Além da rumba e do cartão postal
O ministro das Relações Exteriores, Abreu Sodré, segundo consta, desmentiu todo o seu passado da Oban (Operação Bandeirante) quando governador de São Paulo, tecendo recentemente louvores entusiásticos a Fidel Castro e seu regime em Cuba: um discurso maoísta digno da Camarilha dos Quatro chinesa. O excelente compositor popular Chico Buarque de Holanda promove, na capitalista TV Globo, artistas cubanos. Legiões de artistas e pessoas que se consideram intelectuais no Brasil vão em peregrinação a Havana, como um muçulmano devoto zelosamente vai a Meca.
E daí? Daí que um segundo livro que saiu há pouco no Brasil, intitulado Vinte Anos e Quatro Dias, com o subtítulo A Vida Numa Prisão Cubana, do poeta Jorge Valls (Editora Nórdica, 151 páginas), ilumina as podridões do regime castrista: suas desumaníssimas prisões, verdadeiros campos de concentração tropicais. Obviamente, jamais nem sequer mencionados por qualquer visitante brasileiro à “pérola do Caribe”.
Antes, apesar de pouca divulgação (proposital, é claro), publicou-se de outro poeta cubano, Armando Valladares, seu relato impressionante dos horrores das masmorras de seu país, que lembram o mundo sub-humano do Gulag de Soljenitzyn, a prisão de Dostoiévski, em Recordação da Casa dos Mortos ou Treblinka do homônimo campo de concentração nazista, de autoria de Jean François Steiner, ou Holocausto, de Elie Wiesel.
Para responder à pergunta e daí, faço uma proposta que será considerada absurda, quixotesca, maluca, mas vá lá. O Brasil não deve, constitucionalmente, manter relações diplomáticas com país algum que tenha presos políticos em seus cárceres. Claro, a lista é longa, mas seria coerente: o Chile do general Pinochet, a Polônia do general Jaruzelski, a África do Sul do apartheid medonho de Piet Botha, o Paraguai, ninho de nazistas do general Stroessner, etc, etc.
Quem tiver coragem para ler Vinte Anos e Quarenta Dias verá outros aspectos do inferno carcerário descrito por Valladares: além das fezes de reses na sopa dos prisioneiros, do estupro de jovens por carcereiros homossexuais, a voluntária mutilação que muitos encarcerados preferem (cortas dois dedos da mão a frio, sem anestesia, por exemplo) e o desespero constante de quem sabe que não há apelação da sentença aplicada arbitrariamente por qualquer motivo fútil.
“Com o passar do tempo, os prisioneiros ficavam mais e mais desesperados. Não se tratava do trabalho ou dos espancamentos, mas principalmente da loucura da situação, e muitos ficaram malucos. Um prisioneiro se pendurava nos canos como uma preguiça, num galho. Outro gostava de subir a borda do telhado e andar sobre as vigas de aço, que tinham menos de 20 cm de largura e estavam a 30 m do chão”.
Os presos enlouquecem. Tornam-se idiotas. Alguns injetam petróleo na perna para orna-la e assim ficarem dispensados de trabalhar. Os invernos são passados sem a proteção de roupas de baixo. Fazem greves de sede, que logo danificam seu sistema nervoso: perdem o controle do sentido da percepção e depois o da consciência. Outros são entregues a peritos lutadores de judô, que lhes quebram os braços, as pernas, às vezes a medula espinhal e, em seguida, os forçam a beber água da latrina, nus e famintos.
Em Cuba, os prisioneiros políticos condenados a longas sentenças têm o apelido de “plantados”, mas não são vistos pelos turistas brasileiros nas praias, nem varrendo a tua diante do antigo Hotel Hilton, nem tomando irônicas bebidas chamadas Cuba Libre. O poeta Jorge Valls fornece no final do livro, uma lista forçosamente parcial desses infelizes “plantados”. Sem nenhuma assistência médica e enumerados por nome, idade, ano da prisão, anos já cumpridos da pena que lhes foi imposta e – pavor dos pavores! – a lista de doenças de cada um deles, para as quais não lhes dão nem aspirinas. Elas abrangem uma lista muito extensa: vão desde bala no testículo, propositalmente não extirpada cirurgicamente pelos médicos das prisões cubanas, até polineurites, câncer na próstata e desordens psíquicas extremas etc. Os suicídios são frequentes, o futuro inexistente, todos esquecidos por toda a humanidade. Com exceção da Anistia Internacional, por exemplo, que sempre insiste na monstruosidade das prisões cubanas e dá testemunho dos escritores que, depois de várias décadas de sofrimentos inenarráveis, conseguem refugiar-se no Ocidente.
É uma rumba cubana diferente a dessa “ilha” de sucesso de venda e de engodo: os “plantados”, a proibição de eleições desde 1959, a dívida com a URSS engordada diariamente. Teria o embaixador de Cuba alguma coisa que dizer a respeito dessas denúncias que cada vez se avolumam mais? Nosso governo (se ele existir, é claro) tem noção da sua (mesmo que involuntária) cumplicidade na manutenção dessa situação, comparável à de Getúlio Vargas apoiando Hitler e os campos de extermínio de Dachau, Auschwitz, Belsen, Treblinka, dos quais 14 milhões de seres humanos – judeus, ciganos, eslavos, esquerdistas, católicos contra o hitlerismo etc. literalmente se evaporavam nas espirais de fumaça que saíam dos fornos crematórios inventados pelos engenheiros alemães comandados por Himmler?
Há um consolo: outro dia, os jornais noticiaram que Fidel Castro vai embelezar Havana, renovando os prédios da Capital. Quem sabe, também as prisões cubanas receberão um jato de ácido sulfúrico, lançado sobre os prisioneiros nus, provando, daí em diante, que em Cuba, como afirma Castro, “nunca houve nem há prisioneiros políticos”. Como diria Hitler, com tom de aprovação: é uma Endlösung, uma solução final, para um problema tão incômodo, verdade compañero?
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2023,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Além da rumba e do cartão postal},
booktitle = {Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra
os despotismos e os totalitarismos},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {12},
date = {2024},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-12/02-america-latina/02-alem-da-rumba-e-do-cartao-postal.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {O Estado de São Paulo, 1987/06/13. Aguardando revisão.}
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