Uma história fantástica, contada por um mestre

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1985-8-10. Aguardando revisão.

José J. Veiga escreve sempre fora do círculo de relações pessoais de obrigatória admiração mútua longe dos ambientes em que os ditos literatos e toda uma indústria de prêmios e louvações se auto ungem sem cessar. Alheio aos favores, às concessões, aos conchavos em torno dos quais pulula uma grande parte dos que julgam que escrevem e julgam criar poesia entre nós, o seu recolhimento não é fruto de provincianismo. Goiano, nunca precisou de se arvorar em grande intérprete da criatividade goiana, ao contrário de tantos outros escritores bairristas, amarrados à sua origem estadual como ao logotipo de uma mediocridade intocável: nasceu em tal ou tal Estado! Culto, leitor de Kafka, de Orwell, de Swift, de Karel Kapek, domina o inglês com rara fluência, mas nunca se jactou de seus profundos conhecimentos da melhor literatura estrangeira. Seus contos e romances já o tornaram, involuntariamente, citado em excelentes resenhas do New York Times Book Review, do jornal alemão Frankfurt Allgemeine Zeitung e divulgado por editoras atentas e seletivas como a Bruguera, de Barcelona, ou a Alfred Knopf, de Nova York. Em Os Cavalinhos de Platiplanto, A Hora dos Ruminantes, A Estranha Máquina Extraviada sobretudo no admirável Sombras de Reis Barbudos, José J. Veiga já construíra todo um mundo de fortíssimas alegorias.

Difícil seria rotular o seu mundo ficcional. Aquela estranha máquina que chega em três caminhões e é armada na praça principal da cidadezinha do Interior e ninguém sabe de onde veio nem para que serve seria uma metáfora do poder opressivo da técnica que esmaga os cidadãos ou os faz curvarem-se, submissos, diante do poder tirânico? As cidadezinhas modorrentas que são invadidas por ruminantes ou por burocratas que tudo medem, tudo multam, tudo castram são uma forma oblíqua de representar a opressão dos governos totalitários, a esmagar os fracos e a arrebentar vontades que se anteponham ao seu desmando tão absurdo quanto imbatível?

José J. Veiga não fala de si mesmo. Guarda, como Dalton Trevisan, um silêncio absoluto sobre o que pensa da literatura, do mundo, das receitas mágicas para endireitar o viver. O que escreve fala por si. O leitor não tem, no entanto, a impressão propriamente de uma incursão pelo pesadelo, mas sim de um relato que descreva os acontecimentos sem adjetivá-los: narra-se quase que impessoalmente. Naturalmente, vários personagens interpretam o que acontece: alguns se conformam, temerosos, outros ousam-se insurgir contra regimes autoritários e grotescos, os padres frequentemente se refugiam num mutismo impenetrável. Estão presos a um maniqueísmo que parece obsoleto, o de esperar que qualquer ato ou fato seja previamente aprovado pelas autoridades eclesiásticas do Vaticano ou sejam lançados no index que já instituiu a Inquisição queimou em fogueiras seres humanos vivos, aliou-se aos cambiantes poderes vigentes ou encarnou, como a Igreja medieval, um poder temporal de temíveis proporções.

Torvelinho Dia e Noite, publicado pela editora Difel 206 páginas, revela um José J. Veiga menos abstrato, menos impassível, mais participante, se possível, diante de tudo aquilo que a parapsicologia moderna pesquisa: fantasmas, contatos imediatos de terceiro grau com extraterrestres, flores que falam, auras boas ou más de cidadãos que tanto podem ser prosaicos, terra a terra, como suspeitos de pertencerem a outras galáxias. Torvelinho, a cidadezinha interiorana, tem nas crianças (como geralmente sucede nas narrativas do autor goiano) os seus médiuns, os seus melhores sensores de mundos que fogem à lógica adulta e estreita. Através da sensibilidade dos que estão plenamente dispostos a aceitar outras realidades, todos os entes inclassificáveis entram mais facilmente nas vidas “quadradas” que vêm mudar. Como epígrafe, José J. Veiga usa de uma citação ardilosa em que se afirma que

“Tremer de medo de fantasma é um comportamento irracional. Eles não fazem mal a ninguém e gostam de ser úteis. Se às vezes nos pregam peças, isso só acontece quando são ofendidos em seus brios. A pior ofensa que se pode fazer a um fantasma é tratá-lo de assombração. Outra ofensa grave é usar o Credo como arma contra eles, arma aliás tão inócua como a ameaça de prisão para banqueiro e ministro de Estado.”

