Revolução

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1978/07/01. Aguardando revisão.

O jornalista e historiador norte-americano Harrison E. Salisbury levou décadas, na União Soviética, examinando mais de 600 fontes de informação para escrever as 599 páginas de seu livro sobre as duas revoluções russas: a de 1905 e a de 1917. Publicado recentemente nos Estados Unidos, seu título é tirado dos versos do poeta Aleksander Blok: Black Night, White Snow: Russia’s Revolutions 1905-1917. Salisbury é autor de muitos outros livros, a maioria sobre a história política da URSS e sobre o comunismo. É também ganhador de muitos prêmios. Um deles: o Pulitzer.

Surdamente, numa fortaleza distante de São Petersburgo, naquela gélida manhã de 1887, os martelos nas mãos dos carpinteiros construíam cinco forcas para estudantes universitários cuja amadorística tentativa de jogar uma bomba na carruagem do Czar Alexandre III falhara. Um dos jovens prisioneiros, Aleksander Ulyanov, não vacilou ao subir os degraus toscos do cadafalso: gritou com seus companheiros antes que sua língua arroxeada emergisse de sua boca escancarada e seus pés girassem macabramente no vácuo:

- “Viva a Narodnaya Volya!”. E, contrito, beijou o crucifixo que mãos piedosas lhe estendiam aos lábios.

Narodnaya Volya – a Vontade do Povo – era uma célula liberal de oposição aos poderes absolutos do Czar que fracassara em matar o tirano porque os detonadores das bombas – que nunca chegaram a explodir – estavam com defeito; e sobretudo porque a Censura e a polícia imperial descobriram, numa carta interceptada, a conspiração imediatamente esmagada.

O soberano estava irredutivelmente furioso com tanta ingratidão. Que mais queria do Poder Imperial? Seu próprio pai, o meigo Alexandre II, não tinha sido assassinado depois de abolir a escravidão dos servos da gleba, os milhões de lavradores misérrimos e sem terra, que cuidavam a terra para seus nobres senhores feudais? Que mais queriam arrancar do Trono que há 300 anos colocara todo o vasto Império russo sob a proteção dos Romanovs, com seu símbolo da águia negra de duas cabeças? O que exigia mais ainda a maldita intelligentsia, aquele punhado de escritores, revolucionários, intelectuais, estudantes e até nobres como o Conde Tólstoi.

Aquele punhado heterogêneo de opositores do regime queria abolir o último poder autocrático da Europa, que acorrentava a Rússia inteira ao pântano do mais negro obscurantismo, uma sociedade dia a dia mais anacrônica depois da Revolução democrática de 1776 nos Estados Unidos e da queda “sacrílega” da Monarquia Absoluta na Paris do Terror dominada pela “canalha” popular em 1789. Todos participavam da usurpação: como déspotas, como vítimas ou como seus inflamados intermediários: a consciência da Nação.

Um verbo minava todo o Poder e pairava sobre todas as palavras, conspirações, debates e lutar: o verbo fazer ou agir. A famosa reflexão de Nikolai Tchernyshevsky, “O que fazer?” (“Cto delat?“) empolgava todos os salões aristocráticos, os cafés dos artistas boêmios, as universidades e os arquitetos de complôs terroristas. Tólstoi também ecoara a apreensão ética de sua época em que todos estavam engolfados como partícipes de um destino comum. Seu ensaio profundo –”O que devemos fazer?” (“Tak cto nam delat?”) – ampliava para a coletividade a abstração da pergunta. Mais tarde até Lenin não fugiria à onipresença da interrogação moral, encabeçando um de seus famosos artigos justamente com a questão: “O que deve ser feito?”

Porque fazer era encontrar o remédio prático e expedito para um diagnóstico que só o Olimpo dos Czares e da maioria da nobreza impermeável a qualquer mudança não conseguia ver: a Rússia era um gigantesco campo de concentração de lavradores sem terras e de operários exauridos. Nas fábricas daquele acelerado processo incipiente de industrialização trabalhavam até caírem de exaustos, “recompensados” com alguns kopeks (vinténs) crianças de seus anos de idade, mulheres nos últimos meses de gravidez, anciães e adolescentes tuberculosos, vigiados por capatazes uniformizados, os Cossacos autorizados a chicotear até morrer quem ousasse protestar contra a média de 15 horas e meia de trabalho ou contra as favelas de madeira em que sem amontoavam famílias acossadas por piolhos, promiscuidade, frio e fome.

Nem os professores viviam muito melhor. Com esmolas recebidas à guisa de “proventos” (de seis a sete rublos), muitos deles dormiam em macas ou sobre um monte de palha nos cantos glaciais de suas salas de aulas. Uma professora, A. M. Yeremeyeva, morreu de inanição quando as autoridades “se esqueceram” durante dois meses de lhe enviar os miseráveis sete rublos e meio que a mantinham viva.

Ao mesmo tempo, porém, “o que fazer?” era a pergunta mais perigosa que se podia formular em toda a história da Rússia. A Imperatriz Catarina II, aterrorizada pelas notícias da Revolução Francesa de 1789, mandou condenar à morte, no ano seguinte, o escritor liberal Aleksander Radichtetch por aventurar-se a anotar que “minha alma está ferida pelo sofrimento da humanidade”. Clamar por liberdade, justiça, democracia, fraternidade sempre foi um crime inominável, só punível com a morte, o internamento no hospício ou o exílio, as três clássicas armas da autocracia russa até hoje – afinal, o poder ilimitado, a sabedoria divina dos clarividentes donos do poder – de Catarina a Brejnev – era um assunto dogmaticamente inquestionável. O pensador Pyotrk Chaedayev declarou que a Rússia é uma nação egoísta? Incontinenti uma junta médica o declarou “louco incurável”. Dostoiévski e Tchekov apelaram para a piedade e a solidariedade com os “humilhados e ofendidos”? A cadeia em companhia de criminosos comuns e tarados os curará de tais infantilidades. Radichtetch compôs uma “Ode à Liberdade” cujas estrofes atacavam à escravidão, pediam a liberdade de culto – tabu tão intocável para a Igreja Ortodoxa Russa quanto para o Catolicismo da Inquisição espanhola -, chegando ao extremo de pedir liberdade política, o fim da Censura e a criação de um blasfemo Estado de absurda igualdade judicial de todos perante o império da Lei? Só o aniquilamento físico poderia sufocar tais heresias.

Para que a Rússia Sagrada precisava do Renascimento italiano, da Reforma alemã, da Revolução americana? Antes de assinar a sentença do jovem Aleksander Ulyanov, um dos cinco terroristas executados após a descoberta de sua juvenil conspiração, o Csar Alexandre III não hesitou em comentar à margem dos escritos de seu súdito rebelde que queria a democracia: “Isto é puro Comunismo!” E o soberano partiu de férias rumo ao Mar Negro, de clima ameno e quente. Não sem antes agradecer com o prêmio de mil rublos a cada um dos policiais que por acaso descobriram o complô contra a sua vida, colocando-lhe nos peitos leais medalhes de um imperial ouro rutilante.

Aleksander Ulyanov, no entanto, não morrera em vão. Seu irmão mais moço, Vladimir Illytch, tornara-se, com aquela morte prematura, o chefe da família. Aos 17 anos de idade e naquela época o segundo filho do inspetor escolar, Ilya Nikolauevitch Ulyanov, não tinha ainda nenhuma visão política. Admirava o irmão e em tudo o imitava. Mas não acreditava que quem, como Alex, acordava cedo para estudar os vermes da espécie annelida sob o microscópio pudesse ser um revolucionário. Só muitos anos mais tarde Vladimir Illyitch assumiria, entre 151 pseudônimos, aquele que o tornaria mundialmente famoso: Lenin.

