Inéditos de Clarice, para se conhecer melhor Clarice

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 30/05/1981. Aguardando revisão.

A escritora e animadora das artes, Olga Borelli, amiga de Clarice Lispector, durante muitos anos, resolveu reunir páginas inéditas da grande escritora de Laços de Família e publicá-los agora após a morte daquela que é talvez a mais importante contista das Três Américas. Se Clarice Lispector, em vida, sempre fora explorada por editores inescrupulosos, demitida bruscamente de jornais em que colaborava, depois de morta, pelo menos o profundo respeito - que a sua esplêndida criação literária deveria incutir até nos mais incultos - lhe granjeou até agora melhor acolhida. A Editora Nova Fronteira, como quase todas as demais editoras brasileiras, não distribui (ou pelo menos distribui com grande atraso) os livros que publica, dificultando não só o trabalho do crítico que escreve regularmente na imprensa como, dessa forma, não fazendo propaganda gratuita, dirigida ao grande público, dos livros editados. (E que dizer de uma Editora Difel, que só envia capas dos livros, propondo ao crítico advinhar o que se esconde por trás daquela capa exígua e ridícula?)

Clarice Lispector, como fica bem claro nestas explanações de Olga Borelli e que eu pessoalmente posso confirmar, tendo sido amigo da maravilhosa escritora pernambucana durante cerca de 20 anos, tinha horror a ser classificada de “mito”, de “monstro sagrado”, de “hermética”. Como relata sua amiga íntima, a escritora Nélida Piñon, em depoimento dado a Olga Borelli, durante um douto seminário universitário organizado com o fito exclusivo de debater a sua obra, Clarice Lispector não resistiu: bebeu avidamente a água mineral dos cultíssimos eruditos e retirou-se deixando-os enrolados em todos os seus “ismos” semióticos, metalinguísticos, fonemas, e labirintos de árdua exegese linguística.

Com essa mesma independência, eu me recordo, Clarice Lispector se recusava peremptoriamente a conceder entrevistas, a “brilhar”, a aparecer. Seu magnetismo pessoal era incomparável. Durante um encontro de escritores realizado em Porto Alegre, um ou dois anos antes de sua morte, assistimos estarrecidos, a uma cena inigualável. Em meio à balbúrdia de mais de mil estudantes da Pontifícia Univerdidade Católica de Porto Alegre, ela se manteve imóvel, os braços apoiados na mesa, sem dizer uma palavra sequer. Depois, como que por irresistível magia do seu carisma, uma a uma as filas ruidosas dos jovens foram-se calando espontaneamente, e se fez um silêncio absoluto naquele anfiteatro que continha talvez 2.000 pessoas, todas a olhar fixamente para Clarice Lispector, que se mantinha muda, altiva, levemente enfadada. Quando surgiu a primeira pergunta, relativa à sua relação com o tempo e o espaço para criar, ela respondeu de maneira impetuosa, alegando que não era Einstein e, portanto, não podia responder à questão. Depois, cansada ao ver a pilha de indagações que se acumulavam sobre a mesa e que pediam classificações de gêneros literários, colocações do estruturalismo, da Escola de Praga, do new criticism etc., deu vazão à sua impaciência. Passou a mim num gesto impetuoso a tarefa de responder a todas as perguntas, delegando-me a missão de assumir o cérebro dela, pois eu a entenderia melhor como escritora do que ela própria…

O que terá sobrado desse em tantos momentos belo, revelador e comovente livro de Olga Borelli, nesse tributo tão raro hoje em dia de amigo para amigo? Será preciso aguardar a chegada do livro editado pela Nova Fronteira. Baseado, porém, no rascunho que a autora gentilmente me cedeu, eu preferia não fazer quase comentário algum, limitando-me a transcrever os trechos que mais elucidam a personalidade fascinante de Clarice Lispector, e que falam por si mesmos, sem necessidade de qualquer observação impertinente como adiposidade a seu texto deslumbrante. Só me cabe esperar ardentemente que estes trechos tenham sido incluídos na edição da Nova Fronteira pela visão profunda e extasiante que dão ao leitor da magnífica autora do conto “A Galinha”:

“Eu me uso como forma de conhecimento.

