Este não é um romance. É uma vingança pessoal cheia de chavões

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1979-08-11. Aguardando revisão.

No “Inferno” de Dante, Francesca da Rimini, lamentando o passado, diz que nenhuma dor é maior do que a de recordar os tempos melhores. Com seu livro último O Inferno é aqui mesmo, o contista mineiro Luiz Vilela provou que, realmente, a trágica personagem da Divina Comédia tinha razão. Ele, que já foi um dos melhores contistas brasileiros, reporta-se justamente ao passado da sua obra como tendo sido excelente e enumera os críticos dos mais variados matizes – de Antônio Cândido a Nélson Werneck Sodré, passando pelo autor destas mal alinhavadas linhas, que acenderam as luzes da sua resplandecente marquise. Havia, de fato, quando, por exemplo, Luiz Vilela, escreveu, há 9 anos, sua coletânea de contos Tarde da Noite, motivos para um moderado narcisismo. Luiz Vilela com o impacto de um estampido mortal em suas histórias pungentes, sem verborragias nem frases feitas.

Agora, O Inferno é aqui mesmo é água de outro pote inteiramente. Aliás, é comum muitos escritores brasileiros de talento sucumbirem, sem fôlego, quando tentam dar braçadas no mar do romance.

Nélida Piñon, a excelente contista de O Tempo de Frutas era, até esta publicação de Vilela, o exemplo mais flagrante da incapacidade de manter o leitor atento quando ultrapassada a raia do conto. Seus romances despertam cãibras e bocejos no leitor, comparáveis a um semiafogamento. Idem, idem para Luiz Vilela. O Inferno é aqui mesmo, romance autobiográfico, torna-se involuntária e tristemente, a autobiografia de uma incompetência. Desde Shakespeare que se sabe, ad nauseam, que não importa o assunto: como ele é tratado é o que o torna ou um soporífero seguro ou uma obra-prima.

Neste caso, Luiz Vilela toma como tema a redação de um grande jornal metropolitano e seu ingresso nele por parte do narrador, um repórter mineiro que tem talento literário e se transfere para a cidade grande, São Paulo. Seria absurdo torcer o nariz a priori, rotular apressadamente de chocho, de déjà vu tal empreitada. Como ensinou definitivamente um dos maiores romancistas de todos os tempos, Henry James, o território da Literatura é ilimitado por definição: por que não abrangeria também uma redação de jornal? Orson Welles não criou um filme deslumbrante sobre o poder antidemocrático e corrosivo que um magnata da imprensa como Hearst pode exercer sobre a massa de leitores habilmente manipulada por técnicas estridentes ou subliminares de indução psicológica? E nos Estados Unidos o jornalista Tom Wolfe (que só os pluricríticos ignaros confundem com o romancista sulista Thomas Wolfe, autor de Look Homeward, Angel) não apregoou, com dose mensurável de verdade, que o jornalismo quando feito por talentos extraordinários chega a integrar a dignidade estável da Literatura, como é o caso clássico da non novel de Truman Capote, A Sangue-Frio?

Infelizmente para o leitor, Luiz Vilela não é nem Orson Welles nem Truman Capote nem sequer um Tom Wolfe (o jornalista, não o romancista gótico-barroco). Seu livro e mais uma vingança pessoal do que um romance. Tem possivelmente mais chavões alinhados como disparos de metralhadoras que todos os provérbios citados, a torto e a direito e por qualquer motivo, por Sancho Pança no magnífico Don Quixote.

