Hilda, encantamento místico inigualável

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 16/6/1984 (publicado depois como posfácio do livro. Aguardando revisão.

de Hilda Hilst Poemas Malditos Gozosos e Devotos)

« To see a World in a Grain of Sand

And Heaven in a Wild Flower,

Hold infinity in the palm of your hand

And Eternity in an hour »

« Ver um mundo num grão de areia

E o céu numa flor do mato,

Segurar o infinito na palma da tua mão

E a Eternidade numa hora”

William Blake (“Auguries of Innocence”)

O amor. A carne. O júbilo. A perda. A morte. Como fios entrelaçados, a poesia de Hilda Hilst sempre deixa entrever uma forma imprecisa: uma pirâmide? Uma espiral? O viver-a-vida é um tecido áspero ou brilhante em seus poemas que transformam o prosaísmo no transcendente, o banal numa magia abrangente e indelével de beleza e pensamento. As coisas da terra, mesmo as mais mesquinhas, contêm um lampejo que as liberta da vã mortalidade: a espera amorosa desenhada no azul abstrato do Tempo que passa sutilmemte entrevista no céu de nuvens e cores cambiantes; a morte entranhada nos alfinetes ou calada nas águas frias debaixo de uma ponte.

Em seu último livro, Poemas Malditos, Gozosos e Devotos (editora Massao Ohno), atinge-se um vértice ou um delta em que desemboca um encantamento místico inigualável na poesia brasileira desde os poemas religiosos de Jorge de Lima. Não se trata de um exagero. A poesia de Hilda Hilst agora tateia no caminho percorrido por Kierkegaard, o assombroso místico e filósofo dinamarquês: a fé não tem base em nenhuma certeza objetiva, comprovável, portanto é rotulada de absurda, de paradoxal, improvável. No entanto, a magnifica poeta paulista – uma das grandes vozes universais de poesia deste século de apenas quatro ou cinco poetas – se debate entre o finito da poeira humana e o infinito talvez incognoscível de Deus. O início se inspira da contemplação cristã tradicional da mística espanhola:

“Pés burilados

Luz-alabastro

Mandou seu filho

Ser trespassado

Nos pés de carne

Nas mãos de carne

No peito vivo. De carne”

Mas logo o toque pessoal, de um desespero ou Angst intensamente kierkegaardiana, extrapola com elocubrações e perguntas novas:

“… Dedo alongado agarrando homens

Galáxias. Corpo de homem?

………………………..”

Passando pela visão, tão comumente aventada em seus escritos em prosa (principalmente “Floema”), de um Deus sanguinário como o Jeová humano da Bíblia Judaica, a lançar carnificinas, pragas, dilúvios sobre as criaturas:

“Vive do sangue de poetas, de crianças”.

Deus-Baal, o Deus irado que esparge fogo e cinzas sobre Sodoma e Gomorra, o Deus Juiz onipotente que, como Saturno, se alimenta dos filhos.

“E do martírio de homens

Mulheres santas.”

Este intróito, parece-nos claro, não distinguiria esta coletânea recentíssima de Hilda Hilst de outros poemas insuflados de devoção, de indagações não respondidas, de uma tentativa de interpretação de um Deus que cria São Francisco de Assis e Dachau, Hiroshima ou a penicilina, indiferentemente e de forma incompreensível para os seres humanos. Afinal, já Dostoievsky formulara lapidarmente a mesma dúvida: “Se Deus não existe, todo mal é justificável”. Os recursos prodigiosos dessa artista, por todos os títulos sublime, a arrojam, porém, rumo a uma palpitação individual de medo, de inquietude gozosa como a de Santa Teresa de Ávila ferida pelas setas do amor de Deus:

“Temo que se aperceba

de umas misérias de mim.

Ou de veladas grandezas

Soberbas

de alguns neurônios que tenho

Tão ricos, tão carmesins.

Tem esfaimada fome

Do teu todo que lateja.”