Minha vida começa pelo meio, aí vai o meio. Depois o princípio aparecerá ou não.

É mês de outubro.

O ano está com um sol em ocaso.

No que precede o acontecimento - é lá que eu vivo. Espero viver sempre às vésperas. E não no dia. O presente só existe quando ele é lembrança e só existe quando vai ser.

Estive à beira de comprender o tempo, eu senti que sim. Mas logo em seguida ao leve vislumbre, tive uma espécie de medo de penetrar sem nenhuma lógica na matéria que me pareceu de súbito sagrada.

Não esquecer: hoje é agora. Ressoam os tambores anunciando o sem-começo e o sem-fim. Abrem-se as cortinas. Eu sinto que a realidade é tridimensional. Por quê? Não consigo explicar. O que sinto é no sem-tempo e no sem-espaço. O tempo no futuro já passou.

É fascinante lembrar-se. De repente o passado é uma coisa que ainda vai acontecer, só que já se prevê tudo o que vai acontecer. Lembrar-se: às duas horas da manhã desci do avião para escala em Manaus e depois de novo subir. Na base aérea estaquei atônita: o que se respirava lá não era normal, por Deus, devia ser algum óleo gosmento. Eu não conseguia respirar e atravessando meu peito uma bruta mão forçava a encostar o estômago nas minhas costas. Era o sétimo elemento: o calor que se interpunha entre mim e a água salvadora. Eu só sei viver as coisas quando já as vivi. Não sei viver: só sei lembrar-me.

Não fazer nada é uma grande ocupação. É como estar no cosmos. O tédio prolonga o tempo. Sem falar que no tédio se tem tempo de puramente viver e apenas viver. O tempo é o sentido das horas e da vida. Para senti-lo é preciso se purificar do nada. Ou não é o tédio? Talvez seja a vazia meditação que parece com a prece sem palavras, sem sequer ser mentalizada. É o silêncio. Há um silêncio interior que leva ao êxtase tão puro que prescinde de divindades. Eu conheço o seguinte: estar plena do nada. Isso é o resultado de uma longa e penosa aprendizagem.

Agora, enfim, eu não adoro. Eu sou o que é e isso não pede adoração.

Nada começou a nada teminará. Inclusive não existe a palavra “sempre”, pois ela se refere a “tempo” e “tempo” só existe em nós referindo-se a uma coisa se transformar em outra. (A essa transformação chamamos de “tempo”). Mas o Tempo em si não é. O Tempo é o indefinível. Eu me coloco bem depressa no tempo, antes de morrer. A vida é muito rápida quando se vê chego ao fim. E ainda por cima somos obrigados a amar a Deus”.

Ou:

“Eu não sei resumir minha filosofia de vida em palavras.

Vida é o desejo de continuar vivendo e viva é aquela coisa que vai morrer. A vida serve é para se morrer dela.

A extrema felicidade se parece tanto com a infelicidade. Ambas são tão dramáticas. Ambas são a vida.

Minha salvação está no segredo. E tudo o que eu falo é para dizer nada. No meu núcleo secreto eu respiro. E minha respiração é só o que eu tenho. Calo-me. Porque não sei qual é o meu segredo. Conta-me o teu, ensina-me sobre o secreto de cada um de nós. Não é segredo difamante. É apenas esse isto: segredo.

E não tem fórmulas.

Viver, afinal de contas, é entre dois nadas: antes do nascimento e depois da morte.

Por que vivo? é porque vivo. Por que vives? é porque vives.

Isso explica tudo? Não, porque o tudo é tudo por ser tudo.

Eu não sabia e ainda não sei viver.

O que me atormenta é que tudo é “por enquanto”, nada é “sempre”. Era o meu sonho ter várias vidas. Numa eu seria só mãe, em outra vida eu só escreveria, em outra eu só amava.

Acho que a gente luta tanto para produzir uma obra de arte só para sobreviver. Por que será que a gente luta tanto para poder produzir uma obra de arte?

Eu procuro alcançar alguma coisa que não sei o que é. Algumas pessoas acham que a procura dura o tempo de uma vida. O ser humano nunca descobrirá o mistério.

Voltar atrás, desdizer o que vivi.

Às vezes o que nos salva a alma são os vícios.