A família Ulyanov era unida, cheia de afeto, de alegria – e de livros. A mãe, em solteira Mariya Aleksandrovna Blank, de origem alemã, era cultural e socialmente de uma camada superior à do marido, mas ambos viam com bons olhos a criação de um “jornal” feito pelos filhos e tanto ela quanto ele mantinham em casa uma biblioteca farta e vivíssima, da qual todos liam avidamente. Lenin preferia Ivanhoé de Walter Scott, a ficção científica precoce de Jules Verne, Fenimore Cooper e seus exóticos índios norte-americanos em rápido processo de extermínio, Dickens e, naturalmente, os autores clássicos russos: o fabulista Krylov e os poetas e novelistas: Gogol, Lermontov, Puchkin. Além da paixão pelo jogo de xadrez, os filhos da família Ulyanov adoravam brincar de soldados, o divertimento predileto de Lenin desde criança. Seu irmão Aleksander insistia sempre que “seus” soldados tinham que ser italianos, comandados pelo herói Gribaldi. Lenin preferia o exército yankee, reservando para si mesmo o papel de comandante-em-chefe das tropas da União, Lincoln. Lincoln era o ídolo da família inteira desde que a tradução russa de A Cabana do Pai Tomás, o eloquente libelo contra o cativeiro dos negros nos Estados Unidos, chegara até a biblioteca daquela tranquila casa rural perto das florestas verdejantes e do rumor musical das águas do rio Volga a correr por trás do quintal. Embora ampla, a casa estava suficientemente perto da prisão local: o eco das correntes, dos gritos e lamentações dos presos se completava com a visão fugidia de seus rostos macilentos entrevistos por instantes quando surgiam encostados às janelas protegidas por grades pesadamente maciças. O jovem Vladimir (Lenin) era um aluno exemplar no ginásio: obediente, polido, escrupuloso e terminou os estudos com distinção em todas as matérias exceto uma única: lógica. No plano doméstico, seu único defeito era um alarmante sadismo verbal precoce e aniquilador imediatamente punido por sua mãe, revoltada com o sarcasmo e a arrogância de seu filho mais vivaz, agora que Aleksander enlutara seu coração opondo-se, Deus!, pela violência do Czar, representante do divino direito dos reis de reinar sobre a Terra e símbolo de uma sociedade que precisava ser aperfeiçoada, sem dúvida, mas sem cuja estabilidade o país sucumbiria no caos.

Os passeios na floresta, os banhos no rio, os jogos, as deliciosas festas de Natal, o aconchego de uma família em que todos se amavam sinceramente, a efervescência intelectual das leituras e discussões apaixonadas, a aplicação nos estudos – tudo, porém, cedeu ao trauma da execução do irmão mais velho. Vladimir raciocinou que o uso indiscriminado do terrorismo em massa custara a vida a seu irmão idolatrado e exemplar. A linha reta para abater a tirania, ele raciocinou, não era a mais curta para se derrubar o despotismo. Optou então por uma estratégia de tangentes e curvas, avanços e recuos que caracterizaria daí por diante toda a sua atividade política clandestina e obcecada pela disciplina cega: um calculismo gélido de tão despojado de toda e qualquer manifestação emotiva ou aceitação de uma coligação de forças com aliados contra o inimigo comum que não se colocassem sob a sua onisciente direção todo-poderosa, além de uma atividade ininterrupta de conspirações secretas até um grau patologicamente obsessivo.

Apesar, contudo, de todos os esforços do aparato oficial soviético em implantar postumamente no jovem mártir Aleksander um ideário marxista, seu credo era puramente liberal, democrata e progressista, sendo impossível provar-se que ele jamais tivesse lido Marx antes do atentado e seu desenlace funesto. Aleksander Illyich Ulyanov levantava como sua a Bandeira que era a de todas as classes educadas e esclarecidas da Rússia assediada pelo insidioso e perene aguilhão do verbo e da indignação esmiuçada extenuadamente: o que fazer? De fato, o punhado de idealistas adolescentes que se reunira em torno do abortado movimento de liberação denominado “A Vontade do Povo” tem muito mais em comum com os ideais social-democrata dos países escandinavos de hoje ou das poucas democracias que restam no Ocidente, sem conotações marxistas.

Possivelmente, depois que o II Concílio Vaticano optou pela sua participação ativa, a Igreja Católica, em vez de seu imobilismo e sanção dos poderes autocráticos, endossaria como Igreja aggiornata e em processo de volta às origens do Cristianismo (ou sobrevivência pela atualização, conforme a perspectiva do observador) as palavras dinais de Andrei Jelyabov, que já em 1881 proclamara diante do tribunal que o julgava:

“Creio na verdade e na justiça da Fé cristã e solenemente proclamo minha convicção de que a Fé sem atos é uma Fé morta e que todo cristão autêntico deve lutar pela justiça, pelos direitos dos oprimidos e, se necessário, deve sacrificar-se por causa deles: esta é a minha Fé.”

O trauma da morte do irmão aprofundou suas raízes no âmago da personalidade de Lenin. Ele passou a isolar-se numa torre de leitura incessante e seu arsenal intelectual era eclético: poemas de Nekrasov, teorias sobre estética, textos em prosa do mestre Turgeniev, livros sobre a liberdade do inglês John Stuart Mill, tratados filosóficos de Hegel, obras sobre o materialismo ou ensaios de Belinsky sobre a questão da escravidão dos camponeses. Turgeniev lhe deu o primeiro ponto de apoio definitivo. Em seu livro As Horas, o magnífico romancista aludia à “firmeza inquebrantável de propósitos” como alicerce fundamental para o êxito em qualquer empreendimento. Outro autor, Andrei Kolosov, cimentou esse degrau inicial com a máxima adotada com entusiasmo perene por Lenin: sem dedicação total, a vida inteira, a um propósito único, tudo o mais é inútil. Todos esses textos, entretanto, eram a arquitrave indispensável para mergulhar nos estudos de Marx e na sua teoria da dialética. E acima de todos os rumos apontados, Lenin encontrou no volume O que fazer? de Tchernytchevsky, o aríete com o qual, um dia, ele estava certo de pôr abaixo toda a estrutura carcomida da velha Rússia esclerosada pelo despotismo.

O que fazer? não era mais uma indagação nem uma estratégia, era uma bíblia, um dogma indiscutível que ele lera e anotara cinco vezes em seguida e que relia regular e atentamente. Que lição tão decisiva ele extraiu de O que fazer? Que diretriz de Tchernytchevsky abraçou com devoção total e sem questioná-lo nunca? A única opção, “o único caminho para uma pessoa responsável e pensante”, anotara Lenin à margem, ao entregar-se incondicionalmente ao caminho revolucionário, é o caminho que traz como corolários inevitáveis: 1º) condenar sem tréguas “toda espécie de liberalismo que, pela sua própria essência é covarde, infame e criminoso”; 2º) “não fazer concessões nunca, com pessoa alguma nem com nada: a intransigência e a dedicação devem ser totais, absolutas, incondicionais”. Era uma teoria, era uma balística, era uma práxis que ele nunca abandonaria.

De Tchernytchevsky – autor também preferido por seu irmão executado – Lenin exaltaria sempre “o exemplo de inabalável solidez revolucionária”, acrescentando o que lhe parecia um axioma: “um revolucionário marxista deve, em todo e qualquer momento, estar pronto para tudo, sem exceções”. Sem esquecer, evidentemente, o princípio que dele se deriva de que para um revolucionário coerente (ou fanático?) “quanto pior estiver a situação global dos oprimidos, melhor” para a causa da Revolução. Seu mestre, portanto, considerara anti-revolucionária a abolição da escravidão dos servos da gleba por Alexandre II, “o meigo czar”, pois, libertados, os camponeses agora teriam menos motivos e menos incentivos para lutar contra o regime. Consequentemente, agora que a fome, generalizada nos campos, causada pelas más colheitas de 1891-1892 grassava, essa catástrofe era motivo para se esfregar as mãos revolucionárias de contentamento: nada de minorar a fome, que milhões morram de inanição – quanto pior, melhor!

Harrison Salisbury, o esplêndido e documentadíssimo historiador norte-americano, não insiste nesse anti-humanitarismo que Lenin, de qualquer modo, consideraria “pieguice intolerável de moleirões incompetentes”. Salisbury dá muito mais ênfase ao que ele considera o “caráter elitista” da doutrina de Tchernitchevsky que contagiou para sempre todas as escassas ações e todas as numerosas omissões de Lenin: só os “seres superiores, os melhores dos melhores e dentre estes o melhor de todos poderia formar um partido revolucionário de elite, a vanguarda e delegado supremo do proletariado ignaro e inconsciente”. Quem, senão ele, Lenin, poderia ser esse Chefe Supremo e Único, onisciente e onipotente, quem?

