Depoimento de Hilda Hilst: “Eu quero a junção do misticismo com a ciência
Em seu mais recente livro, Tu não te moves de Ti (Editora Cultura, SP), a ser lançado amanhã, a escritora paulista Hilda Hilst elabora uma narrativa tripla, três personagens, da Razão (Tadeu), Matamoros (da Fantasia) e Axelrod (da Proporção), que reproduzem aquela confluência einsteiniana de que, vistos à distância, o presente, o passado e o futuro coincidem como uma só ponta no infinito.
Tadeu pode ser um sonho da Matamoros e Axelrod uma projeção anímica dos dois. Alguns deles existem no plano real? Talvez Tadeu o grande industrial que entrevê, num satori (percepção relâmpago não intelectual), a desolação da sua vida concreta: burguesa, devotada à acumulação de capital, de luxo, de mando – ou seja, em uma palavra, ele tem uma fulgurante noção de que não é. As suas potencialidades todas – a poesia que sua mulher fútil e materialista toda feita do aparente apodrecível colocou numa prateleira bem no alto, inacessível às suas mãos, por exemplo estão esmagadas por aquela vida burguesa, rotineira, postiça, de terno, gravata e incomunicabilidade com o próximo a não ser a comunicação pelo medo e pela adulação que ele, Tadeu, incute nos seus subordinados intimidados pelo poder, pelo dinheiro, pelo status social. Tadeu, depois da iluminação meteórica e fulminante que teve, de que eventualmente se poderia desvencilhar de tudo que é falso e adiposo e que o impede de ser ele mesmo em sua plenitude, Irá assumir a sua autenticidade sufocada ou se renderá ao cotidiano massacrante e esterilizante do comando da Grande Empresa, com seus milhares de súditos súplices? A autora sabiamente deixa em aberta essa pergunta. Os dois outros personagens, porém – serão projeções de Tadeu ou Tadeu será um sonho sonhado por eles? – morrem: Matamoros, incendiada de erotismo, vê no amor e na fantasia delirantes uma forma de conhecimento e de permanência, e Matamoros morre. Axelrod Silva o que ousou atingir a hiperlucidez, morre também cegado por ter ultrapassado o umbral do Ser em toda a sua plenitude. – Ambas as condições – a fantasia e a hiperlucidez – são mais do que a fragilidade humana consegue suportar: levam à loucura e à morte, inexoravelmente.
Nesta entrevista depoimento, a incomparável autora de Kadosh, Fluxofloema e Ficções, de uma fascinante obra poética e de dramaturgia vigorosa, acedeu em falar sobre alguns aspectos do seu pensar e do seu fazer literário:
- Hilda Hilst, você é frequentemente tachada de “autora hermética” e parece que pouca gente te lê ou pelo menos se faz um silêncio sepulcral sobre a sua obra, que eu considero a mais transformadora e importante em língua portuguesa, hoje. Você se considera “hermética”, difícil, inacessível?
“Como vamos poder, numa página de jornal, definir toda uma conduta literária que, a meu ver, não pode deixar de ser também entranhadamente ética? A primeira coisa que eu tenho a dizer, e você sabe bem disso Leo, é que nenhum escritor se senta e diz:”Agora vou escrever um trabalho hermético”. Isso é uma loucura, isso simplesmente não existe! O que existe é que eu escrevo movida por uma compulsão ética, a meu ver a única importante para qualquer escritor: a de não pactuar. Para mim, não transigir com o que nos é imposto como mentira circundante é uma atitude visceral, da alma, do coração, da mente do escritor. O escritor é o que diz “Não”, “Não participo do engodo armado para ludibriar as pessoas”. No momento em que eu, ou qualquer outro escritor, resolve se dizer, verbalizar o que pensa e sente, expressar-se diante do outro, para o outro, o leitor que pretende ler o que eu escrevo, então o escrever sofre uma transformação essencial.”
- Que tipo de transformação?