No mundo me sinto tonta como se tivesse girado muitas vezes em torno de mim e caísse em vórtice no chão. É por causa do seguinte: que se imagine um grosso dicionário com o significado de todas as palavras, mas que estas não estivessem postas em ordem alfabétca, e de repente no X se encontrasse um “m” ou um “a” e para achar a palavra “ardente” só por acaso. Tudo está ali, bem sei. Mas como procurar e achar? Encontra-se apenas o que se acha e não o que se procura. Agora estou comparando minha vida com esse dicionário-caleidoscópio: só acho nela sentido, se o acaso me der. Sei que há em mim e em torno de mim significados. Mas como achá-los? Como procurá-los? Quero saber o meu sinônimo e nem mesmo a palavra que teria o meu sinônimo e nem mesmo a palavra que teria o meu sinônimo eu não posso procurar. E a vida é curta demais para eu ter todo o grosso dicionário a fim de por acaso descobrir a palavra salvadora.

Me justificar mais do que a vida? No mundo das coisas, quando sei que elas vão acabar, começo a frui-las.

Tenho medo de estar viva.

O mundo inteiro teme a própria vida. A morte é coisa que não é nossa. Mas a vida, a vida é e eu morro de medo de respirar.

Que impaciência com a própria vida. Tenho que ter paciência para salvar a vida.

Até a coisa morta tem um instante em que ela reverbera os raios da vida. Eu soube que uma formiga é capaz de carregar um volume cem vezes maior do que o seu próprio peso. E eu que não aguento a alma de meu próprio peso.

Quase todas as vidas são pequenas. O que alarga uma vida é a vida interior, são os pensamentos, são as sensações, são as esperanças inúteis. A esperança vale na hora mesmo em que é esperança, quase prescindindo de sua realização. Esperança é como o girassol que à toa se vira em direção ao sol. Mas não é à toa: virar-se para o sol é um ato de realização de fé. O que alarga a vida de uma pessoa são os sonhos impossíveis. Os desejos irrealizáveis. E são tão fortes essas esperanças e desejos que a pessoa cai e quando vê está de novo virada para o sol inatingível. Porque a flor tem perfume e não é para ninguém, é para nada, é um dar-se de graça. Como a esperança. A esperança visa a própria esperança. A esperança é um acontecimento em si.

Não mato porque não quero perder minha vida. Mas também porque quero me banhar na retida vontade de matar. Retida, sim, e por isso mesmo mais violenta - sou obrigada a ter como só meu o gosto supremo de querer matar e o gosto de viver sob a extrema tensão de arco e flecha retesados. E que não disparam.”

Olga Borelli ressalta a extrema simplicidade da vida cotidiana da maravilhosa autora de Água Viva. Seu apartamento no bairro do Leme, no Rio de Janeiro, com seu cachorro Ulisses, suas noites de insônia, seu retrato feito em Roma por De Chirico, a ausência surpreendente de livros. Clarice espantava-se quando comparavam seu estilo aos dos maiores escritores, Joyce, Virgínia Woolf, Proust. Apenas ouvira falar deles, mas nunca os lera. Seus diálogos eram sobre coisas comuns, nunca a vi conversando sobre literatura com pessoa alguma, traço que a autora desta tocante homenagem póstuma ressalta também. A Clarice Lispector que surge para o leitor é uma Clarice inesperada: que vai a cartomantes em bairros longínquos que crê que o número 13 dá sorte, que não sabe tratar de contratos com editoras inescrupulosas, com sua inclinação natural pelo desapego às coisas materiais. Traduzia recebendo salários que eram uma ninharia. Tinha textos seus incluídos em antologias que rendiam muito lucro aos editores, mas não lhe davam nem uma fração de direito autoral. Antes de ser conhecida, seus manuscritos ficavam meses em gavetas de editores que prometiam lê-los “daqui a 12 dias” e os “12 dias” se eternizavam. Escritores amigos, como Fernando Sabino, Nélida Piñon ou Carlos Drummond de Andrade procuravam defender Clarice da cupidez e da estupidez congênita de tantos editores de livros e jornais no Brasil.

