Doris Lessing. Uma rapsódia esplêndida, prisma da condição humana

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1985/03/23. Aguardando revisão.

Doris Lessing, mais do que qualquer autor vivo, desdobra em seus romances um leque amplo, prismático, da condição humana neste final de século. O último volume, o quinto, de sua série The Children of Violence (Os Filhos da Violência), demonstra – se fosse necessária uma prova – como a prodigiosa autora inglesa se antecipa às questões que incendeiam a nossa época.

A decadência da Europa, simbolizada pelo declínio do Império Britânico dizimado pelas guerras de libertação do colonialismo: “Aquele era um país absorvido num mito, dopado, dormitando, sonhando… poderia agora pegar um jornal ou ouvir um rádio sem sentir-se no meio da revolução russa ou algo semelhante, no que tinham de cataclísmico? Ela não teria sido capaz de entender o simples fato de que, em essência, nada mudara muito naquele país – bastava ouvir as pessoas nas docas e nos cafés para ver que não mudara…” Toda uma concepção de civilização naufraga, como nos capítulos iniciais de A Laranja Mecânica de Anthony Burguess, escrito anos depois do aparecimento deste livro que encerra a série – A Cidade de Quatro Portas (Editora Record, 516 páginas), em 1968:

“Era tudo tão feio, tão feio; que raça era aquela que enchia seu rio de lixo e excremento, deixando tudo isso escorrer tão fétido entre os edifícios que cristalizavam o seu orgulho, a sua história?”

Nesse final da década de 60 Doris Lessing ainda se inquietava com o furor político, recém-expulsa da Rodésia, onde vivera 25 anos, considerada agora “uma imigrante indesejável”, pois era comunista:

“Alguém teria um jornal que se inquietava com o advento do socialismo vermelho na Grã-Bretanha (a autora se refere ao Labour Party) e como as classes trabalhadoras estavam ficando gordas e cheias de luxos e como as classes superiores estavam caindo na pobreza.”

O comunismo pouco a pouco vai, de livro em livro, mostrando não sua face radiosa, publicitária, oficial, mas seu lado stalinista, horrendo, totalitário. Doris Lessing manifesta um ceticismo crescente diante da “redentora” bolchevista e seus campos de concentração descritos subsequentemente por Soljenitzyn em O Arquipélago Gulag e se afasta dessa mentira do fascismo de esquerda: “Eu era comunista apenas porque era contra o hediondo racismo e a opressão das mulheres”.

O racismo, o esmagamento das mulheres, a discriminação contra os homossexuais apresentam-se sucessivamente nestas páginas de ironia sutil, de um desencanto que não tolda, porém, a combatividade: é preciso lutar, apesar da mesquinhez dos inimigos, ca cegueira dogmática dos opositores. E denunciar o nacionalismo xenófobo que usa na guerra, mas discrimina, tapando o nariz dos judeus:

“Thomas era um soldado. Thomas era um jardineiro, Thomas era um comerciante. O marido de sua mulher e o pai de sua filhinha. Era um exilado, Thomas Stern, judeu-polonês de Sochaczen, expulso da Europa para a África devido a um movimento de guerra. Quando puseram seu nome em documentos, tornando-o parte do Corpo Médico de Zambeze (nome que a autora inventou para designar a Rodésia dominada pelos brancos antes de se tornar o atual Zimbábue), escreveram: Thomas Stern, polonês, estrangeiro. Quando os alemães mataram a família dele do gueto de Varsóvia, podiam ter escrito (será que tinham registros?)”Sara Stern, Abrahan Stern, Hagar Stern, Reuben Stern, Deborah Stern, Aaron Stern…” Thomas era filho e irmão desses mortos.”

O leitor sente como, de um capítulo a outro, quase, se preparam os livros que brotarão dessa semente inicial: a apreensão com a loucura, a aproximação gradual com a antipsiquiatria, a ficção espacial, a existência de seres intergalácticos, a inevitabilidade da hecatombe final: a terceira, a definitiva guerra mundial nuclear… A família também, como fonte de neuroses incuráveis, fazia parte da caixa mágica chamada “o comunismo”, de onde se podiam tirar todas as soluções instantâneas para todos os problemas humanos:

“Ah, às vezes penso que o comunismo para pessoas fora de países comunistas era um tipo de papel tornassol, uma mochila de onde a gente tirava o que quisesse. Mas para nós não havia frases sobre a família como tirania tremenda, instituição amaldiçoada, espécie de mecanismo de destruição… E por isso abolimos a família. Em nossas mentes, e quando a guerra acabasse e o comunismo estivesse por toda a parte, a família estaria acabada. Sabe… abolida por decreto. Cláusula 25 da nova Carta Magna.”Decretamos o fim da família”. E então haveria a idade de ouro, sem família, sem neurose. Porque a família era a fonte da neurose. O pai seria um garanhão e a mão uma incubadora, sendo as crianças entregues a uma instituição ao nascer… as crianças seriam salvas.”