A Revolução tornara-se um sucedâneo inconsciente do misticismo e da religião. Assim como o Cristo pregara que todos os que quisessem segui-Lo teria que abandonar pai e mãe, haveres e amigos, tanto Lenin quanto a revolucionária sua contemporânea, Balabanoff, sabiam que tinham que extirpar do seu coração os sentimentos mais fundamente nele arraigados para ceder lugar ao sentimento messiânico e inflexível do Dever. E esse Dever impunha a solidariedade para com os que sofrem como uma dor mais aguda do que a dos que infligiam a seus pais, à tradição sufocante, a todos os laços e hábitos passados. Como na novela de Turgueniev eles sabiam que seu Calvário seria composto de frio, fome, hostilidade, desprezo, ironia, vergonha, prisão, adoecimento e até a morte inútil por um objetivo que se poderia revelar puramente ilusório depois de todos os sacrifícios. Quem passava por essa prova maçônica de admissão ao Templo da Revolução ouvia depois de todos os testes terríveis duas vozes dissonantes ecoarem enquanto eles transpunham o umbral sem retorno rumo ao patíbulo: “Imbecil!”, gritava uma delas; “Santo!” respondia a outra.

Em que ambiente se desenvolviam tais juramentos secretos? A Rússia do final do século XIX, acentua Salisbury, industrializava-se a passos gigantescos, com um ritmo mais acelerado do que o de qualquer outro país do mundo, inclusive os Estados Unidos. A rendosa produção de cereais, carvão, petróleo, mineração, siderurgia, ferrovias ultrapassava o ritmo de desenvolvimento de todas as nações ocidentais e de todo o mundo, com exceção talvez da Suécia. Mas esse progresso se fazia à custa de 60% dos lavradores incapazes de ganhar um mínimo de subsistência condigna. O analfabetismo assolava os campos como uma peste medieval: só 6% dos mujiques (camponeses) sabiam ler, entre os homens, entre as mulheres a percentagem descia a 0,7%.

Plekhanov, o fundador do Partico Social Democrata russo, condoía que era o momento de se meditar sobre que medidas tomar para debelar esse estado de coisas. A eterna questão de “o que fazer?” surgia insistente e com novas roupagens agora que o terrorismo de “A Vontade do Povo” fora esmagado. Os contrastes abissais, contudo, desafiavam as mentes empenhadas em mudar tão cataclísmico status quo.

De um lado, o império russo era uma área de caça privilegiada para os investimentos estrangeiros: 79% do capital compunha-se de dinheiro inglês, francês e alemão o que, combinado com a venda, no estrangeiro, de obrigações do tesouro imperial desembocara no generoso empréstimo que os banqueiros franceses injetaram na economia russa: 9349 bilhões de franco-ouro, uma fortuna colossal em qualquer época. O proletariado industrial, com seu epicentro em São Petersburgo (futura Petrogrado, atual Leningrado), aproximava-se, em 1905, de 4 milhões de trabalhadores.

O outro lado da moeda era menos cintilante: fatores internos e externos crescentes acossavam a rigidez e o imobilismo tzarista e sua corte de ministros horrorizados com qualquer “progresso” que beneficiasse as massas, pois desestabilizaria a autocracia sacrossanta. Como cúmulo da ousadia, inumeráveis elementos liberais não mais pediam, exigiam reformas democráticas. E – dado inacreditável – esses elementos “progressistas” partiam do rico empresariado e dos milionários aristocratas esclarecidos, latifundiários no mínimo “paradoxais”.

Era um enxame surrealista que atacava a colmeia do absolutismo imperial. Os mais drásticos, mais perseguidos e temidos eram os sucessores do movimento ” A Vontade do Povo”, os Socialistas Revolucionários, populistas liderados por Viktor Tchernov: eles continuavam a pregar a violência e denunciavam a posse da terra em mãos dos latifundiários, da nobreza e da Igreja Ortodoxa. Era um escândalo condensado em lacônicas cifras: os camponeses, 85% da população, era donos de 37% das terras; Sua Majestade Imperial e seus acólitos nobres possuíam 34 % delas; os particulares plebeus 26% e a Igreja se contentava com 3%. Enquanto o preço da terra, inflacionado, atingia cifras altíssimas, sua produção por acre não passava de 406 libras, menos da metade da produção agrária alemã, 868 libras, e quase 1/3 apenas da dos Estados Unidos: 1.109. A ajuda paliativa do governo para minorar a miséria nos campos ascendeu, de 12 milhões de rublos entre 1871 e 1890, a 268 milhões entre 1901 e 1906. Para os Socialistas Revolucionários dirigidos por Tcherkov e por Mariya Spiridonova só havia uma solução: toda a terra teria que passar para a mão dos camponeses.

Era uma convicção compartilhada por aliados surpreendentes: um padre socialista e um punhado de milionários. A abastadíssima elite empresarial – os grandes industriais – e os donos de terras de milhares de hectares viam na divisa “toda a terra para quem a cultiva” não um lema mas uma ventosa para impedir que a pressão arterial elevado do país levasse a um derrame de sangue, já que com aquele tipo de governo não se podia falar em derrame cerebral. Como em um filme de Buñuel os Vanderbilts, os Rockfellers, os Goulds da Rússia daquela época passara a financiar os partidos reformistas, em alguns casos até os de programas mais radicais e ex-proprietários. O dinheiro, quem sabe?, lhes pouparia a vida mais tarde? No amplo prisma político da Rússia fin de siècle outras agremiações se entredevoravam pela infalibilidade se SUA receita para os males de que padecia a Santa Mãe Rússia. O Partido Social-Democrata cindira-se, nas palavras de Salisbury “por rixas talmúdicas” em torno de como conquistar o poder e depois geri-lo. A ala direita, representada por Julius Martov, pregava a seus afiliados, socialistas marxistas, a organização democrática do Partido. A ala esquerda, sob o controle cada vez mais férreo de Lenin, divergia: o poder só se conquista através da força, da revolução armada, das conspirações, da obediência escrita à ditadura do Partido Central. Esta divisão irreconciliável produziu os Mensheviks (minoritários) e os Bolsheviks (maioritários), estes últimos denominados mais tarde, por sugestão de Lenin, de Comunistas. Os liberais do Partido Democrático Constitucional, de Pavel Milyukov, acreditavam no parlamentarismo inglês e eram apelidados de Kadets, sigla resultante das iniciais do Partido em russo.

Sobre todas as dissenções partidárias pairava, carismático, o Pope (ministro de Deus, dentro da Igreja Ortodoxa greco-russa), o controvertido padre socialista Georgi Gapon. Seus inimigos o consideravam um instrumento da polícia – era o veredito dos Bolsheviks e dos Mensheviks. O regime o considerava uma ameaça radical ao poder. O povo o venerava como um santo e um líder irresistível. O que pedia o Padre Gapon, seguido por um infindável número de operários, camponeses, estudantes, nobres, intelectuais e revolucionários, ao Todo-poderoso na Terra, o Tzar de todas as Rússias, representante simbólico do Todo-poderoso nos céus? A adoção do período de 8 horas diárias de trabalho: salários condizentes com a inflação febril: a demissão dos odiosos “capitães do mato”, os Cossacos que nas fábricas e nas fazendas exploravam com uma crueldade sádica todos os que labutavam na usina ou na terra. Em apoio a essas reivindicações básicas um surto indetível de greve se espraiava sobre São Petersburgo: 382 fábricas paralisadas. 150.000 operários de braços cruzados naquele inverno ríspido de 1905. E embora a simpatia operária sempre tenha pendido para os Mensheviks, para desespero dos Bolsheviks, o Padre Gapon era o inconteste Comandante espiritual da plebe desesperada.

