Mário, o campo aberto e nevoento do debate
“É noite. E tudo é noite. Uma ronda de sombras,
Souturnas sombras, enchem de noite tão vasta
O peito do rio, que é como se a noite fosse água,
Água noturna, noite líquida, afogando apreensões
As altas torres do meu coração exausto.
……………………………………………………………………..
É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastado
É um rumor de germes insalubres pela noite
insone e humana”.
Mário de Andrade (fragmento de Meditação sobre o Tietê)
Gênio múltiplo. Mário de Andrade continua, décadas e décadas a fio, a desafiar intérpretes. Como um enigma de incontáveis facetas, o renovador estético, o poeta, o ensaísta, o contista, o romancista, o musicólogo, o poliglota, o plurierudito fecundíssimo, o incomparável autor de cartas que mudaram as diretrizes da melhor poesia brasileira na correspondência dirigida a Carlos Drummond de Andrade que africanizaram, indianizaram, abrasileiraram o nosso poeta supremo, que país é este, chamado Mário de Andrade?
A interpretação de Gilda de Mello e Souza a respeito da obra mais conhecida de Mário de Andrade, Macunaíma, em seu ensaio O Tupi e o Alaúde, desvenda, certeiramente, o caráter dessa criação que, de certa forma, representa, para o Brasil, o que o Ulysses de Joyce representou para o romance europeu: o autor tem uma visão ambivalente e indeterminada sobre a sua criação que seria, segundo a crítica, “antes o campo aberto e nevoento de um debate, que o marco definitivo de uma certeza”. Fora de propósito, portanto, as versões ufanistas de que Macunaíma devorava os valores europeus como a barriga dos índios brasileiros cheios do Bispo Sardinha. Possivelmente, as criações máximas de Mário e de Oswald de Andrade, Macunaíma e Serafim Ponte Grande são, na realidade, grandes obras-primas manquées, incompletas, imperfeitas.
Um dos aspectos, porém, que rarissimamente se ressalta em toda a ficção de Mário de Andrade é a tristeza irremediável, a solidão, a incompreensão que o acompanharam toda a vida como escritor e como pessoa. Alvo de todas as mediocridades eternas que se eriçam com a aparição de um magnífico talento em seu meio, Mário de Andrade - seria exagero dizê-lo? - morreu massacrado pela maioria imbecil e furiosa do seu tempo. Ressalvadas, é lógico, as amizades lúcidas, as admirações fundas de poucos da sua época. Um autor que ele cita tão amiúde, Freud, não pode, levianamente ser “analisado” psicologicamente e rotulado; no entanto, é singular a atitude de Mário de Andrade: ele sempre cria para si e para os outros que querem ouvi-lo motivos para, senão ganhar, pelo menos colocar, ao lado do pessimismo, um lirismo cheio de senso de humor, de coragem, de calor humano, de esperanças, se essa palavra já não estiver de todo gasta hoje.
Quem sabe ou recorda que o autor paulistano nascido há 90 anos foi um dos mais ágeis e deliciosos cronistas brasileiros, mais ainda: um dos verdadeiros fundadores desse gênero que, parece, só se cultiva no Brasil - a crônica? É verdade que cm oscilações que mesmo hoje vão, para nossa desgraça, do ápice de Carlos Drummond de Andrade a abismos insondáveis de burrice e fanatismo ideológico.
Suas crônicas publicadas no Diário Nacional, orgão do Partido Democrático, Taxi e as que fotografaram sua viagem pela região amazônica, O Turista Aprendiz (ambas edições da Livraria Duas Cidades), são pequenas constelações de uma prosa perfeita que não ultrapassa, frequentemente, a página e meia. Mas que maravilhas estão ocultas nessa extrema concisão! O ignorantão, símbolo brasileiro do Bourgeois Gentilhomme de Molière, que não sabia que fazia prosa ao dizer “Maria, traga-me uma xícara de chá!”, é o que perpetua a “pianolatria” nacional e termina, fulminante, suas confissões: “Eu gosto muito de ópera, aquelas vestimentas… Só que… O sr. é músico mas acho que o sr. concorda comigo: o defeito da ópera é ter música. Não se entende nada! Seria tão lindo uma ópera sem música…”
Ou o Grande Arquiteto, que mistura estilos e recobre as paredes da casa de mármore falso, ao lado de um fogão Luiz XVI um portão de ferro árabe e torres florentinas. A ironia leve feita aos ridículos concursos de Miss Brasil: “Depois os Estados Unidos da América do Norte se mudaram pro nosso rancho e as revistas agora publicam fotografias de todas as iaras do Flamengo e outras praias”. Com as precoces apreensões da transformação da mulher em objeto: “Mas não será rebaixamento do ‘eterno feminino’ reduzir a dona a essa linguagem sumária? É! Isso não tem que guerê nem pipoca. E tudo isso vem apenas prejudicar a emancipação da cunhã”. E ue assombro não tomará os leitores da crônica (“São Tomás e os Jacarés”) ao acompanhar o bote de um jacaré que abocanha um pato: “E o bicho tão quieto, com os olhos docinhos, longo e puro, tinha um ar de anjo. Não se imagine que chego à iniciativa de povoar os pagos celestes com jacarés alados… O bicho ficou por assim dizer pra fora do tempo naquele nhoque temível”. Até à deliciosa conclusão de que os jacarés são… panteístas! Ou a comparação fascinante do Brasil com a vitória-régia: “Mistura de mistérios, dualidade interrogativa de coisas sublimes e coisas medonhas, grandeza aparente, dificuldade enorme, o melhor e o pior ao mesmo tempo, calma, tristonha, ofensiva, é impossível a gente ignorar que Nação representa essa flor…”
Simbolicamente, em 1945 morria o gênio e caía a ditadura getulista. A história da inteligência e da cultura brasileiras, da melancolia e da coragem de Mário de Andrade se misturam e hoje são uma só grandeza: arrebatadora, profunda, visionária.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Mário, o campo aberto e nevoento do debate},
booktitle = {Alguns artistas da Semana de Arte Moderna de 1922:
Entrevistas, depoimentos e ensaios},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {5},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-5/6-mario-de-andrade/01-mario-o-campo-aberto-e-nevoento-do-debate.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1983-10-08. Aguardando revisão.}
}