Desfilam, num estilo que se quer verista, mas que na realidade é maçante, os personagens estereotipados de uma típica redação jornalística brasileira. Há o “Gênio” auto ungido, espécie que infelizmente nem o incêndio atual da reserva florestal da Serra da Canastra ameaça tornar uma espécie em extinção, ai de nós! Há os aduladores do inacessível Nelinho, diretor que comanda tudo de longe com um sorriso olímpico de desprezo por todos os que não nasceram com a sua genética superioridade intelectual e refinamento de gosto. Há as esposas descontentes com a rivalidade que a redação cria para elas, numa concorrência desleal entre o teclado da máquina de escrever e a cama, entre os lençóis e a manchete espalhafatosa. Há o corte dos bajuladores de Nelinho, cognominado “a Imperatriz” (Rainha para os íntimos), o Júpiter desse Olimpo de vaidades fúteis. Há as reuniões intermináveis de redação, com os donos totais da verdade impondo sua visão dogmática do mundo aos redatores mudos ou intimidados. Há os repórteres interioranos que “subiram” na escala social e cultural na grande metrópole, saídos de um meio rural ignorante, de pais analfabetos e rudes. Não deixa de aparecer nem a figura de rigueur do cantor “engajado” que lota um estádio com suas rendosas canções de protesto político, terminando tudo num tumulto e numa pancadaria selvagem de policiais investindo contra a imprensa, os expectadores, os fãs ululantes.

O mais estranho é que tudo soa a um informe estatístico do IBGE sobre a rotatividade de emprego na imprensa ou sobre a rotatividade de Narcisos a galgarem a caírem do pódio de uma glória tão efêmera quanto à luz fosforescente do noticiário internacional que gira, por segundos, na faixa acesa na porta de entrada do majestoso edifício que abriga “O Vespertino”, possivelmente uma contração mal velada da antiga sede do jornal “O Estado de São Paulo” na rua Major Quedinho. E é aqui que está – pelo menos um chavão nos seja permitido, depois de tantos cometidos pelo autor! – o calcanhar de Aquiles deste romance de Luiz Vilela. Não há estilização do material abordado. Ora, sem estilização ou se parte para um documentário sóbrio, intenso, marcante ou o livro naufraga como ficção mais rápido que as frágeis embarcações dos refugiados vietnamitas açoitados por tufões no Mar da China.

É cansativo mas indispensável repetir: ficção se faz com qualquer tema. Céline tem capítulos magistrais sobre o massacre infernal do dia a dia em uma reles sapataria de Paris. De uma base tão modesta quanto um sorvo de chá e uma Madeleine Proust fez brotar um romance de 4.000 páginas que não cessa de apresentar ao leitor imagens inesquecíveis da alta sociedade aristocrática de títulos de nobreza ou de dinheiro gordamente extraído da miséria do povo; cenas dignas do mais requintado pincel impressionista a retratar cidades e campos, praias e castelos; diálogos refinadíssimos entre homossexuais que frequentam um bordel homofílico; disputas ácidas sobre arte, antissemitismo, erotismo, amor, angústia, esnobismo, crueldade, lealdade, morte. Então por que Luiz Vilela não se tornou o Rossellini ou o De Sica da literatura que spietatamente jogasse a câmara sobre o realismo e o retratasse magistralmente? Por incrível que pareça, por excesso de modéstia.

Sim, porque se Luiz Vilela se desse ao trabalho de escrever como Evelyn Waugh uma Brideshead Revisited ou de fazer uma nova visita às redações, ele encontraria matéria infinitamente mais interessante do que o apresentado neste Inferno que ele força o leitor paciente a adotar como sua morada temporária enquanto durar sua leitura.

Ele comprovaria então que a Redação pode ser um Inferno muito pior do que o purgatório medíocre que ele descreve com pieguismo, numa aferição severa do seu trabalho novelístico, com romantismo ingênuo para os que forem mais condescendentes. Pois muitas redações hoje transformaram-se em campos de batalha ideológica que deixam a politicagem dos sicofantas descritos pelo autor mineiro no nível rasteiro de uma brincadeira cheia de som e fúria mas sem nenhum significado. Verificaria, in loco, que talvez a maioria dos jornalistas brasileiros tem um nível de raciocínio ainda mais indigente do que o retratado por ele. Como que tocaria, quase que concretamente, na escalada da adulação imposta pela pusilanimidade pessoal diante dos novos donos dogmáticos da Única Verdade Absoluta: a deles. Veria muitas redações devastadas por lutas intestinas e hostilidades de fogo abanado pelo leque ideológico com um vigor de Superman.

