Baudelaire e a revolução da metáfora poética

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Correio da Manhã, 1965/12/02. Aguardando revisão.

É fundamental a transformação que Baudelaire imprime à poesia não só da França como de toda a Europa, a ponto de constituir um nítido divisor de águas entre a poesia acadêmica, parnasiana, que precede o seu aparecimento e a poesia propriamente moderna, esotérica em muitos de seus aspectos. É sua a primeira inclusão, total e obsessiva, da Grande Cidade (Paris) como tema central da sua arte poética. Ele constitui o primeiro poeta urbano, moderno, que deriva as suas imagens de elementos componentes da civilização pós-Revolução Industrial: grandes boulevards, parques, pontes, a elegância de uma noite de gala na Ópera constrastando com a sordidez dos mendigos, das prostitutas, dos bêbados. Como verdadeiro arauto da geração de poetas malditos que o sucederão, como Rimbaud e Verlaine, uniu indissoluvelmente sua vida e o cultivo da sua arte requintada, aristocrática, mas profundamente participante da miséria da condição humana nos seus aspectos sociais ou metafísicos. Sacrificou à sua vocação qualquer conformismo ou adaptação aos critérios da sociedade bem-pensante do seu tempo. Isolado do grande público pela hostilidade da incompreensão que este demonstrava para com as suas revolucionárias inovações poéticas, perseguido pelos eternos invejosos mesquinhos, ele seria acossado pela doença, pela miséria financeira a mais humilhante e finalmente pelo proceso que a Justiça francesa moveu, impelida por motivos na realidade hipócritas, contra as suas Fleurs du Mal. Até neste particular foi pioneira a sua atuação, pois a este choque se seguirão, mais tarde, o da censura anglo-saxônica, de um puritanismo mórbido, contra o monumental Ulysses de Joyce e O Amante de Lady Chatterley de D. H. Lawrence.

Mas é importante assinalar sobretudo que a metáfora poética assumiu em suas mãos, pela primeira vez na literatura do Ocidente, um profundo e seminal contraponto poético: o de encontrar na decadência elementos transcendentes de beleza, na monstruosidade um mistério inédito, na realidade meramente uma máscara que oculta a irrealidade, dando ao artista poderes plenos para forjar, com a sua fantasia, uma realidade mais total que participe do mundo concreto e do abstrato. Numa ambiguidade nova, Baudelaire cria uma forma original de dissonância ao tomar um tema repulsivo, pelo menos para a sensibilidade da sua época anterior à disseminação de rudimentos da psicologia freudiana, e transformá-lo numa obra de arte bela e inquietante, através da magia da arte. É facil calcular o escândalo que causou o poema dedicado a duas lésbicas após o amplexo e que deveria ser o título do livro antes da escolha definitiva de Fleurs du Mal.

Através da severa disciplina formal que caracterizaria a sua criação poética, unnida à intensa lucidez de sua visão que ia muito além da impressão superficial, aparente, ele uniria também à sua genialidade artística a direção rigorosa de uma esplêndida inteligência crítica que lhe permitiriam ser, como o saudou o jovem Rimbaud, le premier voyant, o primeiro vidente capaz “de ver o invisível e ouvir o inaudível” que desafiadoramente exclamara:

Les charmes de l’horreur n’enivrent que les forts!” (“O fascínio do horrendo só embriaga os fortes!”)

Evidentemente, Baudelaire não irrompe no contexto de uma literatura rica e multisecular com ao francesa sem predecessores importantes. Sua dívida para com as descobertas macabras, mórbidas, muitas vezes alucinantes, dos poetas românticos é inteiramente reconhecida ao afirmar: “O Romantismo é uma benção celestial ou demoníaca, à qual devemos estigmas eternos.” Embora o movimento romântico tenha sido deformado na França, quando importado da Alemanha por Mme. de Stael, assumindo feições muitas vezes “galantes” ou de uma melancolia inteiramente elaborada, é inegável que as meditações tritonhas de Lamartine sobre a natureza, a rebelião de Vigny e Musset contra o materialismo burguês e a técnica avassaladora tiveram o papel de adubo, de preparação do advento do estro baudelairiano. Papel decisivo desempenharia também a herança romântica à la Hoffmann – a fusão do belo e do grotesco, do bizarro e do fantástico – adaptada por Victor Hugo e Théophile Gautier, a quem aliás dedicou sua obra-prima. O excelente e sutil crítico alemão contemporâneo, Hugo Friedrich, já assinalara as origens cronologicamente mais remotas da radical revolução estética empreendida por Baudelaire: Rousseau e Diderot, precursores tão importantes quanto inesperados de sua visão artística. Posições básicas de Jean-Jacques Rousseau poderiam, de fato, ser totalmente endossadas por ele, como por exemplo:

É mais surpreendente, porém, a menção de Diderot, porque algumas de suas teorias estéticas constrastam fundamentalmente com o seu século iluminista, do predomínio rígido da Razão, e com a sua redação da Enciclopédia Francesa, que baniria quase totalmente referências que não se ativessem ao real concreto, com conotações religiosas ou transcendentes. Diderot oporia ao proóprio espírito da clarté francesa o convite à obscuridade: “A claridade é nociva (aos poetas). Poetas, sêde obscuros!” Já não bastasse a angustiante modernidade de sua obra quase contemporânea, em espírito, de Beckett ou de Pinter – “O Sobrinho de Rameau” -, Diderot antecipa-se a várias reivindicações do Surrealismo, do Romantismo, do Expressionismo de dois séculos mais tarde, ao postular que: “A desordem e o caos podem ser descritos esteticamente. A supresa, o espanto (l’étonnement) despertado no leitor é um efeito permissível do qual o artista deve e pode lançar mão.” O poeta poderia então chegar aos extremos da sensibilidade e da expressão artística , utilizando “uma textura hieroglífica do poema” dentro de uma linguagem simbólica, subjetiva-prerrogativa que Mallarmé sobretudo invocará como sendo essencial à sua ars poetica extremamente requintada e esotérica, toda feita de sutis alusões, evocações oblíquas, insinuações sugestivas: nomear o objeto é destruir metade do mistério do poema. De certa forma, a definição inaudita – principalmente para a sua época – que Diderot dá da palavra “gênio” na Enciclopédia, revela-se profética não só para Baudelaire, como para um número predominante de artistas modernos em conflito com a sua geração: o gênio está livre dos critérios da Antiguidade de representar, com a sua genialidade, a moralidade superior, casando a ética com a estética. O gênio, ao contrário, é de tal modo sui generis e livre que não está sujeito a leis comuns que limitem a sua liberdade criadora absoluta (afirmações que sem dúvida ainda não penetraram devido à sua heresia no setor da Kultura soviética). Estava esboçada a conquista de todo um território lírico virgem que seria explorado e demarcado pelo autor de Les Fleurs du Mal.

Se precursores tão inesperados anteciparam a transformação do estro poético contemporâneo, seria de seu coetâneo Edgar Allan Poe que Baudelaire derivaria o mais decisivo estímulo a prosseguir no seu caminho solitário de uma nova modalidade de sentir e uma nova modalidade expressiva através da poesia. Ao traduzir os contos de horror do escritor norte-americano, fascinado pelas suas teorias artísticas, Baudelaire vê suas mais íntimas e audazes crenças estéticas confirmadas plenamente: a recusa em aceitar uma poesia sentimental, emotiva; a busca de elementos de conturbador satanismo: crueldade, sadismo, morbidez, masoquismo; e sobretudo o dogma da formulação calculada, deliberada (e tão precisa quanto uma fórmula matemática) de um poema ou de um conto seguindo regras ou métodos puramente intelectuais, intencionais. O raciocínio levado à sua extrema consequência lógica, conduz à criação da obra-prima, seguindo um processo quase químico na sua cerebral composição.

Dentro da vasta arquitetura dos poemas, em prosa e verso, desse poeta maldito que é também extradordinário crítico de literatura, pintura e música, é palpável a sua intencionalidade, a sua sólida construção em que as partes integrantes se correspondem todas como as partes de uma Catedral. A sua ars poetica parte, de uma grande metrópole, para a denúncia dos labirintos subterrâneos do egoísmo, da indiferença, do ódio que tornam os seres humanos incomunicáveis entre si, divididos taambém no plano social em compartimento-estanques. A Cidade passa a simbolizar, fantasmagoricamente, o anti-humano, o demoníaco, a atrofia do espírito. O seu horror e o seu mistério fosforecentes só podem ser exorcizados através da Poesia. E longe de ser uma poesia desumana e “alienada”, a sua produção brota de uma adesão profunda ao sofrimento alheio, transmitindo ao leitor uma comoção ética mediante um frisson galvanique, o choque elétrico de uma revelação nova da realidade. Neste ponto, há uma semelhança impressionante entre o método de alheamento de Brecht – que apresenta no palco situações sociais sob um ponto de vista inédito – e a metáfora baudelairiana que apresenta uma realidade social e humana sob um prisma artístico e espiritual inteiramente novo: “pois constitui o privilégio da Arte tornar o monstruoso belo”, do mesmo modo que a forma significa o triunfo da lucidez sobre o caos.