A oposição típica de toda a escritura de Hilda Hilst, a contraposição – ou melhor, a justaposição do banal cotidiano com a interrogação metafísica – emerge nesta especulação feita a Deus mesclada do absurdo que compõe toda interrogação humana ao Ente não rotulável pela lógica humana:

“Doem-te as veias?

Pulsaram porque fizeste

Do barro os homens.

E agora, dói-te a Razão?

Se me visses fazer

Panelas, cuias

E depois de prontas

Me visses

Aquecê-las a um ponto

A um grande fogo

Até fazê-las desaparecer

Dirias que sou demente

Louca?

Assim fizeste aos homens.

Me deste vida e morte.

Não te dói o peito?

Eu preferia

A grande noite negra

A esta luz irracional da vida.”

Gradualmente, contudo, as imprecações zombeteiras contra um Deus Todo-Poderoso

“Para um Deus, que singular prazer.

Ser o dono de ossos, ser o dono de carnes

ser o Senhor de um breve Nada: o homem…”

mudam de registro com a reflexão subreptícia da morte e sua antecipação, a morte da carne e seus prazeres fugidios: “Sentires da alma? Sim. Podem ser prodigiosos./ Mas tu sabes da delícia da carne/ Dos encaixes que inventaste. De toques. (…)”. A poeta arrisca a formular um pacto com Deus: não seria possível Ele se dar a conhecer através dos sentidos perecíveis humanos? “Poderia ao menos tocar/ As ataduras da tua boca?”… “Me permitirias te sentir a língua/ Essa peça que alisa nossas nucas/ E fere rubra/ Nossas humanas delicadas espessuras?” Inúteis veredas que a nada levam: logo Hilda Hilst reconhece o impenetrável de um Deus que não é antropomórfico, que nada tem que ver com a estrutura breve da imagem humana: “Te fechas, teia de sombras/ Meu Deus, te guardas”. Ou será Deus aquele emaranhado racionalmente indecifrável, “… aquelas não evidências/ da matemática pura?” E o infinito de Deus se absorve, miraculosamente, na finitude do ser humano: “… Penso que o coração/ Tem alimento na Ideia…/ Come de mim a tua fome”.

Nesse claro panteísmo que, como na escola vedântica da Índia, o Um é o único número existente, pois não existe a aparente dualidade entre o Criador e a Criatura, seus versos definem Deus como Janus, a ambiguidade daquilo que maniqueisticamente chamamos de o Bem e o Mal, como se a complexidade divina pudesse ser reduzida a um computador binário ou Deus refletido, exaltado na guerra e na beleza, essas antíteses humanas:

“………………….

Outros hão de ferir e amar

Teu coração e corpo. Tuas bifrontes

Valias, mandarim e ovelha, soberba e

Timidez.

Não temas.

Meus pares e outros homens

Te farão viver destas duas voragens:

Matança e amanhecer, sangue e poesia.”

Não há reconciliação lógica, não há axioma, nem teorema, nem dogma na percepção funda de um Deus ubíquo, de código secreto, a não poder jamais ser devassado pela pequenez de tudo que é humano. Por isso a fascinante reflexão intuitiva, filosófica, poética de Hilda Hilst culmina num dos poemas mais fulgurantes, mais perfeitos da língua portuguesa, fulminante visão de um Blake:

“Vou pelos atalhos te sentindo à frente.

Volto poque penso que voltaste.

Alguns me dissem que passaste

Rente a alguém que gritava:

Tateia-me, Senhor,

Estás tão perto

E só percebo ocos

Moitas estufadas de serpentes.

Alguém me diz que esse alguém

Que gritava, a mim se parecia.

Mas era mais menina, percebes?

De certo modo mais velha.

Como alguém voltando de guerrilhas

Mulher das matas, filha das ideias

Não eras tu, vadia. Porque o Senhor

Lhe disse: Poeira: estou dentro de ti.

Sou tudo isso, oco moita

E a serpente de versos da tua boca”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Hilda, encantamento místico inigualável .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.