“Uma transformação ética que leva ao político: a linguagem e a sintaxe passam a ser intrinsecamente atos políticos de não-pactuação com o que nos circunda e que tenta nos enredar com seu embuste, a sua mentira ardilosamente sedutora e bem armada.”
- E o que tem isto a ver com o propalado “hermetismo” do seu texto?
“É porque muitas pessoas veem no meu texto aquele conceito tradicional de hermético como alguma coisa como um muro, intransponível, sem aberturas, fechado sobre si mesmo. E não é assim! O hermético para mim é aquele conceito do (filósofo religioso existencialista) Kierkegaard que define o”hermético” como sendo o escudo, a carapaça, a repressão que os homens (e o escritor também, porque não?) usam, ou precisam, para se fecharem dentro de si mesmos e defenderem-se do exterior.”
- Por que o exterior é tão ameaçador assim?
“O exterior apresenta para o indivíduo propostas excitantes demais, que a sociedade estabelecida, em qualquer regime político do globo terrestre, considera proibidas e, portanto, as reprime. Esse hermetismo, esse escudo, essa repressão são então uma defesa necessária do ser humano diante do mando castrador que o cerca e o amordaça”.
- O Reich falava também dessa Verpanzerung, da pessoa criar como que um tanque de guerra inexpugnável em torno de si para não ser violado pelos outros, é isso também?
“Sim, o Reich; e sobretudo, quando eu escrevo, é porque eu sinto uma vontade insuperável de dar ao outro que vai me ler, espero, uma grande abertura de intensidade.”
- O que é uma grande abertura de intensidade?
“É difícil de definir, talvez fosse mais fácil sentir isso. É mostrar ao outro que ele pode desvendar o seu”eu” desconhecido; é proporcionar ao outro o “autoconhecimento”, uma compreensão definitiva de si mesmo, com suas potencialidades, falhas e virtudes.”
- E isso não seria ampliar o outro, libertá-lo?
“É justamente o que eu queria discutir com você: eticamente algum escritor, alguma pessoa pode assumir a tremenda responsabilidade de romper os limites que o outro aceitou, ou porque lhe fora imposto de fora ou porque ele se arrumou diante dessa conciliação com a opressão externa e o condicionamento interno de que foi vítima? Revelar ao outro que ele pode ser muito mais e pode ser ele mesmo com uma liberdade total de qualquer tipo de repressão política, econômica, sexual, religiosa, psicológica etc., eu me pergunto, não pode levar uma pessoa à morte, à loucura sem retorno?”
- Mas por que você pressupõe que as pessoas não queiram se libertar?
“Talvez algumas queiram, mas poderão aguentar a sua nova condição? Que direito tenho eu de interferir na sua vida burguesa, arrumadinha, na qual, bem ou mal, ela sobrevive? É uma questão eminentemente ética!”
- Você acha que seria uma onipotência ou uma presunção do autor ambicionar isso?
“Sim, porque talvez depois de se conhecer a si mesmo esse destinatário da minha mensagem de autolibertação não suporte a ruptura com o seu mundo anterior de tabus, de repressões, mas um mundo no qual ele pôde sobreviver. E se a descoberta plena de si mesmo for uma descoberta tão maior do que a sua capacidade? Se o levar a um nível de intensidade de autodescoberta que se revele intolerável para ele?”
- Mas no seu livro [Tu não te moves de ti] o grande industrial, o capitalista Tadeu tem um vislumbro dessa infinita gama de “eus” que ele pode viver, fora daquele eu desesperado que ele é, em meio a festas sociais ocas, junto de gente vazia, cheia de dinheiro, sexo e poder, mas sem alma, mortos que não sabem que estão mortos, apodrecendo cheios de ouro, sedas e um hedonismo materialista e vulgar. O Tadeu tem uma centelha do que ele pode deixar de aparentar e chegar a ser, não?