O desejo febril de mudança se mantém incólume: “Os bebês nascem neste mundão, nisto que existe aí. Um bebê nasce com infinitas possibilidades de ser bom. Mas não há escapatória, e como ter de entrar numa mina, uma mina terrivelmente escura, e depois lutar para subir, sair. E seus pais são parte disso, daquilo que você luta para escapar.” E ainda: “De que adianta pensar que deve haver algo errado comigo? É preciso assumir o que se é, como se vê as coisas. O que mais se pode fazer? E também tive o outro lado, o espelho: toda a minha vida acreditei que em algum lugar, em algum momento, não era assim, não seria preciso ser assim.”

A transformação pode ver não só de um comportamento novo, mas também da percepção de tudo o que não foi tentado nem aprovado, mas só recebido com chacota, descrédito, risos, mas que um dia revelará sua veracidade: a percepção extra-sensorial, a psicocinese, as galáxias povoadas de civilizações ininteligíveis por nós em nosso estágio de atraso cósmico…

A vida dos inferiores, da classe do subproletariado, também reaparece com insistência: o exército de caminhoneiros que parte para a morte por assaltos nas estradas ou para entregar riquezas das quais não participam nem fracionariamente, o amontoado de legiões de faxineiras que preparam os prédios elegantes, altaneiros, de brilho metálico, glacial, cinzento, e limpam tudo para outro batalhão: o dos funcionários, administradores de fortunas alheias, todos nós no turbilhão do que se chama em inglês the rat race, a corrida sem sentido dos ratos presos em caixas sem saída, labirintos nos quais são mantidos para que cientistas os estudem, determinem seu comportamento, tilintem as campainhas e apitem as fábricas para recompensá-los com o mínimo de salário, “posição na sociedade”, a ilusão de poder, a ilusão de decidir alguma coisa. Marionetes manipulados por empresas gigantescas e ocultas.

Como que a mente humana foi programada para separar tudo: as classes, as raças, os bairros, as nações, as economias, o nível de instrução, os sexos, as crenças religiosas. A aparência, estar “bem-vestido”, “decente”, “apresentável”, comporta-se como uma pessoa “de classe”, “ter a conduta condizente com a de uma mulher branca, inglesa, eficiente”, conta decisivamente:

“Era o país onde as pessoas não se comunicavam na escuridão que as separava. Ela abriu a boca para dizer que pensava um bocado no problema das classes… mas fechou-a outra vez, embora Phoebe tivesse visto que ela ia falar e ainda esperasse. Não tinha nada a ver com classes. Na África, como branca, preta, deveria ter disso assim e assado. Havia algo na mente humana que separava e dividia. Ficou sentada, olhando a sopa e pensando: se eu começar essa rotina de refeições, sono, ordem, a bela beirada na qual vivo agora se tornara embotada, perdida. Pois a visão que agora tinha da natureza da separação, da divisão (qualquer grupo de palavras teria servido para expressar isto, nenhuma de verdadeiro valor), era clara e nítida – sentada ali, enquanto a sopa lançava uma fumaça apetitosa nas suas narinas, ela compreendeu realmente (mas de maneira nova, num lampejo de visão) como os seres humanos podiam ser tão absolutamente separados por uma leve diferença na textura de suas vidas, que não podiam sequer falar uns com os outros, tendo de ser cautelosos ou inimigos.”

Sem usurpar ao leitor a surpresa e o deleite final, e quando sobrevém a catástrofe que Doris Lessing entrevê a espiral da metamorfose inexorável de toda uma arquitetura social e cultural:

“Mas esse tempo de conformidade branca e insular com seu repugnante amálgama de igreja, realeza, indústri, as artes respeitáveis e as artes outrora não-respeitáveis (qualquer variedade pop) junto com a ciência oficial e a medicina oficial, também eram uma anarquia que piorava a cada mês.”

Essa esplêndida rapsódia se funde pouco a pouco no réquiem pela civilização europeia no desmoronamento interno e externo de um mundo avassalado pelo cataclisma da Terceira Guerra Mundial. E surgem as mensagens estranhamente militantes de todos os que ainda dizem “não!” ao domínio das minorias, de povos sobre povos “inferiores”, enquanto a sabedoria do Extremo Oriente vai permeando a agressividade da tecnologia destrutiva branca. Mas por que revelar o final?

Em antecipação a Shikasta, em certo sentido o livro mais importante e profético de todo este século, o sufismo citado por Doris Lessing já é um dos caminhos e serve de sinalização e epígrafe para quem busca orientação para fora do caos político, militar, religioso e econômico de hoje:

“Era uma vez um louco a quem mandaram comprar farinha e sal.

Ele pegou uma tigela para carregar o que compraria.

Quando o dono do armazém media o sal, após encher a tigela de farinha, o louco disse:

E virou a tigela com o fundo para cima onde deveriam pôr o sal. Naturalmente a farinha caiu no chão. Mas o sal fora salvo.

Quando voltou até o homem que o enviara, o louco disse:

Quando fez isso, o sal caiu no chão e, naturalmente, viram que não havia farinha.

(História educativa dervixe, de O Caminho do Sufi, de Idries Shah.)

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Doris Lessing. Uma rapsódia esplêndida, prisma da condição humana .” In As três grandes damas da literatura europeia: Virginia Woolf, Marguerite Yourcenar e Doris Lessing, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 7. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.