James Baldwin e o negro nos EUA
Nessa esplêndida alegoria moderna que é Les Nègres, Genet faz o personagem Archibald exclamar, dirigindo-se a seus irmãos de cor: “Eu vos ordeno serem negros até a profundeza de vossas veias e de nelas arrastar sangue negro. Que a África nele circule. Que os negros se anegrem. Que eles se obstinem até à loucura naquilo que os condena a ser, em seu ébano, sem seu cheiro, em seus olhos amarelados, em seus gostos de canibais… Que se (os brancos) mudarem a nosso respeito, não seja por indulgência, mas por terror… Inventai, não o amor, mas o ódio… O trágico estará na cor negra! Será ela que vós amareis, reunireis, merecereis. É ela que é preciso conquistar!”
A busca de uma identidade para o negro contemporâneo tem assumido as formas que cada país, cada civilização, cada escola de valores culturais apresenta no local onde o negro vive. É claro que, nas regiões de vida tribal e de prática do canibalismo como partes do Congo e da chamada África Negra, a reivindicação de uma fisionomia própria que caracteriza os movimentos negros nos Estados Unidos, na África do Sul, no Senegal e na Martinica. A par da négritude de Léopold Senghor e dos poetas africanos de expressão francesas reunidos pela publicação Présence Africaine em Paris, existe toda uma gama de nuances nos Estados Unidos dessa tentativa de forjar uma personalidade do negro distinta da personalidade do branco, com valores de ritmo, de emoção, de espontaneidade diametralmente opostos a muitos dos cânones da cultura e da arte do Ocidente. A conclamação guerreira do personagem de Genet ecoa desafiadoramente na doutrina violenta e fanática de Elijha Muhhamda, o chefe da seita negra dos chamados black muslins. Contando com mais de 300.000 adeptos espalhados por todos os Estados Unidos, esse grupo semirreligioso te 30 “templos” em vários Estados e como doutrina implacável a de exterminar todos os brancos, para triunfo final dos negros sobre os “demônios” de pele clara. Allah, em sua concepção, é um sanguinário Deus negro, de vingança e inclemência. Repudiam o Cristianismo – religião inventada pelos brancos – e não querem ter nem mesmo os sobrenomes em comum com seus antigos senhores brancos. Passam a usar só um nome seguido de um X. Ao exigirem para os negros norte-americanos uma pátria separada, a ser retirada do território estadunidense, eles de certa maneira confirmam o apartheid sul-africano dentro de um racismo puramente negro.
Por outro lado, o movimento negro reivindicatório de melhorias sociais urgentes dentro da sociedade americana abrange líderes de extraordinária envergadura moral, cultural e intelectual. Um deles, Lester Granger da Urban League, presidiu em Petrópolis, em 1962, a reunião internacional de assistentes sociais ali congregada. Outro, Martin Luther King, foi agraciado no ano passado com o Prêmio Nobel da Paz pela sua defesa dos direitos da minoria negra por meios pacíficos delineados por Gandhi na sua doutrina do ahimsa (não-violência).
Uma única figura, porém, se destaca como arguto e lúcido intelectual negro, escritor, ensaísta e novelista de renome nos países de língua inglesa. Trata-se de um autor que tem dedicado uma série brilhante e palestras, em universidades americanas, ao tema das relações inter-raciais em seu país e que em seu último e brilhante livro, The Fire Next Time, analisa agudamente os problemas que surgem com o empecilho para a ascensão sócio-cultural do negro norte-americano.
James Baldwin é quase totalmente desconhecido no Brasil, exceto pelas minorias que leem inglês. No entanto, cremos que sua ação como crítico da situação das pessoas de cor supere de muito duas atividades de novelista e dramaturgo. O jovem intelectual no seu ácido libelo – publicado em livro depois de reunido em capítulos na famosa revista The New Yorker – condena igualmente as soluções violentas como a que houve recentemente em Harlem, bairro negro de Nova York, imensa favela de cimento armado que se ergue em plena metrópole cosmopolita. No entanto, Baldwin argumenta lucidamente ao afirmar que teme não haver outra alternativa, fora a violência, se a maioria branca norte-americana não tomar medidas urgentes tendentes a dar ao negro seu compatriota um lugar ao sol, subtraindo-o à posição de inferioridade a que tem sido relegado há séculos.
A análise que Baldwin faz das relações raciais nos Estados Unidos é não só de brutal franqueza como também de amarga, amaríssima, revolta. Referindo-se à decisão do Supremo Tribunal yankee que em 1954 declarou ilegal a segregação nas escolas, ele atribui esta resolução histórica aos interesses da política externa norte-americana, “que cortejava a África recém-emersa do colonialismo e rica em minerais e em petróleo”. As críticas vitriólicas que faz aos mores e aos valores materialistas americanos – é sabido que Baldwin viveu longos anos em Paris – causaram impacto e parecem aumentar a corrente de autores americanos rebelados contra “a maneira de viver americana”. Essa corrente, recordemos, provém de John dos Passos, Gertrude Stein e Hemingway até Henry Miller, em nossos dias, que definiu a civilização americana como “um pesadelo dotado de ar condicionado”.
A veemência de James Baldwin não é menor absolutamente com relação ao ressentimento negro:
“O negro norte-americano tem a grande vantagem de nunca ter acreditado naquela coleção de mitos a que estão presos os americanos brancos: o de que seus antepassados eram todos heróis amantes da liberdade, o de que nasceram no país mais extraordinário que o mundo já viu, o de que os americanos são invencíveis na guerra e sábios na paz, o de que os americanos sempre agiram honradamente com os mexicanos, os índios e outros vizinhos inferiores, o de que os americanos são os homens mais direitos e viris do mundo e de que as mulheres americanas são puras”.
“Como pode alguém respeitar, muito menos adotar, os valores de um povo que não vive, em nenhuma forma imaginável, de maneira que diz ou da maneira que afirma deveria viver? Não posso aceitar a declaração de que o labor intenso do negro americano durante quatrocentos anos deve resultar meramente na sua integração no nível atual da civilização americana. Estou longe de deixar-me persuadir de que valeu a pena terem-me liberado do curandeiro africano se agora – a fim de apoiar minhas contradições morais e a aridez espiritual da minha vida – eu tenho que me tornar dependente do psiquiatra americano. É uma troca que recuso absolutamente”.
Seu impressionante documento pessoal e humano termina com um apelo aos negros e aos brancos “relativamente conscientes”. É tarefa desses elementos lúcidos da sociedade americana despertar a consciência dos demais e cumprirem juntos o dever inadiável de por a termo ao “pesadelo racial”, coo o denomina Baldwin, e mudar o curso dos acontecimentos nos Estados Unidos e no mundo. Se não ousarmos tudo para atingir esse objetivo de inspiração bíblica contida na canção do escravo que cantava: “Deus deu a Noé o sinal do arco-íris: Chega de água, da próxima vez: fogo!”
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {James Baldwin e o negro nos EUA},
booktitle = {Racismo e literatura negra},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {1},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-1/3-literatura-norte-americana/01-james-baldwin-e-o-negro-nos-eua.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Correio da Manhã (Caminhos da cultura), 1965. Aguardando
revisão.}
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