Já diversos críticos francesess apontaram as raízes religiosas – mais especificamente cristãs – da rebelião do poeta contra o materialismo avassalador da sua época, com o seu tecnicismo divorciado de qualquer progresso paralelo no plano espiritual. Referências frequentes, em seus poemas, a noções e conceitos cristãos documentam a sua inquietude de origem religiosa: a evocação do Demônio, o desejo de redenção e de purificação opondo-se à maldição do pecado original. Mas seria frustrada a sua ascensão final até Deus ou, mais simplesmente, até a Fé, que permaneceria inatingível como o azul inacessível do céu. No entanto, ele não teme defrontar-se com o Mal, armando-se da palavra que, como afirmam certas seitas ocultistas de conhecimento de Baudelaire, contém um poder sagrado capaz de vencer o Mal. O poeta restituiu à palavra o seu sentido original cósmico, que participa da origem metafísica de tudo e para isso forja uma linguagem nova, audaciosa, capaz de refletir essa visão recôndida das coisas empanada pela sua aparência banal e ilusória;

Na palavra há algo de sagrado, que nos proíbe de brincar com ela acidentalmente; manejar uma língua artisticamente significa praticar uma magia evocativa.

Toda essa ampla alquimia do Horrendo metamorfoseado em obra de arte inicia-se com a refutação do Realismo. (Com involuntária e negra ironia, a Justiça francesa o acusaria justamente de ser demasiado realista!) Para Baudelaire, a realidade da qual não participa a fantasia criadora e transformadora da sensibilidade poética é um pântano de tédio, a fonte da banalidade, a morte do espírito. A Imaginação, como rainha das faculdades humanas, é a única via de acesso a uma visão lúcida da realidade porque a decompõe e forma uma nova realidade, transcendente. Coincidindo com as diretrizes atuais da música e da pintura, mas precedendo-as de mais de meio século, ele cria uma arte que já tende para um verdadeiro cubismo da palavra, com formas ainda reconhecidas como figurativas: sua adesão, estilística somente, aos critérios do Parnasianismo. Da mesma forma que nos quadros cubistas de Juan Gris, de Picasso, de Braque, há elementos composicionais extraídos de outras artes: seus poemas obedecem a uma combinação rítmica, musical, sinfônica no seu todo; as imagens visuais e cromáticas são frequentes, testemunhando da familiaridade do poeta com a pintura e a música de vanguarda de seu tempo. Mais ainda: ele insere nas suas metáforas a teoria das correspondências do místico escandinavo Swendeborg, segundo o qual uma só impressão do mundo exterior pode ser recebida por dois ou mais de nossos sentidos simultaneamente: a chamada sinestesia. Fundem-se assim as percepções complementares do olfato e do paladar, da vista e da audição etc: os sons passam a ter cor e brilho, os perfumes adquirem um valor tátil e visual na sua abstrata evocação, ao passo que as imagens na sua estrutura rítmica confirmam justaposições pictóricas de tonalidades e linhas.