Verídico ou inventado, este tratado sobre fantasmas colocado como epígrafe do livro é uma típica ironia ferina e jocosa do autor contra os Delfins Neto de gorda e indigesta memória ou dos afoitos políticos que, ao mesmo tempo que deixam seus operários sem salários meses a fio, na imprensa querem “brilhar” como democratas lídimos e levemente “esclarecidos”, isto é, a favor da esquerda moscovita, à maneira do ilustre senador Severo Gomes e sua indústria de cobertores do Vale do Paraíba…

José J. Veiga entra de chofre na história que vai relatar, pois uma de suas melhores e mais inesperadas surpresas é a de fazer brotar do cotidiano o incomum, o apavorante. Aqui o foco central é uma criança, o menino Nilo, que na noite anterior literalmente viu um fantasma e hesita em participar o fato fantástico aos pais: eles não compreenderiam. Quase sempre as gerações não se entendem nos mundos de José J. Veiga: não só a linguagem de gíria, de americanismos impostos pela máquina dos enlatados culturais, distingue os mais novos dos mais velhos. Os mais moços são muito mais pragmáticos também e aptos a mudar o ramerrão de tudo que foi aceito sem questionamento e muito menos abertos aos preconceitos imemoriais. Felizmente, o autor de Aquele Mundo de Vasabarros nunca fabrica estereótipos: há igualmente adultos inteligentes de espírito aberto, como há, embora raramente, crianças obtusas. Há padres temerosos de qualquer mudança assim como há padres que são honestos, retos, de bom coração. Nada de esquematismos idiotas.

Torvelinho Dia e Noite capta toda a oralidade da fala brasileira, com “Peraí”, “Corta essa” etc. Uma linguagem que mistura elementos atuais com elementos de gíria, frases de um português correto e escorreito com novidades científicas e tecnológicas como “clone”, “computador”, “buracos negros”. A incerteza do que é a realidade objetiva – que o autor deixa transparecer ser uma coisa inexistente, porque é captada e interpretada por cada pessoa individualmente – dá vazão a cenas de sonho ou de alucinação ou de uma tranquilidade que as limitações humanas não permitem admitir.

“Quando passou para a parte sombreada, Nilo ouviu um zumbido, um chiado, ou sopro e sentiu-se leve de corpo e supôs que estivesse levitando. Parou para entender: olhou em volta e viu o largo cheio de gente estranha, como ficava em dias de festa. Quem sabe era de noite, e ele estava em casa dormindo e sonhando? Se era isso, como explicar a tigela de doce na palma da mão? Nilo fechou os olhos, pensando: e quando os abriu e olhou de novo, o largo já estava normal, os estranhos tinham evaporado, só ficaram as pessoas que normalmente estariam ou passariam lá àquela hora. Que coisa! Como explicar isso?”

Sub-repticiamente as farpas certeiras do romancista espetam aqui e ali:

“Durante o jantar dr. Gumercindo falou da viagem, do clima de Brasília, tão seco que racha os lábios das pessoas. Falou das grandes distâncias, da uniformidade monótona das quadras, da aberração das cidades-satélites que não estavam previstas no plano urbanístico porque os planejadores se esqueceram de incluir a pobreza.”

Em escala diferente mas com intenção semelhante, os escritor brasileiro e a escritora inglesa Doris Lessing falam, ambos, de seres vindos de outras constelações que disputam o planeta Terra numa luta cósmica entre o Bem e o Mal, como a descrita em Shikasta. Ou como Eu, Robô de Isaac Asimov, as pessoas são indiferenciáveis dos robôs aperfeiçoadíssimos: não seria obviamente o caso de Abreuciano e d. Cyannara, o apicultor e a rendeira que vieram para salvar a cidade e trazer um mundo novo para seus habitantes, sem a opressão de passaportes internos como no regime da Rússia soviética nem ditaduras fascistas?

Naquela “epidemia de fantasmas”, em que cada pessoa tem o seu, surgem versões monstruosas também de espectros cruéis, os Tora-pés, que à noite serram os pés de suas vítimas, como os que se dizia que tinham chegado até Varginha, decepando pobres bípedes que dormiam até de botas para afastar o perigo. O prefeito maligno muda de solertes intenções políticas de mando e se torna um pacifista manso, infenso a qualquer vertigem de poder ou ascensão no partido a que pertencera. A liberdade é um dos temas eternos dos satiristas – Kafka, Orwell, Swift – e José J. Veiga a coloca sempre como uma das preocupações fundamentais do ser em si: nada justifica a escravidão de outrem nem a existência de tiranias, antigas ou atuais. Essa noção de liberdade abrange a libertação das ideias mortas, codificadas em leis caducas por interesses que acorrentaram a mulher e os dissidentes a algemas milenares. E estranhamente, talvez pela primeira vez em seu excelente percurso literário, aqui se verifica uma mudança: José J. Veiga demonstra crer num mundo além do que pode ser medido, pesado, tocado:

“O vento que agora sopra é diferente, é áspero e desconfortável. Pela hora, o melhor abrigo contra ele são as cobertas da cama. Mas ninguém se iluda. As cobertas só protegem do lado de cá. Do lado de lá ficamos expostos aos ventos do desconhecido. Exatamente como do lado de cá”

Quem sabe, afinal, os fantasmas somos nós ou são todos os que creem numa realidade fantástica e transformadora? A esperança, parece dizer José J. Veiga, fugiu dos laboratórios políticos e assumiu todas as formas do chamado irreal. Como nos filmes do magistral diretor russo Andrei Tarkovsky (Solaris, Stalker) que negam todo e qualquer realismo, socialista ou não, a esperança se adentra por uma pluralidade de realidades que nada têm do mito, mas sim do concreto: a realidade da consciência e da espiritualidade humanas.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1985–8AD) 2023. “Uma história fantástica, contada por um mestre.” In Grandes contistas brasileiros do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 10. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.