A atualidade de Brecht

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Diário de Notícias, 1959/10/18. Aguardando revisão.

Com a morte de Bertolt Brecht, em 1956, a Alemanha enterrou o seu maior dramaturgo e a nossa época perdeu a sua expressão teatral mais simbólica e mais viva. Atualmente, críticos cuja imparcialidade os coloca acima de partidarismos e propagandas ideológicas, interpretam, de maneira arguta e objetiva, a obra complexa e rica desse grande dramaturgo. Entre estes, merecem destaque Gisselbrecht na França, Willet na Inglaterra e Jens na Alemanha. Interessantíssimo também, para quem quiser conhecer melhor a atuação de Brecht como diretor de teatro, o livro publicado em Berlim oriental, sob o título de Theaterarbeit. Esse volume, enriquecido por preciosa e profusa documentação fotográfica, focaliza a preparação dos ensaios, a lenta e orgânica maturação de uma representação do célebre Berliner Ensemble.

Como um sismógrafo sensível, a obra de Brecht reflete as comoções interiores da sua concepção do mundo: a cada novo matiz da sua atitude política – sempre dentro do comunismo – corresponde o início de uma nova fase artística. Os críticos costumam dividi-la em três fases ou, mais linearmente, em duas: antes e depois do seu estudo aprofundado do marxismo, na Escola Operária de Berlim, em 1922. Durante a sua permanência em Munique, cidade para a qual se transferira cedo, Brecht sofre forte influência de Büchner, seu predecessor no processo de renovação da dramaturgia alemã. Este autor, de extraordinário talento, morreu aos 24 anos, deixando duas obras-primas: A Morte de Danton e um fragmento dramático: Wozzeck. Foi justamente a representação desta tragédia moderna que marcou profundamente a sensibilidade do jovem Brecht. As suas peças dessa época: Baal e Tambores da Noite (premiada com o prêmio Kleist) denotam acentuados traços expressionistas e naturalistas no seu pessimismo, no seu “culto do caos” e no seu desespero perante a insolúvel condição miserável do homem.

É, portanto, a sua Ópera de Três Vinténs, para outros críticos a ópera Mahagonny, que assinala o início da sua segunda fase. Brecht abandona esse expressionismo extremado – mais tarde ele renegará artisticamente esse período e passa a assumir uma atitude mais serena perante os problemas sociais que constituem o fundamento da sua complexa estrutura teatral. Nessa obra ele ainda utiliza os temas citadinos, constantes na lírica impressionista de Heym e nos primeiros poemas de Stadler, dois dos principais poetas desse movimento na Alemanha. Seus personagens são os marginais, as chagas da sociedade burguesa: as prostitutas, os bêbados, os mendigos, os ladrões, todos os derrotados na batalha social que constitui “a luta de classes”, segundo Brecht. Ambientada numa Londres vista sob um prisma deformante, que só mostra os seus aspectos mais esquálidos, essa peça integra-se na fase anglo-saxônica, em que o dramaturgo condenava “os choques de classe e de raça, típicos das sociedades inglesa e americana”. Já nas peças No Emaranhado das Cidades e Joana nos Matadouros, localizadas em Chicago, Brecht traçara um retrato amargamente sarcástico do capitalismo nos Estados Unidos. A sua Joana d ’Arc – irreverentemente transformada em Joana Dark, fanática do Exército da Salvação – é um mero instrumento dos plutocratas, que utilizam sua ingenuidade e a sua cegueira, da mesma forma que a Joana d’Arc legendária “sucumbira aos mitos da Igreja e da Monarquia”. Inspirada na Beggars’ Opera (Opera dos Mendigos) de John Gray – uma sátira ácida da aristocracia inglesa do século XVIII e das óperas de Haendel –, a Ópera de Brecht obteve um sucesso fulminante desde a sua primeira apresentação em Berlim, em 1928. Musicada de maneira excelente por Kurt Weill, essa blague, de uma pornografia irresistivelmente espirituosa, com os seus duetos e trios cínicos e hilariantes, constituía, na realidade, uma crítica mordaz e profunda de uma sociedade “presa a convenções hipócritas, mas que, de fato, só ama o seu conforto material e se mostra totalmente indiferente ao infortúnio alheio”.