Aí, sim, com talento, seria possível revelar a verdadeira face da mediocridade que predomina em várias, mas não é todas, é óbvio, redações de jornais: os focos de rebeldia lúcida de democratas que não querem sair de um regime de ditamole para uma ditadura ainda mais sinistra que a que nos impôs o dr. Falcão, de voos rasantes sobre uma Imprensa amordaçada e de ultimatos fulminantes que determinaram a paralisia artificial do cérebro e do próprio coração brasileiros, agora em estado de recuperação, na tenda de oxigênio do Centro de Terapia Intensiva da abertura política que vivemos hoje. Finalmente, as sórdidas caçadas a jornalistas bonitas, despedidas só porque não acedem à gula dos chefes repelentes, Luiz Vilela constataria, tornaram-se assunto para jardim de infância depois que o Brasil ressuscitou o pior Ibrahim Sued (aquele que aprendeu a ler e escrever) e adotou, 30 anos depois da sua morte, o colunista social maligno e malévolo, impotente para qualquer crítica construtiva ou qualquer criação digna de apoio a não ser a demolição pelo gosto sádico de demolição em se de vítimas na maioria das vezes indefesas, os Cholly Knickerbokers impostores covardes e impunes que pululam na imprensa liberal ou vetusta, para gáudio de todos os que fracassaram na carreira ou que irão para o Inferno por cultivarem os pecados capitais da inveja, da avareza, etc, etc.

O Inferno é aqui mesmo é um romance-vingança, um romance-desabafo, um romance-denúncia, mas inócuo em todos os sentidos. Nem as cenas de amor e sexo são convincentes e parecem copiadas de um manual norte-americano de Como Vencer sua Educação Puritana e Saborear o Sexo sem Remorsos Depois. Para não estragar o dia do leitor basta citar o kitsch involuntário desta pretensamente lancinante conversa de amor por telefone:

“Minha voz sumiu, meu coração subiu para a garganta e ficou batendo alto, enchendo aquele quarto de hotel, bem alto para que ela escutasse do outro lado da linha.

Santa ingenuidade a do contista mineiro! Acreditar que são só as redações que policiam e cortam textos de personas non gratas a este ou aquele editor, redator-chefe ou subeditor, por motivos pessoais ou ideológicos! Afinal, o que este livro vem provar cabalmente é que Luiz Vilela nunca saiu, mentalmente, do Interior: é, no melhor dos casos, um puro que conserva a sua inocência original. No pior, é um tolo que imaginou que a selva de pedra fosse apenas uma metáfora de Carlitos em Tempos Modernos ou Luzes da Cidade. Ficam soterrados, neste livro, seus dotes agudos de percepção da marginalidade da mulher, coisificada mesmo pelos que propalam a libertação marxista de todos os seres humanos, desaparecem seus dotes de captação de detalhes dignos de um Dalton Trevisan, quando Luiz Vilela, o contista, está em seus melhores momentos. Aqui se dá precisamente o inverso: ele está no seu pior intento e no nível mais baixo de execução de um projeto pré-estabelecido. Felizmente, para ele e para todos nós, há uma diferença decisiva: diante da entrada do Inferno de Dante flamejavam as letras fatídicas da advertência: “Deixai toda esperança lá fora, ó vós que entrais!”

Ao contrário do grande florentino, o Inferno de Luiz Vilela não é eterno: dura exatamente 224 páginas. Mas, é inegável: é aqui mesmo, nestas 224 páginas, que um Inferno circunscrito se encontra: o do fracasso de um escritor em transformar uma realidade vivida com grande sensibilidade, mas radiografada de maneira inteiramente simplista e pueril.

E como desse Inferno que não é o de quatro paredes fechadas, das quais não se pode sair, como Huis Clos de Sartre, é possível emergirmos, aliviados como Dante a contemplar as estrelas, podemos igualmente esperançosos e escoriados por esse texto que chamusca, mas não queima exclamar nós também:

All’alta fantasia qui mancò possa

Em tradução meramente aproximativa:

“Aqui à visão mais alta faltou resistência”.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1979) 2023. “Este não é um romance. É uma vingança pessoal cheia de chavões.” In Grandes contistas brasileiros do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 10. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.