Erros históricos reforçariam o poderia das massas, o pior deles era a “guerrinha” propugnada pelo gabinete ministerial em torno do Tzar. Como moscas esvoaçantes ao redor do Poder férreo, os ministros na sua maioria aconselhavam o soberano, apoiados pela Tzarina, a não ceder “um milímetro” de suas prerrogativas de monarca autocrático. Quem era Nicolau II, que subira ao trono depois da morte de Alexandre III, seu pai, e neto do “meigo Alexandre II”, que libertara os servos da gleba? Um Hamlet russo, fraco, indeciso, que irrompia as reuniões com os ministros para saber, “o que mamãe acha da situação”. Um déspota incapaz de admitir a mínima reforma liberalizante. Um kamikaze semi-idiota em seu fanatismo, imobilismo e debilidade – física e mental. Talvez esses ingredientes de sua personalidade flébil expliquem sua vulnerabilidade aos piores conselheiros, os mais distanciados da realidade nacional. Um dos seus ministros sugeriu que o descontentamento popular poderia ser abafado desviando-o para o patriotismo acendrado russo. “Uma guerrinha da qual saiamos vitoriosos” não seria a solução para tudo? O primo de Nicolau II, o intrigante Kaiser Wilhelm da Alemanha, em cartas assinadas por Willy e dirigidas “ao meu querido Nicky” concordou: era preciso dar uma lição aos amarelos e mostrar-lhes “seu devido lugar”, obviamente numa escala inferior à dos brancos. Ávido, o Tzar abraçou essa saída externa para os males internos. Além disso, os japoneses, num pérfido prelúdio do traiçoeiro ataque às bases norte-americanas de Pearl-Harbor 40 anos mais tarde, enquanto tratavam de paz afundavam de surpresa a esquadra russa sediada em Porto Arthur. Que mais poderia o Tzar esperar?

Foi um engano que mudou o curso da História. A “guerrinha” passou, dia a dia, a configurar uma derrota sem precedentes e tão humilhante para o brio patriótico russo que nenhum slogan nacionalista conseguia apagar. As greves explodiam em escala gigantesca. As condições degradantes de vida de quase 90% da população – “a multidão escura”, imprevisível em suas reações – acirravam os ânimos. Lenin tinha sido exilado para Geneva na Suíça, como elemento altamente subversivo, exílio que duraria anos e anos a fio, mantendo-o literalmente fora dos combates. Era um coquetel Molotov perfeito para a explosão do Domingo Sangrento, o trágico início e arrepiante desfecho da Revolução de 1905.

O Padre Gapon redigira ao Soberano uma petição rogando Sua Imperial justiça e proteção:

“Tornamo-nos mendigos, oprimidos sob o fardo de um trabalho além das nossas forças. Não somos considerados seres humanos, mas escravos que têm que suportar seu amargo destino em silêncio. Majestade, somos muitos milhares e embora tenhamos o aspecto de seres humanos na realidade nem nós nem o resto do povo russo goza de um único direito humano – nem do direito de falar, pensar, reunir-nos, discutir nossas necessidades ou tomar iniciativas para melhorar nossa condição. Majestade, esta situação corresponde às leis de Deus, sob cuja Graça Vós reinais? É melhor morrermos – nós todos morrermos, nós, o povo que moureja em toda a Rússia, para permitir que os capitalistas (os exploradores da classe operária) e os burocratas (que roubam o Governo e saqueiam o povo russo) vivam à tripa forra?

Esta é a escolha cm que nos defrontamos, Majestade e por isso vimos até os muros de Vosso Imperial Palácio...”

A massa carregava retratos imensos do Tzar e da “alemã” Tzarina Alexandrovna (originalmente Alix da nobreza de Hesse-Darmstadt), circundados de flores, ícones, cruzes e transparentes descomunais <cartazes?> com os dizeres que flutuavam ao vento gélido daquela manhã de 9 de janeiro de 1905: “Soldados! Não disparem contra o povo!”. De um coro uníssono de milhares de vozes se erguiam nos ares hinos religiosos: “Protege, ó Senhor, o Teu povo!”.

Poucos temiam represálias. Quem acreditaria que os soldados não se solidarizariam com eles? Um operário acalmou os temerosos: “Nós vamos ao Tzar com os corações abertos. Vou na frente da primeira fileira, se cairmos seremos substituídos pela segunda fileira.” Fizeram o sinal da Cruz e rezaram o Pau Nosso recitado alto pelo Padre Gapon. Escondidos em paredes de difícil acesso, os cartazes colocados pela polícia do Tzar proibiam “qualquer manifestação pública”, mas as severas exigências estavam vasadas em uma linguagem de compreensão difícil para os poucos que sabiam ler e, além disso, semiocultos em lugares escuros, tornaram-se logo ilegíveis, destruídos pelo vento que os desfazia em farrapos de papel.

Uma carnificina inesperada abateu-se sobre o povo. Canhões, artilharia e os terríveis cossacos das tropas de elite do Tzar brandindo sabres do alto de seus cavalos encobriram os gritos de estupefação e horror da massa atônita e desesperada: “Soldados! Irmãos! É um engano, é um engano, não atirem!” Os que marchavam à frente da manifestação, heroicos, tiraram os casacos, desnudando o peito para as balas que choviam. Corpos mutilados, cadáveres ensanguentados, feridos agonizantes encharcaram a neve de sangue coagulado: até crianças que brincavam nos parques dos arredores caíam diante da massa apavorada. Não foi um massacre só contra a “multidão escura”. Tinha sido desfechado o primeiro tiro contra a monarquia absoluta. A “multidão escura” que se salvara e recolhia os mortos e feridos via o Tzar agora despido de sua aura de santidade e legitimidade. No Teatro Alexandrinsky o ruído dos tiroteios e dos disparos dos canhões, gritos e lamentos interrompeu às pressas o espetáculo de gala. Seu título: “Caprichos de uma Borboleta”, em francês, como de rigueur: Caprices de Papillon. Mais tarde, antes de ser assassinado no México, tudo leva a crer por um mercenário a soldo de Stalin, Trotsky reconheceria certeiramente: “A Revolução de 1905 foi o ensaio geral da Revolução de 1917.”

Indiscutivelmente, pouco mudaria na Rússia no decurso daqueles 12 anos que medeavam as duas Revoluções. Há como que uma fórmula algébrica para se definir os componentes das Revoluções pelo menos do século XVIII em diante.

Injustiça e fome para as massas, opressão, imobilismo e rigidez do governo da Revolução.

A incógnita variável, o x, é o rumo que os autênticos líderes revolucionários queriam imprimir ao triunfo revolucionário: um rumo democrático ou um rumo totalitário.

A Revolução de 1917, efetivamente, continha os mesmos elementos do levante anterior. Não havia divisões maniqueístas que polarizassem todos os nobres como reacionários e todos os revolucionários como democratas, mocinhos e bandidos de um Faroeste nas estepes.

A Corte de Tzar Nicolau II tinha a mesma composição de antes: à maioria esmagadora de aduladores cegos que instavam para que Sua Majestade Imperial não abrisse mão de suas prerrogativas reais se contrapunha um punhado minoritário de ministros lúcidos e honestos como Witte, que rogavam do Soberano em termos candentes reformas democráticas para a conservação do regime dinástico em si: A Rússia estava à beira de um abismo de proporções incalculáveis. Também entre os revolucionários havia facções divergentes: os que defendiam a liberdade com justiça e democracia se chocavam frontalmente com os que pretendiam enfeixar no poder total do Partido a férrea disciplina para as massas e o fermento do futuro ditatorial – sobrepujando-se a todos Lenin, como sempre no exílio, como sempre alimentando disputas sobre como tomar o poder, como sempre atrasado com relação à ebulição popular na Rússia distante, como sempre latifundiário único de todo o terreno da verdade, da práxis política e da sabedoria revolucionária.

Só ele e o Tzar, nos dois extremos do espectro político da Rússia de inícios deste século, estavam alienados totalmente da realidade palpável, dinâmica, febricitante.

O Tzar Nicolau II mantinha-se ilusoriamente otimista. Afinal, a guerra com o Japão terminara com uma derrota humilhante para Seu majestoso Império, é verdade, mas o ministro Witte não fora suficientemente hábil para conseguir condições excelentes de paz, ou seja, para a rendição russa diante do poderio nipônico, através do Tratado de Portsmouth de 1906? Infelizmente restava por solucionar a cansativa questão de apor Sua Imperial Aprovação à formação da Duma, o Parlamento russo que teria tão breve e tumultuada duração. E a fatigante exigência de se instituir as eleições também subsistia ainda, um sufrágio, é verdade, rigorosamente restrito às forças favoráveis à autocracia que como uma redoma suicida envolveria o Tzar até sua execução pelos revolucionários triunfantes e sanguinários de 1917. Comoo Tzar podia prever esse futuro se não discernia nem o presente? Acreditava, aliviado, que “o pior já tinha passado”. Em setembro, com o séquito de nobres e a presença a bordo do Ministro da Marinha, Sua Majestade Imperial, a Tzarina e os cinco filhos (quatro Grã-Duquesas e o Tzarevitch, o herdeiro hemofílico do trono) partiram alacremente do iate “Estrela Polar” rumo a Kronstadt, o porto de onde no futuro inescrutável, se dariam as rebeliões violentas do cruzador “Potemkin” e seus marinheiros amotinados contra os maus tratos e a alimentação infestada de vermes vivos. Isso seria amanhã, amanhã: agora a Tzarina e sua ama de companhia, A fanática supersticiosa Madame Vyrubova deliciavam-se com a música que executavam a quatro mãos: composições de Tchaikovsky e de Beethoven. Muitas vezes a Tzarina tocava co sensibilidade que arrebatava seus ouvintes a sonata “Appassionata” de Beethoven – a mesma música predileta de Lenin que que possivelmente a escutava agora no exílio a milhares de quilômetros da Rússia, pregando “a Revolução” aos suíços impermeáveis como o Tzar a qualquer mudança e qualquer “derrubada pela insurreição armada” do capitalismo dos tranquilos cidadãos da pacata Helvécia.