A elaboração tanto das Fleurs du Mal quanto dos Petites Poèmes em Prose, é consciente e paulativa, Baudelaire previra que o insólito, o audaz da sua obra pesaria sobre a sua vida e aceitara a priori o repto de uma burguesia bem-estante e filistina. Já um amigo a quem mostrara os originais antes da publicação – e que se supõe tenha sido Victor Hugo – predissera o escândalo daquele livro “que ficará como u’a mancha na sua vida”. Pouco importa, retrucou Baudelaire: “Eu tenho um desses temperamentos felizes que se deleitam com o ódio e se glorificam com o desprezo”. Quando se multiplicam as vozes que se erguem, enfurecidas, contra o seu livro temerário e revolucionário, ele se deleita em frisar a beleza sinistra e fria de seus versos, elaborados “com fúria e paciência”. Liberando, como pioneiro, o artista da obrigação de pregar a moral, ele postula a “liberdade das palavras” que não se atreverá a usar plenamente, banindo a gramática, criando associações só subjetivamente inteligíveis entre as diferentes partes de uma frase. Caberia a outros completar o desvendamento da terra descoberta e explorada inicialmente por ele: Rimbaud, Mallermé, E. E. Cummings, Joyce e o “novo romance” francês atual no setor da novelística. Historicamente, a arte em todas as suas formas nunca fôra livre, autônoma: subjugada na Idade Média aos critérios da Igreja, no Renascimento ao gosto dos mecenas, hoje em dia ela é vítima de cânones políticos e míopes, to say the least, nos regimes ditatoriais de Direita e de Esquerda. Na sua época, o poder dominante e artisticamente infenso a qualquer modificação do status quo até mesmo no setor artístico era o da burguesia que geraria o fenômeno contemporâneo do best seller e da dramaturgia comercializada da Broadway e dos grandes teatros parisienses. Mas ele recusava categoricamente pactuar com os mores da burguesia, exaltar os seus ídolos de bem-estar, de segurança econômica, de indiferença à sua situação alheia, o seu feroz materialismo e sobretudo seu conceito infantil e conformista do Belo. Ao insurgir-se contra essa estagnação esterelizante da obra de arte imposta pela sociedade do seu tempo, Baudelaire faz explodir a sua mensagem poética antes da explosão da música dodecafônica e da pintura não-figurativa, antiacadêmica; fundamentalmente, porém, a sua será uma poesia que rechaça frontalmente a teoria da arte pela arte. O Belo inédito, unido paradoxalmente ao bizarro, ao monstruoso, que ele inaugura na poética francesa, é um protesto contra a noção acanhada de Beleza da burguesia antiartística na sua essência e desprovida de imaginação transfiguradora. O Belo exige intensificações do real que transcendem à realidade quadrada: daí a sua admiração pelo teatro, uma arte em que os artistas, o diretor, os atores, fabricarão uma realidade pré-escolhida, superior; daí a sua exaltação da moda e do maquiage como formas de tornar teatral uma mulher; e daí a sua busca desesperada de paraísos artificiais – o haschich, o ópio, o vinho, a sensualidade, embora mais imaginada do que realizada; além de um dandysmo extravagante e destinado a chocar os burgueses. Esta sua fuga à mediocridade o levava a buscar situações e critérios excepcionais, aristocráticos, secretos, como denotam seus comentários depois de ingerir haschisch no teatro: “Essa louca alucinação (provocada pelo entorpecente) me causava uma intensa sensação glacial, enquanto no teatro todos sofriam com o calor. Essa louca alucinação me trazia um orgulho, excitava em mim um bem-estar moral que eu não saberia definir. O que aumentava meu gosto abominável era a certeza de que todos os assistentes ignoravam a minha natureza e a superioridade que eu tinha sobre eles… eu tinha a recompensa da minha dissimulação e minha volúpia excepcional er um verdadeiro segredo…”. É o mesmo desafio altivo que ele lança como uma forma de monólogo solitário de poeta maldito: “Separado para sempre do mundo honrado, pelos meus gostos, pelos meus princípios, eu escrevo com imensa ambição”, abandonando qualquer propósito “vulgar de honrarias, de dinheiro, de fortuna”, ele, ao construir seus sonhos literários, atrinbui à poesia, à literatura o papel de um dever, de um sacrifício. Mas esse sacrifício votivo é fecundo porque o mundo exterior, graças ao isolamento voluntário, ao cultivo ininterrupto das suas faculdades de observação e de expressão passa a ser redescoberto na sua essência. Redescoberto quer dizer afirmar que o mundo, longe de poder ser fotografado academicamente, deve ser reconhecido como uma síntese de elementos contrários e vitais, num maniqueísmo de bem e de mal, de belo e monstruoso, de mistério e repugnância. Essa liga de metais diferentes é a imaginação poética. É a imaginação poética que nos permite ver o transcendente no trivial e de divisar todos os sinais misteriosos que os objetos e as pessoas emitem e que só podem ser decifrados pela fantasia criadora do artista:

“Todo o universo é apenas um empório de imagens e sinais, aos quais a imaginação dará um lugar e um valor relativos. É uma espécie de alimento que a imaginação deve digerir e transformar. Todas as faculdades humanas devem estar subordinadas à imaginação, que as requisita todas simultaneamente.”

A arte – e sobretudo a poesia – para Baudelaire, então, ao contrário de copiar servilmente uma realidade arbitrária estabelece relações novas, inéditas, entre os elementos materiais e imateriais que transformam a realidade quadrada numa realidade complexa e metafísica. À semelhança de Deus, o artista cria e ordena: “A imaginação… assume uma função muito mais elevada… e conserva uma relação distante com o poderio sublime por meio do qual o criador concebe, cria e mantém o universo.”