Sumariamente demitida de um jornal no qual colaborava, enviando crônicas às vezes belíssimas (escrever com regularidade para ela era uma tortura), Clarice Lispector foi sempre uma vítima inocente da total inescrupulosidade da grande maioria do mercado editorial e jornalístico brasileiro. Em depoimento que o Coojornal de Porto Alegre gravou pormenorizadamente, ele relata a sua amargura, o seu desapontamento em ser despojada assim de seus direitos mínimos. Olga Borelli refere ainda a desilusão que Clarice Lispector tinha com a tradução de seus livros. Uma desilusão que lhe causou uma vez lágrimas. Eu estava apontando para ela erros da tradução para o alemão (creio que do injustamente famoso Meyer-Classon) de um de seus romances (creio que A Maçã no Escuro) e ela me pediu que parasse, chorando convulsivamente: que poderia fazer diante de tal distorção do que dissera originalmente em português? Com a tradução francesa de um livro seu ela irritou-se com um misto de fúria e impotência diante da arbitrariedade impune das traduções malfeitas, que não são um privilégio do Brasil, embora aqui tenham o seu quartel-general:

“A conselho de Érico (Veríssimo, seu amigo de sempre), mandei uma carta dizendo que a ‘tradução’ (francesa) era escandalosamente má, etc, que preferia que o livro nunca fosse publicado na França a sair como está, sem correções. E mandei exemplos dos erros de tradução. Esse trabalho me levou cerca de dez dias, trabalhando muitas vezes até as duas e tanto da madrugada, pois fui obrigada até a escrever em francês. Para vocês terem uma ideia da tradução, eis alguns exemplos: em português a frase: ‘ao fim de alguns instantes, as chamas subitamente reanimadas’ foi traduzida por ‘ao fim de alguns instantes, tudo o que nela chamava se acordou’ (com certeza a tradutora vendo ‘chamas’ achou que se tratasse do verbo ‘chamar’). Aonde (sic) ponho: o pai estava despenteado, a tradutora põe: o pai estava sem fôlego. Aonde (sic) ponho ‘ela temia continuar ao lado de fulana’, a tradutora pôs: ‘repugnava-lhe estar’ etc.” Os erros prosseguem: olheiras negras é traduzido como óculos escuros, fiquei tonta é deturpado para fiquei estúpida, até o nec plus ultra do absurdo: Clarice Lispector tinha escrito, em português: “a boca em forma de muchocho” e a tradutora francesa, a quem devemos dar honoris causa, o título de tradutora brasileira, inventou esta obra-prima: “la bouche en cul-de-poule” …

Outras meditações que Olga Borelli transcreve de Clarice Lispector como que continuam a sua obra publicada e iluminam várias facetas da sua personalidade enigmática e de um carisma mágico, irrepetível:

“Eu entro no sono como numa iniciação.

Como que sua sensação era a de estar terrivelmente acordada. E pensou em pânico: irei ficar acordada pelo resto de minha vida? Porque tinha a impressão de que nunca - nunca mais iria dormir.

Eu durmo logo, logo que me deito só por medo da insônia. Só considero meu o sono enquanto durmo.

Enigmática, severa, dura como uma guerreira santa - entrei no sono para sonhar com a verdadeira vida. Que é um mistério de vida, uma flor. Uma flor que nada espera de nada. Não esperar nada também é um modo de viver. Assim, antes de cair na pétala do sono, revi mentalmente as cadeiras empoleiradas umas nas outras. Fora um dia igual aos outros.

Acordou-se e era dia. Mil vezes nesse dia se sentiria frustrada. Várias vezes se sentiria para sempre perdida. Inúmeras vezes entraria em labirintos sem saber como sair - enfim, era mais um dia como outro qualquer.

É de madrugada. Estou pela frente com um dia inteiramente vazio. Mas estou pronta para me acontecer. Um dia vazio de fatos me dá oportunidade de aparecer para mim mesmo. Ah, já sei: vou ligar o rádio e me ouvir os outros tocando música. É isso mesmo: música é tão importante para mim que, quando ouço, é como se eu fosse o intérprete. Tenho através dos outros uma voz belíssima. E não existe ninguém que me toque melhor a flauta-doce.”