O Tzar dedicava-se à caça. Num dia de sorte abateu um pato e uma galinhola selvagem numa das ilhas que pontilhavam o mar de um azul cobalto intenso. Seus filhos colhiam cogumelos. Em seu minucioso “Diário” Nicolau II sempre anotava dados meteorológicos. Nesse dia ele esqueceu os dados climáticos externos para anotar apenas venturoso “sinto-me feliz como uma criança”.

O território vastíssimo da Rússia se abria como um leque e em suas duas pontas dois personagens boiavam sobre a superfície dos acontecimentos reais – a fome, as greves, a rebelião incendiária dos camponeses, o dinamismo da Revolução em gestação acelerada: talvez naquela mesma noite em que a lua estava excepcionalmente clara Lenin e o Tzar estivessem unidos pela mesma catarata óptica que os impedia de apreender os fatos. O Tzar rodeado por uma nuvem protetora de nobres sicofantas e míopes e pelos fanáticos monarquistas incendiários, o temível grupo das “Centenas de Combatentes Negros”. Lenin rodeado na biblioteca pública de Genebra por pilhas de livros sobre a Revolução Francesa e tornando-se “colérico até os limites da histeria” quando algum revolucionário russo exilado como ele vinha propor uma “frente ampla” ou uma “união” ou “coligação de forças”. Cretinos! Como podiam ignorar que ele, Lenin, se PREPARARA anos a fio para a SUA revolução, que só podia ser comandada por ELE pessoalmente: até os bolcheviques que discordavam de seu plano mirabolante de contrabandear armas para a Rússia e organizar a luta nas ruas não passavam, ele acrescentava com uma careta de azedo sarcasmo, de “um bando de asnos incuráveis”.

O historiador Harrison Salisbury alinha dezenas de depoimentos irretorquíveis que comprovam, fora de qualquer dúvida, a teimosia cega e surda de Lenin, que descartava as notícias da Revolução de 1905, com todas as suas seríssimas implicações, como um “fortuito surto de agitação liberal”, designação para ele sinônima do pior anátema político a priori. Honestamente, o velho combatente bolchevista Lunatcharsky reconhece: “Acho que a Revolução de 1905-1906 nos pegou um tanto despreparados e nos faltava uma verdadeira habilidade estratégica política.” E para que não se suspeite de má fé ou desonestidade com relação à participação infinitamente mais teórica do que prática de Lenin entre 1905 e 1906 parece-me ter sido relativamente ineficaz. Eu me pergunto se Lenin era de fato um líder revolucionário como parecia ser. Comecei a verificar que a vida de emigrado reduzira um tanto a estatura de Lenin e que para ele a vida interna do Partido com os Mensheviks obscurecera, relegando a um segundo plano, a luta muito mais ampla contra a monarquia e que Lenin era mais um jornalista do que um autêntico líder”. Depois, quando o veneno mortal dos ataques verbais de Lenin a TODOS que não concordassem SEM DISCUSSÃO com ele o atingiu em cheio. Lunatcharsky foi mais longe. Reconheceu que “Lenin era um adversário político cruel, pronto para explorar qualquer engano e exagerar o mais leve indício de oportunismo. Ele usava todas as armas, menos as sujas.”Mesmo assim, deixou seu testemunho de estupefação com as táticas do DONO da Revolução: “A ferocidade política de Lenin deixou-me profundamente chocado”. Trotsky concordou em descrever Lenin como sendo “totalmente sem piedade” e achou sintomático que as palavras favoritas que Lenin usava com extrema abundância eram justamente “irreconciliável” e “sem tréguas”. Plekhanov, o líder marxista fundador do Partido Social Democrata russo, alarmado com as posições fanáticas de Lenin predissera: “É desta massa (de que é feito Lenin) que se fazem os Robespierres”, o mestre do Terror da Revolução Francesa de 1789. Os opositores declarados de Lenin, como o professor Sergei Bulgakov, chegam a asseverar que “Lenin pensa de forma desonesta” e o livro de sua autoria, O que fazer? tem o fedor típico de uma delegacia de policial revolucionária”.

Outros críticos de Lenin, lhe atribuem erros táticos graves e a proposital exclusão arbitrária de qualquer livro que pudesse contradizer sua crença inabalável na teoria marxista. Trotsky diria a palavra final sobre este fabricante de artigos teóricos e disputas dogmáticas:

“A organização do Partido” (seguindo a estratégia leninista de total centralização partidária) “substitui o próprio Partido; o Comitê Central substitui, por sua vez, a organização partidária. Para Lenin cada vez mais TODOS os meios – até o terror indiscriminado contra os inocentes – são válidos para atingir um fim desejado. Os conceitos éticos e humanitários são coisas ‘para um bando de velhas piegas’”.

Os doze anos que vão da revolução “preparatória” e abortada de 1905 até a Revolução triunfante de 1917 trazem um S.O.S. angustiado de todas as forças liberais-democráticas em torno do Tzar – mas seu telégrafo está mudo. Como na corte babilônica mãos fatídicas escrevem as advertências gravadas a fogo numa parece que só os ingênuos e os canalhas se recusam a ver.

São episódios fulminantes de um colapso total da Rússia:

- O sanguinário general Trepov, com “plenos poderes” do Tzar, reprime todas as rebeliões com uma Ordem do Dia sinistra que retumbaria pela História do século XX: “Não economizem balas nem usem cartuchos de festim”.

- O lúcido ministro Witte dá uma ultimatum a Sua Majestade Imperial e extirpa do soberano em lágrimas um manifesto tardio dando sua relutante aprovação à criação do Parlamento, à instituição de eleições, eleva o Judiciário ao poder supremo, garante ao povo a inviolabilidade de sua pessoa física e de seu lar, a liberdade de consciência, de reunião e discussão.

- Um visitante vê um presságio de mau agouro ao entrar no Palácio de Alexandre e ver pendurados, lado a lado, o retrato da Tzarina, que lutava com toda veemência para defender o absolutismo, e o da rainha Maria Antonieta, degolada na guilhotina depois de arrancada da Bastilha.

- Uma série de massacres contra os judeus se propaga como um fogo na floresta seca de Kiev a Odessa e inúmeros lugarejos do interior. Detestados por serem uma minoria religiosa num Estado inflexivelmente ortodoxo e inquisitorial em matéria religiosa, os judeus eram “os culpados pela Revolução”. Progroms aterradores aniquilam vilas judaicas inteiras, com a anuência colérica e supersticiosa do Tzar que escreve à mãe, em lágrimas por ter “perdido a Coroa”, rebaixando-se a assinar o Manifesto: “O povo está indignado com a insolência e a audácia dos revolucionários e dos socialistas e como nove décimos dele são judeus todo o ódio converge para cima deles, o que explica ou justifica os progroms contra eles”.

- O padre Gapon é considerado culpado por uma corte marcial instalada a toque de caixa e executado sem demora. Mas como o gancho do qual os nobres seus juízes e carrascos estava colocado numa parte muito baixa da parede para que a corda o enforcasse logo, os algozes não vacilaram. Com todo o peso de seus corpos sentaram-se nos ombros e nas costas do padre curvado, quebrando-lhe a espinha e arrebentando sua traqueia até ele morrer sufocado.

- Um revolucionário herdeiro de uma fortuna colossal, Nokolai Pavlovitch Schmidt, filho de um fabricante de munições, é preso pela brutal Okhrana, a polícia sádica que precederia a Tcheka, a GPU, a NKVD e a atual KGB: mantido oito dias sem comer nem dormir, surge “acidentalmente” morto em sua cela de confinamento solitário.

