Chat, chat (Ela mostra sua mão que tem nove dedos e que ela trazia oculta sob o vestido).

Jacques – É fácil falar... nem vale a pena... (percebendo a mão com nove dedos): Oh, você tem nove dedos na mão esquerda? Você é rica, vou me casar com você!”

Da mesma maneira, Ionesco nos lança no abismo do nada e do silêncio aterrador quando em As Cadeiras surge o orador que se dirige a uma humanidade fictícia e que lhe trará a mensagem final e salvadora. Perante as cadeiras vazias no palco, ouvem-se unicamente de sua boca “gemidos, estertores, sons guturais de um mudo”. Essa é a aterradora mensagem final: o silêncio angustiado de alguém incapaz de falar.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Ionesco e a Expressão da Angústia .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.