A partir de 1933, depois do advento do nazismo e mais tarde impossibilitado de regressar ao continente europeu, assolado pela guerra, Brecht vive no exílio. Da Escandinávia ele passa aos Estados Unidos, onde reside sete anos, regressando a Berlim, em 1949, depois de breve permanência em Moscou. Transcendendo uma curta fase didática, em que ele adapta muito do estilo das peças japonesas No – verdadeiros rituais de ensinamento de preceitos morais –, ele produz na sua fase final, as suas maiores obras-primas, todas decalcadas, generosamente, de ideias e enredos de outros autores. É a fase final, da sua maturidade artística, em que suas peças são apresentadas, em première mundial, na Suíça.

A sua Mãe Coragem foi inspirada num tema barroco: a adaptação magistral da novela picaresca espanhola feita por Grimmelshausen, o maior prosador alemão do período anterior a Goethe. O monumental Simplicissimus, desse autor do século XVII, relata a evolução espiritual de um pícaro perdido no caos da cruenta Guerra dos Trinta Anos, em que metade da Europa se debatia em choques religiosos sob os signos da Reforma e da Contrarreforma. A Alma Boa de Tse-Suan, peça situada na China, retrata a maldade e a hipocrisia humanas, que forçam os elementos mais frágeis da sociedade, neste caso a prostituta Shen-Te a praticar a bondade, já que os ricos e os fortes são incapazes de sentir comiseração pela desgraça dos seus semelhantes.

Finalmente, a sua obra mais ambiciosa e talvez a mais importante, o magnífico afresco que é o seu Galileo, contém – supomos que deliberadamente – traços autobiográficos. É como se Brecht, chamado a depor perante o comitê de Atividades Anti-Americanas e o Conselho de Ministros Soviéticos, cifrasse nessa figura ímpar da dramaturgia contemporânea, a sua própria rebelião contra a forma atual de intolerância e de tiranias: a opressão política do Estado. Se ele se insurgira contra os cânones vitorianos e antiartísticos da Kultura soviética – Brecht defendeu durante horas o seu ponto de vista como artista, perante o Conselho de Ministros que criticara a sua A Condenação de Luculius –, o seu Galileu se insurge contra o aparato poderoso da Inquisição. A sua derrota perante o Tribunal Inquisitorial (“eu vi os instrumentos”, declara Galileu) é a derrota de um ser humano acovardado pela ameaça da tortura física e da morte, mas a vitória final da Verdade é meramente retardada pela sua abjuração forçada das teorias científicas que conseguira provar.

Através de toa a sua trajetória artística, podemos notar a mesma preocupação, que constitui o móvel constante da personalidade de Brecht, como ser humano, como ser político e como artista: - a transformação do status quo social. Utilizando conscientemente a dialética comunista, ele tenta revelar ao público não “um teatro digestivo... de belas ilusões”, mas sim “o choque de opressores e oprimidos”. A sua intenção utópica e única é a de justamente “transformar um mundo criado pelos homens”. As suas peças são, portanto, verdadeiros processos instaurados contra uma sociedade “que ainda admite a anomalia pré-histórica da propriedade e a existência de pobres e de ricos”. Os espectadores, como juiz supremo, deverão julgar se essa sociedade é justa ou se ela deverá ser fundamentalmente modificada.

Veremos que na obra de Brecht o imperativo moral da sua consciência coincide com as diretrizes da sua Arte, identificando, até certo ponto, a ética e a estética, como queria Henry James. O seu nome permanecerá como o símbolo de uma época animada por uma profunda consciência social e como labelo “contra uma sociedade que até hoje permitiu uma distribuição tão arbitrária quanto absurda de uma riqueza, que, de direito, pertence fundamental e intrinsecamente, a todos os homens”. A sua mensagem artística é de importância para todos, comunistas e adversários do comunismo, porque, sem violar jamais a integridade da Arte, ela expressa essencialmente a doutrina marxista. E como é evidente concluir, o conhecimento dos móveis e dos propósitos dessa doutrina é a única arma de que dispõem os que a queiram defender ou combater eficazmente.

Reuso

Citação

BibTeX
@incollection{gilson ribeiro2023,
  author = {Gilson Ribeiro, Leo},
  editor = {Rey Puente, Fernando},
  title = {A atualidade de Brecht},
  booktitle = {Aspectos do Teatro Contemporâneo},
  series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
  volume = {11},
  date = {2024},
  url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-11/02-o-teatro-doutrinario-marxista-na-alemanha-precursores-e-sucessores/04-a-atualidade-de-brecht.html},
  doi = {10.5281/zenodo.8368806},
  langid = {pt-BR},
  abstract = {Diário de Notícias, 1959/10/18. Aguardando revisão.}
}
Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “A atualidade de Brecht .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.