- Sua irmã, grávida de outro revolucionário, para receber a herança do irmão, casa-se em Paris, na Embaixada russa, com outro revolucionário que se compromete a não consumar o casamento”. Incontinenti a fortuna em francos-ouro dos Schmidts passa aos cofres bolchevistas.

- Asfixiados os operários, um lúgubre desafio se dilaga entre os Uhlans, os Cossacos da tropa de elite do Tzar e os camponeses. É uma aposta sem vencedores: os camponeses enfurecidos, matando e incendiando tudo na área rural foram mais ou menos ferozes do que os Uhlans pilhando, matando e erguendo em pracinhas de aldeias do interior centenas de cadáveres de camponeses chacinados que balouçavam macabramente, seus corpos rangendo ao vento como negros frutos apodrecidos pela morte.

Mas aquele pesadelo – raciocinava em uma nuvem mental rósea o Imperador – passara. Agora era tempo de sonhar.

Sonhar tornou-se uma paixão russa, em substituição ao verbo já fora de moda – fazer.

Todos sonhavam. Em seu eterno exílio, Lenin tecia com artigos, disputas e certeza absoluta seu sonho maior: “Verei um dia o meu sonho da vitória da minha Revolução triunfar sobre o cretinismo imelhorável de todos os demais?”

Os artistas que dariam ao mundo talvez a sua mais radical e profunda Revolução Estética entre as duas Revoluções políticas também sonhavam. Eisenstein, Blok, Mayakovsky, Stanislavsky, Kandinsky, Chagall, Essenin, Mussorgsky, Diaghilev, Nijinskym, Pavlova, Pasternak, Mandelstam, Meyerhold, Andreyev, Tosltoy, Gorky – todos sonhavam com a Arte do Futuro: da pintura abstracionista à poesia, da dança ao teatro, do romance à música, à ópera, ao cinema. Seria a arte liberta do passado, a Arte antiburguesa, antiacadêmica, que libertaria o homem, a mulher, o pensamento, a criação, o povo inteiro. Era a Terra Prometida que se desfaria logo na asfixia sangrenta de todas as artes por Stalin, já nos bastidores da Revolução, pronto para liquidar com todos os revolucionários opostos ao seu dogmatismo. Tão frágil quanto a libertação pelas artes seria o interregno breve da democracia russa em séculos ininterruptos de ditadura até hoje. O sangue não compraria a liberdade: seria o fertilizante para um novo despotismo “socialista”.

Isso pertencia ao futuro indevassável. Agora, hoje, o ocultismo, as sociedades espíritas, teosóficas, de teologia, a leitura das mãos, das folhas de chá, das cartas varriam os salões literários, os palácios aristocráticos, os cabarets decadentes, os míseros personagens das favelas descritas por Gorky em seus romances O Baixo Mundo e A Ralé. Subindo como uma planta trepadeira e parasita que no fim se alimenta da árvore sadia que a mantém e finalmente se corrompe e morre, um misto de religiosidade, fanatismo, misticismo e superstição primitiva arrebatou também os imperadores. Crer – desde a forma mais pura e lúcida até sua deturpação doentia – era também sonhar. Para o Tzar e a Tzarina, fundamente religiosos, o sonho era múltiplo: voltar a reinar sobre “seu povo amado”, reconquistar a monarquia absoluta. Curar as hemorragias constantes do tzarevitch hemofílico. E Deus certamente mandara par ao consolo imperial de suas majestades aquele gigante robusto, tosco, de inacreditável potência sexual e um magnetismo enigmático e irresistível: Rasputin (que eu russo quer dizer dissoluto, libidinoso). Rasputin era o “salvador”, era o camponês puro, místico, a “voz do povo”, portanto, “a voz de Deus”. Pouco a pouco Rasputin se assenhoreava do poder real: nomeava e demitia ministros. Dava amuletos contra mau-olhado e contra “os mil inimigos invejosos de”paizinho” e “mãezinha”, como ele chamava os imperadores, com o tratamento informal de “tu”. Rasputin “curava” a hemofilia do tzarevitch. Rasputin abençoava seus pupilos ajoelhados, o Tzar e a Tzarina entre uma mezinha e outra curadora de todos os males.

O sonho do príncipe Félix Yusupov, a flor dos salões aristocráticos de São Petersburgo era diferente: Rasputin tinha que ser eliminado para se restaurar a dignidade da Corte Imperial. Toda São Petersburgo fervia de boatos – nunca comprovados como autênticos – de que a Tzarina sucumbira ao fascínio sinistro de Rasputin e lhe cedera lugar no leito imperial entre ícones iluminados e rezas rituais.

O príncipe Félix tinha uma única excentricidade: adorava se vestir de mulher. Uma noite, travestido com vestidos ousados, maquiado, com peruca de mundana loura e joias de família, conseguira seu maior triunfo: iludira o príncipe de Gales, o futuro rei Eduardo VII da Inglaterra, em um cabaret. O insistente e libidinoso monarca britânico “só faltava comer-me com os olhos”, ele dizia com um sorriso de vitória. O príncipe Félix jurava que não tinha nada contra as mulheres – não era casado com a lindíssima princesa Irena? – mas preferia a companhia dos homens, “onde sempre me sinto mais aconchegado”.

O plano de assassinar Rasputin foi difícil de levar a cabo, mas o príncipe e seus companheiros da aristocracia e um médico conseguiram acabar com “aquela desgraça para a Família Imperial”. Envenenado com bolos e com cálices de vinho Madeira que continham doses maciças de cianureto, alvejado, atirado ainda agonizante no rio gelado – Rasputin era um símbolo da violência por vir. Sua morte na emboscada fatal que o príncipe e seus sequazes lhe armaram era, na verdade, o levantar do pano do ato final não mais do ensaio geral, mas do drama verdadeiro: a eclosão da Revolução de 1917.

Monotonamente os mesmos ingredientes da Revolução triturada em 1905-1906 espocavam no ar: fome, inflação, ira crescente dos camponeses e, naturalmente, uma guerra. Só que desta vez não era uma “guerrinha da qual sairemos vitoriosos” e que resultara, ao contrário, na humilhante derrota russa em Porto Arthur. Era a Primeira Guerra Mundial da Rússia e seus aliados, a França, a Inglaterra, contra a Alemanha e a Áustria.

A fórmula algébrica das Revoluções continha elementos que não tinham mudado: salários aumentados de 50 a 100% para os operários eram tragados pela voragem de uma inflação de 100 a 500%, com artigos essenciais como o pão e o carvão obteníveis a qualquer preço.

Havia uma diferença que fez pender o prato da balança para a Revolução: setores decisivos do Exército recusavam-se categoricamente a atar o povo. Era uma situação altamente volátil: se o pão e o carvão faltassem completamente – os suprimentos eram insuficientes e raros – estaria acesa a chispa do levante. A agravante final era a guerra. Impondo o alistamento militar, a Rússia Imperial tinha que manter 13 milhões de convocados: camponeses rudes cultivadores, mecânicos e operários politizados; até um certo exilado político obscuro, apelidado de Stalin (o homem de aço) foi chamado. Os bolchevistas ficaram relegados a segundo plano, a fraqueza fratricida dos partidos levava às conspirações sussurradas contra a vida do Imperador ineficiente. Em fevereiro de 1917, quando se inaugurou o Parlamento da Duma que “era preciso derrubar o poder medieval de Nicolau II a qualquer custo”. Interrogado: “Como assim?”, respondeu com uma erudita metáfora tirada da História de Roma Imperial: “Fazendo com o Tzar o que Brutus fez a César no Senado”.

A soma das parcelas que resultaria na Revolução espontânea não foi levada em conta por ninguém. As greves, a ira dos camponeses, o racionamento de alimentos, as terríveis derrotas do Exército russo sem armas nem comida diante de alemães superequipados e bem alimentados – nada fazia constatar que a rebelião popular pedindo: “Pão! Paz! Liberdade! Abaixo o Tzar!” já era a Revolução. Tchlyapnikov, o único delegado do Comitê Central Bolchevista em que Lenin semiconfiava, testemunhou lhanamente: “Ninguém acreditava na hipótese de uma Revolução – já.” Nem os sociais radicais por boca de seu líder Zenzinov criam nos fatos. “A Revolução abateu-se sobre todos nós como um relâmpago vindo repentina e inesperadamente em meio a um calmo céu sem nuvens. Tomou de surpresa não só o Governo e todas as organizações sociais existentes. Na verdade, ninguém pudera prever que daquele movimento emergiria a Revolução que se seguiu”. Nem Lenin. Ele deu de ombros: deveria ser mais um levante “liberal” inconsequente.

