Uma brecha no silêncio do terror

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1989/06/24. Aguardando revisão.

Nós, do Ocidente fútil e egoísta, nada aprendemos com o massacre indescritível dos campos de concentração como Auschwitz e Dachau, do período nazista alemão.

Depois, comoveu-nos durante dez minutos, entre um anúncio da televisão e uma ida ao banheiro, a tragédia minuciosamente revelada dos sofrimentos infernais dos prisioneiros russos na era stalinista, relatados por Solzhenitsyn em seu incontestável O Arquipélago Gulag.

Em nossos dias, um programa de televisão que visava a fazer rir mergulhou na sordidez, na covardia, na insensibilidade ao tentar fazer graça com a heroica, sobre-humana coragem do jovem estudante chinês Wang Weilin, hoje condenado à morte, a desafiar sozinho, desarmado, idealista ou louco, os tanques armados da repressão geriatra da China governamental de hoje. O que leva a crer que TV Pirata seja capaz de tornar cômica a defesa de Londres, sem a qual o mundo talvez tivesse sucumbido à barbárie hitlerista, seja capaz de tornar risíveis ou pelo menos tentar tornar tão engraçados quanto os irmãos Marx os defensores estoicos de Stalingrado ou quem sabe fazer chacota da escravidão dos negros trazidos para o Brasil? Não há ser humano ateu que não respeite determinados princípios éticos de denodo, de coragem, de luta pela liberdade e pela justiça. A fé religiosa pode até ser considerada alacremente o mero “ópio do povo”. Mas se nada é sagrado, os princípios morais são intocáveis além de qualquer dogma, leviandade ou fanatismo.

Por que abordar tais questões?

Porque no mundo ocidental as duas grandes literaturas têm um ponto em comum: tanto a latino-americana (principalmente grande parte da literatura em espanhol) e a literatura russa são literaturas unidas pelo exílio, pelo combate à tirania e ao crime dos Stalins, Somozas, Francia (ditador paraguaio), Getúlio Vargas, Fidel Castro etc.

É possível que quando o mundo conhecer na sua inteireza a fisionomia trágica, sóbria e no entanto veemente da literatura esmagada pelos tanques e pela censura se tenha uma real concepção do totalitarismo como a organizada força anti-humana.

Aí terão menor importância o pan-eslavismo arcaico que empana o pensamento corajoso de Solzhenityn, a frivolidade estreita de um Milan Kundera e sua leveza de conteúdo intelectual. Porque livros assombrosos emergirão das duas fontes, a do exílio e a do samizdat (edições feitas à máquina, com várias cópias e circuladas clandestinamente nos países dominados pelo Império soviético).

Agota Kristof revela, através das brechas do silêncio instalado pelo terror as mentiras e a penúria, mostra quais são as verdadeiras vidas do Leste europeu hermeticamente fechada ao mundo exterior, no período anterior à promissora era Gorbatchóv atual.

Seu livro, curto e incisivo como um bisturi – A Prova – ultrapassa os reconhecimentos e prêmios que recebeu na França estupefata. O ambiente é o da Hungria e é o de qualquer lugar além do Muro de Berlim. Ninguém pode atravessar as fronteiras, minadas e 24 horas por dia vigiadas por soldados armados. Como na URSS de hoje, reabilitam-se pessoas assassinadas “por um erro do Partido” único. Como os líderes políticos húngaros, os mortos surgem irreconhecíveis depois dos arbitrários “interrogatórios” policiais, as unhas uma a uma arrancada à força, como fazia a Gestapo alemã com a Resistência nos países ocupados europeus.

Lucas, o personagem central, não pode identificar um cadáver sem rosto: só sabe que deve ser o pai, num gesto de desespero tentou atravessar a fronteira proibida e foi pego pelos guardas. No país, que a autora deixa entrever que tinha uma grande porcentagem de católicos, a Igreja não se dá ao luxo de rezar por Fidel Castro ou por Stalin, o “Paizinho dos Povos”: foi violentamente separada do Estado e os sacerdotes, transformados em leigos famélicos, têm que viver da caridade e dos donativos dos fiéis. Agota Kristof deixa entrever também que a propaganda do Instituto Oficial de Ateísmo deixou desmoronarem as igrejas e as mais humildes capelas: a juventude comunista não precisa de Deus, superstição dos oprimidos e hoje só velhas ainda frequentam os templos, os confessionários.

Lucas exprime todo o clima que sufoca as almas sob o trator do totalitarismo, neste caso da esquerda stalinista:

“- Eu não sei como continuar a viver”.

Que sentido tem a vida sem futuro, com a convivência diária com a corrupção, a mentira, o arbítrio? Ele vomita tudo que tenta gerir. Jogar xadrez com o padre condenado ao exílio interior pelas autoridades não distraia a mente da realidade circundante. Andar, a esmo, pelas ruas, não é uma solução, mas pelo menos ainda não foi proibido por “ele”.