Deliciosamente desorganizada, apaixonada por filmes de mistério, no cinema Clarice Lispector anotava frases que depois lhe serviam para contos, trechos de romances, crônicas. Paradoxalmente, detestava escrever ou tentar escrever. Neste livro ou pelo menos no rascunho que me foi dado ler há trechos elucidativos da relação inquieta de Clarice Lispector com a fé e a escrita:

“Fiz o que era mais urgente: uma prece.

Eu só rezo porque palavras me sustentam. Eu só rezo porque a palavra me maravilha.

Quem reza, reza para si próprio chamando-se de outro nome. A chama da vela. O fogo me faz rezar. Tenho secreta adoração pagã de flama vermelha e amarela. A vida seria insuportável sem o sonho. É que às vezes não se tem mesmo mais nada e só restam os brandos e profundos sonhos que mais parecem uma prece. A realização está no próprio ato de apenas sonhar.

É preciso ter muita coragem para ir ao fundo da vida. Porque no fundo da vida nada acontece ao homem, ele só contempla. Nem sequer pensa no que contempla. Quando eu fico sem nenhuma palavra no pensamento e sem imagem visual interna, eu chamo isso de meditar. O silêncio é tal que nem o pensamento pensa.

Um modo de cair em êxtase. Eu eu leio isso três vezes em seguida caio em êxtase.

Deve-se ter contato com o Desconhecido sem uma palavra, nem sequer a palavra apenas mental, assim como um mudo ‘fala’ com a intensidade do olhar.”

O depoimento de seu amigo, o jornalista Alberto Dines, insiste nas características especificamente judias da personalidade de Clarice Lispector que não me parecem justificadas nem comprovadas. O seu misticismo tem mais afinidades, creio, com as doutrinas religiosas da Índia do que com os textos sagrados judaicos. Ela frequentemente alude às conexões indesvendadas entre a Arte, Deus e a esperança, Deus o ignoto e para sempre incognoscível pela dimensão humana, que é a dimensão efêmera do nada:

“A arte é a busca de uma realidade sonhada. Cada vida tem sua arte. Então quer dizer que é no buscar que se repleta o vazio. Mas existe uma ilusão sempre renovada: quando a busca encontra, nasce outro vazio.

Penso e sei que vou ao encontro do que existe dentro de mim, vou a essa encontro nua e descalça e com mãos vazias, à mercê de mim mesma. Só eu, que encarno Deus, posso me plenificar. Plenificar na pobreza de espírito.

Só a necessidade que eu tenho me justifica. Que seria de mim se eu não precisasse? Que seria de meu corpo se não houvesse o aviso da fome? Que seria de mim se não houvesse o futuro? Que seria de mim se eu não precisasse de Deus?

Só a fala te justifica uma Busca jamais atingida. Mas enquanto isso, hoje é hoje.

Minha necessidade me informa.

Senti de repente uma solidão altíssima.

Aquela em que se quer inventar Deus e não se consegue.

Só me enganando que existe Deus é que consigo viver. Se não fosse a fé inexplicável pelo Desconhecido, o desespero me destruiria. Eu finjo que existe “Deus” para aguentar o inexplicável através do inexplicável.

Estou desarmada, frágil, abandonada e - há esperança. Esperança em quê? No encadeamento orgânico de um absurdo se encaixar em outro absurdo, este preso por um elo forte a mais outro absurdo até chegar ao Absurdo: um Deus. Mas não exsitir um Deus seria inventar a hipótese absurda de Sua inexistência. E tudo é causado por outra causa. A primeira - como é que apareceu?

De repente eu vi que não estava livre. Engradada e condicionada. Então com veemência disse-me: eu não creio em Deus e não creio nos homens. Senti que os grilhões que me prendiam estavam soltos enfim e toda alegre eu estava só e nua. Era uma solidão gloriosa e de vitória e era uma nudez de última libertação.

Foi então que pensei em Deus. E aceitei-O. Mas como mulher livre. A nudez, porém, não desapareceu, eu não quis mais acumular sobre minha pele-unica-vestimenta nenhuma pressão. Meu drama é que sou livre.

Talvez só se possa acreditar completamente no que não se pode ver. Dentro de mim há o irreconhecível.

Quero saber o que acontece quando não acontece nada. Qual é o oposto de acontecer? Sei que é “não-acontecer”. Acho que vem o indizível.