Diante dos olhos vendados de tantos, a Revolução prosseguia. Para Harrison Salisbury, irônico, ela não passou de uma “tragicomédia improvisada”. O historiador norte-americano não hesita em sua tarefa iconoclasta e municiada de provas. Nenhum líder bolchevique participou das preparações populares. Ao contrário da deturpação proposital de dados históricos pelos historiadores oficiais soviéticos, de Stalin até hoje, os bolcheviques “não tinham nem um programa, nem organização, nem liderança, nem noção do que estava acontecendo realmente”.

Ignoravam a pilhagem do arsenal e a distribuição, por populares, de munição para o povo. Não sabiam que a massa estava invadindo delegacias e a própria Central da Polícia – naquela época como hoje dominando pelo terror os dissidentes e rebeldes – e sem medo destruía arquivos, linchava policiais arrancando-lhes pernas e braços enquanto vivos, ocupava estações de trem, o telégrafo, a central telefônica. Com a libertação de líderes revolucionários encarcerados estabeleceram-se diretrizes bélicas para proteger a Revolução popular, espontânea e até então sem líderes e sem oposição: os Cossacos não só permitiam o saque dos armazéns pela população como a defendia contra a polícia e os grupos sanguinários de monarquistas fanáticos. Os líderes libertados determinaram como medidas básicas a reunião do Comitê Provisório para conseguir víveres para a população e um Comitê de Apoio à Insurreição Armada contra os monarquistas. Finalmente despertados de sua letargia, os bolchevistas apelaram para suas hostes sonolentas: instituíram um Comitê Revolucionário Militar para armar os trabalhadores, apelaram para os fortes contingentes que abandonaram os Mensheviks atraídos pelo programa bolchevique de “liberdade para a imprensa e paz com assinatura de um armistício com a Alemanha”. 12.000 Guardas Vermelhos, contingentes crescentes dos Comitês Bolcheviques de Defesa Operária, o controle de 11 dos 17 Soviets regionais, 50.000 membros do Partido – era essa força que eles tardiamente concentravam para se apoderar do levante que os pegara desprevenidos.

Salisbury insiste em pôr por terra o friso heroico que se erigiu como lenda em torno da “heroica tomado do poder liderada pelos Bolchevistas”, conforme o Catecismo soviético que faz de Lenin um Líder santificado a ponto de a historiografia soviética recender ao incenso das hagiografias póstumas. Ao contrário, ele assegura: nada de grandioso, colossal, nenhuma sábia estratégia caracterizou os acontecimentos mitificados de 1917, uma série de explosões populares não induzidas por ninguém e “atravancadas por incidentes triviais, rivalidades mesquinhas, erros de cálculo, hesitações, inépcia, poses afetadas e mais erros (de percepção e de estratégia) quase nada foi planejado e o que sobreveio foi fruto do acaso. É uma mentira deliberada afirmar-se que os Bolsheviks tomaram o poder com uma força de vanguarda indômita, audaz e clandestina.”Tropeçaram em seu rumo tortuoso ao poder, divididos, lutando uns contra os outros. E até os momentos finais (da Revolução) Lenin desempenhou um papel (meramente) acidental em tudo o que aconteceu realmente. Kerensky e seu governo não foram esmagados pela força férrea de corajosos revolucionários... Mas se os erros e a confusão constituíam a regra e não a exceção, os arquivos verdadeiros merecem um estudo analítico mais profundo – ele argumenta – não como um exercício na prática da tática revolucionária, mas como um novo foco de luz jorrando sobre a banalidade que tantas vezes se infiltra insidiosamente no próprio coração dos grandes momentos da História”. E concluiu, taxativo: “Raras vezes o contraste entre o mito e a realidade se apresentou como um abismo tão largo”. Não há provas – ele insiste sem parcialidade, mas com objetividade histórica e não histérica – de que Lenin tenha “comandado” a insurreição. E metralha perguntas irrespondíveis até pelos cofres secretos da documentação oficial soviética fechados hoje como então: Por que Lenin preferiu continuar escondido enquanto seus associados atacavam, por menores que fossem, suas “vitórias”? Por que tantos de seus companheiros dispensaram a sua liderança? Por que Lenin preferiu permaneceu praticamente inativo nos dias cruciais de 20, 21, 22 e 23 de outubro? Para rematar sua sacrílega verificação de que o rei soviético está nu: “É mais um aspecto estranho do golpe de Estado bolchevista: o de que o líder que insistia em que se levasse a cabo esse mencionado golpe não tenha desempenhado nenhum papel fundamental nos dias da sua preparação”. Mais ainda: nunca os historiadores soviéticos chegaram a um acordo sequer sobre a data do início do golpe de Estado. A última reunião sobre o assunto, em 1962, terminou em violento desacordo e foi adiada sine die “para mais estudos da matéria”. É um engodo para encobriri o fato de que “não se precisa de mais prova alguma para se afirmar que a ‘Revolução’ de 1917 teve uma índolee um suro acidentais, tudo feito a esmo, sem planejamento”.

Gorky e outros opositores incondicionais de Lenin investiram contra sua beatificação e santificação póstumas que o colocaram no sarcófago de vidro do Kremlin, sua múmia adorada por milhões de soviéticos que não podem ter acesso à verdade. Quando soube que Lenin queria um terror total para satisfazer sua desse de poder insaciável e poder comandar sozinho a SUA revolução. Gorky (que em russo significa amargo) desfechou contra o falso líder saraivadas de ódio:

“Haverá mesmo aventureiros que ao verem o declínio da energia revolucionária na parte pensante do proletariado esperam estimular essa energia através de um abundante derramamento de sangue? Todos os instintos mais sinistros da multidão, irritada pela desintegração das mentiras e da podridão da política, se incendiarão a turba enfurecida, nos envenenará com sua cólera, seu ódio e sua sede de vingança. As pessoas se matarão umas às outras num massacre incapaz de suprimir sua própria estupidez animalesca.”

Com um atraso inexplicável Lenin dignou-se a considerar que “talvez aquele primeiro levante” podia ser a alavanca para que a Revolução caísse em suas mãos, as únicas preparadas décadas a fio para uma empresa de tal magnitude. Ela não sabia a extensão real da Revolução: os revolucionários tinham ocupado os palácios imperiais, as oficinas gráficas, o Parlamento. Quando se arrancavam de algum prédio as insígnias imperiais – a águia russa, negra, de duas cabeças – a população as atirava às fogueiras com gritos de alegria e aplausos. Em Kronstadt os marinheiros amotinados contra a disciplina cruel e obtusamente repressiva da Marinha executaram o almirantado cruzador “Aurora”. A bandeira vermelha tremulava em portos distantes como Revel e Helsingfors enquanto o sangue corria por todos os poros de uma revolução quase niilista de tão anárquica e sanguinolenta.

O Tzar foi obrigado a abdicar do trono que precederia seu assassínio pelos revolucionários, com toda a sua família e serviçais, no porão de uma casa da cidade de Yekaterinburg, no interior remoto. Ele não se considerava o Jó sofredor da dinastia Romanov? O avanço das tropas tchecas leais ao Tzar revelou-se afinal como uma esperança ilusória a mais. Ele e Lenin executavam um lúgubre pas de deux do balé “O Preço de se ignorar uma Revolução popular”.

Mas Lenin pelo menos estava vivo, soterrado sob pilhas de livros e artigos teóricos. Agora – seria possível?! – ele concluíra o curo de lógica em que fora sintomaticamente reprovado desde o ginásio. Agora “bastava de palavreados”. E para passar à ação paraplégica ele passava por cima do fato de que as lideranças revolucionárias estavam nas mãos dos Mensheviks e dos Sociais Radicais. Mas armado de uma peruca e um passaporte sueco obtido por amigos em Estocolmo ele não poderia passar por um sueco surdo-mudo, já que não falava sueco, e assumir o controle da Revolução? O Governo da Alemanha, raposa ardilosíssima, achou que natürlich, naturalmente que sim. Quanto mais revolucionários pudessem chegar à Rússia tanto melhor: a operação de desmoronamento do inimigo seria acelerada. Lenin teve permissão de atravessar o território alemão em um trem que se convencionou chamar de “blindado”, mas que de “blindado” só tinha a proibição dos revolucionários vindos da Suíça por intervenção maciça do enigmático simpatizante russo dos revolucionários, Parvus, de descer em estações ferroviárias em território alemão. Que desagradável surpresa! Lenin não foi recebido como achava que merecia: com uma recepção triunfal na Rússia. Ao contrário.