Fica claro, à medida que penetramos neste livro doloroso, esturricado como o agreste Nordestino, um agreste em que a seca devastasse as almas, um livro sem adjetivos, sem quaisquer apelos emocionais, que se trata – e como poderia ser de outra forma? – também de um livro intensamente, sombriamente político. No bar paupérrimo um homem ousa cantar perante uma plateia muda canção proibida, as lágrimas a lhe escorrer pelas faces.

É uma evocação pungente, sutil, da imolação de tantas vidas como a do jovem tcheco Jan Palach, ateando fogo às próprias vestes, de luto pela liberdade de seu país, a Tchecoslováquia, digerida pelos vorazes tanques russos em 1968. É a morte do sonho de libertação da Hungria das forças ocupantes soviéticas em 1956, naquela breve e delirante utopia. E é a dignidade humana do estudante chinês Wang Weilin, à frente dos tanques de Deng Xiao Ping e de Li Peng, um sonho desarmado e hoje fuzilado.

Um homossexual platônico representa a conivência com o frenesi do Partido único, maneira relutante, mas eficaz de se manter vivo. As tragédias humanas são agravadas pela proibição de cruzar a fronteira: uma mãe solteira, seduzida pelo próprio pai, dá à luz um filho deformado, corcunda: Ela usou durante tempo demais durante a gravidez um corpete justo que disfarçava o volume crescente do seu ventre.

Tudo faz aparte do clima de totalitarismo que aprisiona aquela nação, aquela indefesa comunidade humana. As bibliotecas “do povo” estão recheadas apenas de duas coisas: reles escrevinhações de adulação dos poderosos, cantando as “glórias” múltiplas do regime. E caixotes cheios de livros proibidos, que estão na lista negra como o index do Vaticano em seu período de força inquisitorial:

“Romances escritos para a glória do regime. É de se acreditar que já não existem escritores no nosso país”. Os livros bons “são retirados de circulação”, são “proibidos. Desaparecidos”. Como a “Arte degenerada” (entartete Kunst) nazista a jogar na fogueira os grandes nomes que plasmaram a literatura de nosso tempo e suas obras de arte.

A própria bibliotecária é um títere na mão de seus carrascos: mataram-lhe o marido: “Meus cabelos ficaram brancos numa só noite. Foi na noite em que”eles” enforcaram o meu marido por alta traição”.

Ela faz seu trabalho: reduz a polpa os volumes de acesso vetado aos leitores enquanto o regime reduz a polpa qualquer brilho de alegria ou esperança que possa surgir em meio a aquele permanente, denso nevoeiro Kafkiano! O sonho inútil de se conquistar a liberdade é inalcançável como penetrar o Castelo na obra angustiante do autor tcheco.

O leitor sensível, que não nega o conteúdo altamente filosófico e mesmo ético da Literatura, não precisa de mais dados para ir deslindando esta história. Os traumas diluem a memória, fazem tábula rasa do bom, do mal e do indiferente:

“Você esquecerá. A vida é assim. Tudo se apaga com o tempo. As lembranças se apagam, a dor diminui”.

Toda repressão contra a liberdade, a democracia e os direitos do homem usa métodos idênticos, na China de hoje como nos países escravizados por Moscou no Leste da Europa:

“Uma insurreição prepara-se no nosso país. Uma contrarrevolução. Começou pelos intelectuais, que escreviam coisas que não deveriam ter escrito. Continuou com os estudantes. Os estudantes estão sempre prontos a semear a desordem. Organizaram uma manifestação que degenerou em tumulto contra as forças da ordem. Mas tornou-se verdadeiramente perigoso quando os operários e até mesmo uma fração do exército se juntaram aos estudantes. Ontem de noite os militares distribuíram armas a indivíduos irresponsáveis. As pessoas estão dando tiros na capital, e o movimento está chegando à província e à classe agrícola”.

Com leves modificações, já em 1988 a autora não captava exatamente a luta, agora, dos estudantes chineses pela liberdade, a democracia e os direitos do cidadão contra a opressão monolítica do Partido geriatra?

Sem talvez o saber, a própria escritora adverte: “Escrever não é a mesma coisa que fazer vestidos”.

Quem jamais esperou na Literatura apenas um divertimento reconhecerá neste livro doloroso, de uma febre “controlada”, mas veemente o depoimento daqueles cujas almas estavam amordaçadas, mas nunca mortas. Em meio à rigidez cadavérica de Lenin e Mao embalsamados ou Fidel Castro, e Pinochet e Stroessner, este livro soberbo é mais uma lápide insigne que se coloca no pesadelo do totalitarismo: nazista o soviético, já que ambos, como comprova a História, são idênticos.

E para o leitor fica o desfecho terrível da “prova”, quando as vidas vividas no martírio se tornam inexistentes no jargão burocrático do regime que estiver no poder. Que admirável lição de consciência, de perfeição literária, de indômita ressurreição dos mais altos princípios éticos nestas escassas 147 páginas!

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Uma brecha no silêncio do terror .” In Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra os despotismos e os totalitarismos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 12. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.