O pai, o Pai de Todos, dizia que o ditado “cada um por si e Deus para todos” estava errado. Que era assim: “Cada um por si e Deus para ninguém”. Pois havia galáxias infinitamente para esse Deus cuidar. “Deus significa o alcance do si-mesmo para o sem-matéria. Deus significa o encontro de si-mesmo com o próprio mistério de si. Mas o estado de ascese pode viver sem Deus: é quando mais perto me acho do Deus renegado.

Deus significa o apuramento do sonho, significa a capacidade de uma pessoa de se livrar do peso do si-mesmo. Minha abstração de mim é Deus. Que Deus só é compreensível se a gente descobrir que Ele pensa em termo de milênios em matéria de tempo ou mesmo do infinito. Quanto a pessoas, Ele talvez só veja o nosso protótipo e não cada um de nós que é uma repetição do protótipo.

Talvez não caiba a Ele nos procurar. Cabe a cada um de nós sorver dele a misericórdia que Nele é Impessoal matemática. Nós temos o poder de transformar essa misericórdia em alma nossa. Ele criou o tipo e nos largou com ele.

“Deus” é o que o dicionário não explica. Deus dificulta demais o nosso amor por Ele. Como perdoá-lo se tudo nos é tirado? Um Deus que me faz triste - devo amar esse Deus que talvez não passe de um “deus”. Isto é: nada. Tenho que amar o Nada. É difícil esse diálogo de surdos. Como te amar, Deus, se fizeste de mim um simples “isto”?

Também não sou nada.

Tu és com letra maiúscula NADA. A tua dor deve ser grande demais e Tua solidão - bem, Tua solidão eu não Te invejo. Mas pelo que sinto de solidão afinal, imagino a Tua. Que a vida na terra deu errado. Simplesmente não funcionou. Que fazer então? Será que Deus também reza? e o que pede Ele? que peço eu? peço a palavra. A palavra dita. A única palavra por que se espera. Eu, condenada a viver.

Eu chamo Deus por que não sei o que chamar nem como chamar. Deus não é o princípio e não é o fim. É sempre o meio. Deus não pensa, age diretamente. Deus é uma forma de ser? é a abstração que se materializa na natureza do que existe?

Pensar é um ato.

Sentir é um fato.

Os dois juntos - sou eu que escrevo o que estou escrevendo.

Deus é o mundo.

O natural é o maior mistério que existe.

Nada é mais solitário que fazer um chá para si mesma. Hoje preparo de leve um chá para mim. O chá termina sendo agasalho. Eu o bebo e ele me é. Sendo-me, ele, então não estou mais tão só.”

Há ainda textos inteiros de Clarice Lispector explicando porque não adere a uma literatura engajada sem ser o que vulgarmente se chama de uma “alienada”: para ela a justiça social é tão avassaladoramente ausente da condição humana que prefere não escrever sobre o óbvio. Mas o seu empenho, pelo humano, através da sua ação criadora, é sempre em prol do próximo: “As ações são minhas palavras”.

Ou claramente: “Nasci para amar os outros, nasci para escrever e nasci para criar meus filhos. O ‘amar os outros’ é tão vasto que inclui até perdão por mim mesma, com o que sobra. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca”.

No hospital da Lagoa, onde veio a falecer de câncer em 9 de dezembro de 1977, a escritora que deixou tantos textos definitivos em sua beleza perfeita, em sua profundidade filosófica vazada em termos simples pôde morrer, sem exagero, graças à intervenção da misericórdia de amigos que intercederam bondosamente para que ela fosse transferida para um hospital público, pois as despesas do hospital particular eram literalmente proibitivas. Antes, porém do estertor final Clarice rabiscou para sua amiga Olga Borelli um bilhete rápido e pateticamente eloquente:

“Súbita falta de ar. Muito antes da metamorfose e meu mal-estar, eu já havia notado num quadro pintado, em minha casa, um começo.

Eu, eu, se não me falha a memória, morrerei.

É que você não sabe o quanto pesa uma pessoa que não tem força. Me dê sua mão, porque preciso apertá-la para que nada doa tanto”.

Ela escorregou para os pés da cama, alongou-se em agonia e rompeu num grito primal, único, angustiado.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1981) 2022. “Inéditos de Clarice, para se conhecer melhor Clarice .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.