Manuel não está falando à toa
A crônica é um gênero literário peculiar ao Brasil. Cultivada com grande maestria por Rachel de Queiroz e Rubem Braga, nobilitada pela adesão de grandes poetas como Cecília Meirelles e Carlos Drummond de Andrade, constitui o registro sensível da fisionomia de uma grande cidade ou de momentos cruciais da vida de um povo. As colaborações de Manuel Bandeira a este filão menor, embora contínuas, estavam dispersas em vários jornais e revistas, Carlos Drummond de Andrade coligiu-as no propósito de salvar “um acervo de ideias, reflexões e anotações características de um poeta que nunca deixou de ser prosador seguro e gracioso, e jamais se eximiu de participar da vida de seu tempo e de seu país, pelo exercício simultâneo do lirismo e da razão empenhada em criar, aferir e difundir valores. Poeta prosador que fez de sua própria vida espelho de desinteresse pessoal e da dedicação ao melhor do homem”.
Andorinha, Andorinha enfeixa esses breves trechos e prosa, que percorrem toda uma vasta gama de participações personalíssimas do mestre de Estrela da Vida Inteira. Se, como o saudava Mário de Andrade, no plano da poesia Manuel Bandeira era o São João Batista do Modernismo, por antecipar inovações do Modernismo de 1922, nestas anotações caligráficas, sutis, argutas, condensa-se o passado vivido pelo poeta recifense-carioca. Na realidade, o que essas deliciosas crônicas dão ao leitor é um retrato íntimo, terno, do bardo melancólico de A Cinza das Horas. Partindo de um método inteligentemente indutivo, essa coletânea se abre com “1a Pessoa do Singular - Quem sou eu?”, que contém o breve poema autobiográfico:
“Sou o que não tem e tende.
O que pende e não impende.
Como o fingidor Pessoa,
que foi ótima pessoa,
finjo (e fazendo-o não minto)
a dor que deveras sinto.”
E como um leque evocativo da meninice, da adolescência e depois maturidade, pouco a pouco surgem as imagens do quintal de Recife, o início quase fortuito da carreira literária com um livro de versos que era “um testamento da adolescência” minada pela doença e o momento de angústia que frutifica numa lição de sabedoria prática: “Desde aquele momento compreendi que não adianta apreender o futuro. Vivemos anos apreendendo um perigo imaginário que não acontece; somos surpreendidos por uma desgraça em que jamais havíamos pensado. A sabedoria está em por o coração à larga e entregar a alma a Deus.”
Todos esses múltiplos mosaicos são eivados de uma doce ironia que não fere nunca fundo, de um humour perspicaz e alegre - “o sorriso pré-rafaelita de Cecília Meireles”, a explicação aposta ao livro Cego de Ipanema, de Paulo Mendes Campos: “Manuel Bandeira, o surdo do Castelo”.
A prosa de Manuel Bandeira conduz-nos a uma verdadeira viagem inerior: a da sua sensibilidade em contato com o mundo exterior. Não propriamente dialogando com a realidade, mas participando dela com a sua inteligência, a sua finura, a sua suscetibilidade. Porque de certa maneira Manuel Bandeira é assim um pernambucano pouco carioca e de fato muito mineiro na sua reserva, jardim íntimo que circunda, como aconselha Fernando Pessoa, cde grades e flores alegres, ocultando as demais a sua íntima melancolia. A sua figura perpassa, diáfana, pelas coisas e pelos acontecimentos, poeticamente, lucidamente, mas como uma sombra que se projeta sobre tudo que toca, não concretamente, não gordamente ou panfletariamente. Até os seus golpes de esgrima contra a estupidez nacional e o simplismo ignorante dos que chama de “comunas” são golpes de misericórdia, sem por o peso de toda a sua argúcia sobre adversários tão inferiores em número, densidade e massa cinzenta. Passando em revista as artes plásticas, o teatro, a música, o cinema e o ballet, esse itinerário tem sua parte melhor talvez nas páginas dedicadas à literatura: o misto de reconhecimento e entusiasmo com que sauda o Diário de Lúcio Cardoso, as sensíveis traduções de um poema de Chagall ou de um soneto de Elizabeth Barrett Browning, a saudação a Otto Maria Carpeaux, brasileiro, e sobretudo “Rosa em três tempos”. O encontro com Guimarães Rosa é impregnado de funda admiração, de brejeira comicidade, de compreensão entranhada da grandeza artística e humana do autor de Miguilim e Riobaldo: “Outro dia, de novo, inesperadamente, como sempre, me deparei na Cidade com Rosa, purpúreo e belo. Fiquei feliz o resto do da semana”. As sextilhas com que promete votar pelo autor de Grande Sertão: Veredas na Academia Brasileira de Letras, rematam com o pedido:
“- Rosa, não seja ruim.
Faça a vontade do bardo,
Anda que bardo chinfrim!
E eu secundo: Mano Rosa,
Rosa, rosai, rosae, rosae,
Vou aos meus dias por um fim.
Antes, porém, me prometa,
Pelo Senhor do Bonfim,
Que à minha futura vaga
Você se apresenta, sim?
Muito saudar a Riobaldo,
Igualmente a Diadorim!”
Como um Jimenez brasileiro, cheio de ternura mansa, de pureza, de retidão e austera devoção à sua arte, Manuel Bandeira espelha-se nesses textos inéditos que a José Lympio reuniu com tanta oportunidade e bom gosto, comomemorando as 8 festivas, ricas e soberbas décadas de Manuel Bandeira, andorinha [seguem-se 4 linhas ilegíveis].
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Manuel não está falando à toa},
booktitle = {Poetas brasileiros contemporâneos},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {4},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-4/1-a-prosa-dos-poetas/00-manuel-nao-esta-falando-a-toa.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde, 1966-5-10. Aguardando revisão.}
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