No entanto, longe de ser um êxtase passivo, a imaginação serve para criar o belo inesperado, espantoso, fundindo o contemplado e o contemplador: a imaginação passa a ser uma forma de magia poética dinâmica que altera e, mais ainda, recompõe a realidade, apresentando-a em todas as suas facetas físicas e metafísicas. Estilisticamente, essa beleza nova é manifestada pelo contraste entre adjetivos e advérbios, entre substantivos e verbos, despertando também perspectivas sensoriais inéditas: “um velho amor rançoso, encantador e sepulcral” e ainda:

“Enquanto num jogo cheio de sujos perfumes,

Herança fatal de uma velha hidrópica,

O belo valete de coração e a dama de espadas

Conversam sinistramente de seus amores defuntos…”

Entre dezenas de exemplos semelhantes.

Baudelaire, porém, vai mais longe do que a inovação verbal, formalística: pela primeira vez na poesia europeia, possivelmente, o poeta celebra a amada ideal através de versos que descrevem uma carniça repugnante que se decompõe “como uma mulher lúgubre com as patas para o sol que ilumina seu ventre com os intestinos devorados por moscas e exalando um odor infame. E o céu contemplava aquela carniça soberba murchar como uma flor. O cheiro de podre era tão forte que tu pensaste desmaiar…” E o poeta reconhece através do real repugnante, da efêmera matéria, a essência imorredoura que transcende o fugaz da forma perecível: “As formas se apagavam e nada mais eram que um sonho, um esboço lento em chegar, sobre a tela esquecida e que o artista acaba somente por meio da recordação. E tu no entanto serás igual a aquele lixo, a aquela horrível infecção, oh estrela de meus olhos, sol da minha natureza, tu, meu anjo e minha paixão! Oh, assim serás, oh rainha das graças, depois dos últimos sacramentos, quando irás debaixo da relva e das florações exuberantes, encher-te de bolor em meio aos ossos dispersos. Então, oh minha beleza, dize aos vermes que te comerão de beijos, que eu guardei a forma e a essência divina dos meus amores perdidos na decomposição!” Uma tradução aproximativa, em prosa, mal pode captar a magia de seus versos originais, tem o sentido, contudo, de confirmar o testemunho literário de Baudelaire, para quem e a partir de quem o agir artístico transcende o protesto banal e assume a forma de um ato no sentido definido por Merleau-Ponty, ao afirmar que: “Se realmene toda ação é simbólica, então os livros são, à sua maneira, ações.” Os poemas em prosa e verso do esplêndido revolucionário da poesia francesa e ocidental modernas constituem acima de tudo uma ação no plano espiritual, uma esplêndida metamorfose da realidade em fantasia, do horrendo em beleza metafísica, do monstruoso em comunhão humana. Ele próprio o afirmaria na carta que escreveu após o processo judicial que lhe foi movido após a publicação de Fleurs du Mal:

“Será necessário eu dizer-te, a ti que não o adivinhaste, como todos os demais, que nesse livro atroz eu coloquei todo o meu coração, toda a minha ternura, toda a minha religião (disfarçada), todo o meu ódio…?”

Sua vida descreve uma parábola semelhante à dos seus poemas, que desembocam todos no tema obsessivo e abissal da Morte. Fracassaram as suas conferêncais na Bélgica, que o recebera com hostilidade e indiferença. Sua faculdade criadora enfraquece qundo ele passa a sofrer de afasia e se torna hemiplégico. Na miséria, na solidão, incompreendido, invejado, demasiado tarde lhe chega a glória, demasiado tarde o reconhecimento da grandeza de sua obra, assim como para o personagem de O Castelo chegaria demasiado tardiamente a admissão ao longinquo Castelo perdido na imprecisão das brumas. É a geração jovem, não esclerosada, que se entusiasma até o delírio diante do panorama novo que ele desvendou e em parte inventou: um certo Stéphane Mallarmé, de 23 anos, lhe escreve, depois um certo Paul Verlaine, de 21 anos e um seu amigo de 17, um desconhecido de nome Arthur Rimbaud. Todos o proclamam o supremo poeta da França “o país que tinha horror à poesia”. O tempo que ele sempre temera na sua maratona em busca da perfeição, o tempo passara a ser seu aliado agora. E cada dia que se passa e um jovem se debruça sobre Les Fleurs du Mal, a fama de Baudelaire cresce, adensa-se, aprofunda-se, como uma das mais ricas e radicais vozes poéticas de todo o Ocidente.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Baudelaire e a revolução da metáfora poética .” In Testemunhos Literários do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 3. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.