Para seu horror, facções bolchevistas vultosas desfilaram na estação de sua volta nada triunfal à Rússia com os dizeres desafiadores: “Abaixo, Lenin!” A Organização dos Mutilados Russos de Guerra exigiu publicamente que ele fosse preso como “espião alemão”. O Governo Provisório, caótico, precário, sob direção de Kerensky também pusera sua cabeça a prêmio e suprimira jornais bolchevistas como o Pravda. Stalin discordava da linha extremista pregada por Lenin e muitos riam de sua miopia catastrófica de crer que “a guerra acabaria porque os trabalhadores da Europa se levantariam contra o capitalismo”.

Cada vez mais, em solo russo, Lenin tornou-se impermeável a qualquer diálogo, qualquer coligação com os inimigos – paranoicamente para ele e para o tzar, os “inimigos” eram toda e qualquer pessoa que aventasse o esboço de se opor a seu domínio autocrático, onisapiente, onisciente, indiscutível, dogmático. Lenin opôs-se frontalmente à realização de um Congresso Pan-Russo dos Sovietes, contrariando todas as facções políticas ativas. Desgostoso, temeroso de ser capturado pelos ubíquos “inimigos”, ele tirou os óculos, a peruca e deixou crescer a barba para exilar-se novamente na clandestinidade, desta vez na vizinha Finlândia – seu momento continuava bloqueado pelos “imbecis” – isto é: todos os outros.

Enquanto isso, tropas alemãs e russas no cessar-fogo improvisado no front disputavam partidas de futebol e o tzar, às vésperas da morte, lia alto para a família romances policiais de Sherlock Holmes, lia para si, em voz baixa, A Vida de Monte Cristo – outro injustiçado como ele – e ocasionalmente uma história de horror: o relato intitulado Drácula.

Nenhuma fonte oficial soviética conseguiu até hoje precisar em que data Lenin voltou para aquela São Petersburgo que por causa de seu nome germanizante fora rebatizada patrioticamente de Petrograd e anos mais tarde se tornaria a Leningrado de hoje. Tenha voltado no dia que for, Lenin não mediu mais esforços para para impor seu despotismo preparatório dos Gulags stalinistas. Como primeiro ato do novo Soviet dos Comissários do Povo, Lenin apresentou um decreto que abolia toda e qualquer liberdade de imprensa, contrariando um dos princípios básicos dos bolchevistas ao lado do slogan “pão, paz e terra”, A imprensa livre, justificava ele, era um mínimo menos perigosa contra o poder soviético do que as bombas e as metralhadoras. Qualquer crítica ao Governo seria passível de processo criminal contra o proprietário do jornal “anti-soviético”. E criou a Comissão Extraordinária Pan-Russa para Luta Anti-Revolucionária e Sabotagem, um eufemismo para eliminar friamente todo e qualquer imbecil que se opusesse à sua tirania.

A polícia encarregada do terror em massa ordenado por Lenin, a Tcheka admitia francamente: “Não procuramos provas ou testemunhas capazes de revelar fatos ou palavras contra o poder soviético. A primeira pergunta que fazemos é: a que classe social você pertence, quais são suas origens, como você foi criado, que grau de educação você recebeu, qual é a sua profissão? A resposta a estas perguntas é que define o veredicto do réu. Esta é a própria essência d Terror Vermelho”. A Assembleia Constituinte, onde os bolchevistas eram a minoria (de 707 deputados, apenas 175 eram bolchevistas contra 350 Socialistas Revolucionários, 40 Socialistas, 17 Kadets e 16 Mensheviks) ele considerou “um conto de fadas ultrapassado”. Para que o Parlamento? Para que a democracia se “o povo” (Lenin) estava no poder? A ferocidade com que Lenin, pregava aos urros o terror contra todos, indiscriminados assassínios em massa, horrorizou Lunatcharsky, o velho bolchevista, ao constatar que Lenin decretara que “todos os inimigos do Socialismo (que mais tarde ele rebatizaria de Comunismo porque”socialismo é uma palavra já conspurcada”) serão privados, temporariamente, da inviolabilidade física e de domicílio bem como da liberdade da imprensa, e do sufrágio universal”. O próprio príncipe anarquista Kropotkin horrorizado escreveu numa famosa carta de 1920 a Lenin:

“Não haverá mesmo ninguém a seu redor capaz de recordar-lhe que tais medidas (do terror em massa) inevitavelmente nos levam de volta às piores épocas da Idade Média e das guerras religiosas – um rumo indigno de um povo que procura fundar uma sociedade futura com alicerces comunistas?”

Gorky denunciava Lenin e Trotsky perante o proletariado, acusando-os de usar os operários como cobaias:

“Enquanto eu viver, direi e repetirei ao proletariado russo:

Vocês estão sendo conduzidos à ruína, vocês estão servindo de material para experiências desumanas e, aos olhos de seus líderes, vocês continuam não sendo seres humanos. Não há veneno mais podre do que o do poder exercido sobre o povo.”

Lenin tinha-se tornado a antítese de seu irmão Aleksander Illyitch Ulanov, que tinha dado a vida pela liberdade, a democracia, os direitos sacrossantos, e “A Vontade do Povo”.

Entretanto, as palavras que ressoam até hoje do Kremlin a Cuba, do Cambodge ao Vietnã, de Praga a Budapeste sem resposta de todos os cúmplices – por omissão – ou ação ou dos crimes da União Soviética contra 60 milhões de mortos e 150 milhões na China de Mao Tsé-tung foram as palavras dirigidas pela líder terrorista revolucionária Mariya Spiridonova, de trinta e dois anos de idade, assassina de um membro da aristocracia tzarista em 1906, libertada de sua prisão perpétua pelos revolucionários, vítima de estupro por Cossacos. Quando Lenin, no Quinto Congresso Pan-Russo, realizado no Teatro Bolshoi, defendeu a restauração da pena de morte e o terror em massa, Mariya Spiridonova levantou-se e um arrepio eletrizou o público presente. Vestida simplesmente, seus cabelos negros penteados para trás num coque despretensioso, suas palavras crepitaram como balas contra o próprio coração dos Bolcheviques. Com a mão erguida ela se dirigiu direta e impavidamente a Lenin:

“Eu te acuso de trair os camponeses, de usá-los para atingir teus próprios fins. Para ti os camponeses não passam de estrume, adubo para fertilizar teus planos. Mas quando os camponeses, os camponeses bolcheviques, os camponeses da ala esquerda dos Socialistas Radicais e os camponeses apartidários são todos indiferentemente humilhados, oprimidos e esmagados – esmagados como camponeses que são – em minha mão tu te encontrarás, Lenin, a mesma pistola, a mesma bomba que no passado me forçaram a defender...”

Suas palavras, recorda uma testemunha visual, não puderam ser mais ouvidas na tempestade de violência que se lhes seguiu: enquanto seus admiradores a apoiavam com aplausos ensurdecedores, seus inimigos cobriam seu nome de palavrões e indecências. A verdade, até hoje camuflada, trancada em cofres fortes da União Soviética, enlouquecida nos hospitais psiquiátricos, contrabandeada pelos samizdats (panfletos contra o regime soviético copiados a máquina e passados de mão em mão clandestinamente), encharcada de sangue nas prisões dos campos de concentração do vasto Arquipélago Gulag – a verdade tinha sido silenciada pelo terror, pela mentira, pela ironia deliberada de todos os que – de Hitler a Brejnev, de Fidel Castro aos Khmer Roug, só sobrevivem impondo o amordaçamento do povo, da liberdade, da democracia, da justiça e pervertendo fins nobres em meios e expediente dos mais torpes e ignóbeis que a História da Humanidade consigna em quase 8.000 anos de registros fidedignos.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Revolução .” In Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra os despotismos e os totalitarismos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 12. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.