“O Tadeu, que entre parênteses eu chamo de, digamos, símbolo da Razão, embora símbolo não seja a palavra exata, pois bem, o Tadeu, de repente, presente que é um homem em deterioração. Seu comportamento social e diante de si mesmo, seu sentir, sua afetividade está tudo em decomposição, até a sua maneira de ver o mundo tem cheiro de apodrecimento. Então esse mesmo Tadeu, grande industrial, homem líder de uma grande empresa, encaixado dentro de um sistema rígido, burguês, subitamente resolve ousar, levar a cabo uma ruptura inédita, mas essencial na sua vida, aos cinquenta anos de idade.”
- Ele tem aquilo que na filosofia oriental se chama de um satori, uma fulguração intuitiva da verdade, que surge de forma fulminante e breve?
“É, ele tem esse satori ou flash relâmpago de si mesmo.”
- Mas o leitor, aliás, ninguém sabe se ele vai mudar ou não, o livro deixa em suspense o final?
“Ah, sim, ninguém sabe se ele vai continuar vivendo coberto por escudos, por mil máscaras postiças ou se de repente vai assumir esse comportamento, essa conduta existencial e ética que entreviu, da qual teve apenas uma centelha. Aí nós chegamos a uma mudança radical no meu modo de ser e de agir como escritora.”
- Qual?
“Não sei que tipo de mudança. O que houve foi que antes, no que eu escrevia antes, eu constatava que o ser humano vive subjugado por aquilo que o Jung chamava de morbus animi, isto é, a morbidez da alma. E eu achava que se alguém conseguisse viver passionalmente, com intensidade total o instante efêmero, agarrando uma determinada qualidade extrema de emoção, eu pensava, essa pessoa seria tomada pelo fervor de alguma coisa chamada grosseiramente de eternidade. Hoje eu mudei e a pergunta que me faço e que faço a todos é a seguinte: é lícito dar ao outro um tal nível de intensidade, vivendo todos nós nesse mundo dissociado, caótico, absurdo, esquizofrênico em que vivemos? Quem compreende que esse mundo cindido nos leva inexoravelmente à decomposição de nós mesmos, à degradação de nós mesmos, à morte e ao esquecimento do que realmente somos ou poderíamos ter sido, forçosamente se vê levado, para sobreviver, a compactuar com o status quo. Sim, você tem que compactuar, com mil artimanhas, concessões, truques, frustrações, é o preço da tua própria sobrevivência. Então todos esticamos o arco da pactuação até o limite extremo que podemos. Mas eu penso: essa própria pactuação, essa própria tergiversação com a repressão geral de si mesmo, as máscaras diárias que usamos não serão todas armas úteis para a salvação daqueles que são demasiado frágeis para assumir a grande verdade do que poderiam ser e por timidez escolhem não ser, por timidez ou sabedoria intuitiva até?”
- Outro dia nós estávamos falando daquela palavra que você achou, o agonofrenós, a agonia da alma, e você falou também muito da morbidez da alma que todos sofremos, essa angústia de não sermos o que poderíamos ser, é isso que você teme despertar no destinatário do que você escreve?
“Olhe, eu vi no dicionário de grego, frenós não é cérebro como nós supúnhamos, não. Frenós é o diafragma, a alma, o espírito. E o agonofrenós é a agonia da alma. Uma pessoa que tiver essa hiperlucidez de se compreender livre em um mundo esquizofrênico poderá sobreviver a essa iluminação interior ameaçadora? Até onde se pode realmente ser livre? Como seria um ser humano totalmente livre, sem nenhuma repressão, sentindo que, no entanto, ele faz parte de um mundo caótico e que milita contra a sua liberdade? Se você sentir que o teu”eu” está sofrendo uma deterioração na sua parte mais funda e autêntica, no seu âmago álmico – o que poderia acontecer depois?”
- Na sua opinião algum grupo humano, alguma cultura, algum indivíduo foram jamais totalmente livres? A Grécia antiga? O homem novo postulado por Reich? Adão?
“Talvez Adão, mas ele traz consigo toda a problemática da Queda, portanto não sei se ele pode ser totalmente feliz na sua liberdade se ele tem conhecimento da culpa. Pode ser livre quem sabe que caminha para a morte? Mas não me refiro a essa morte orgânica, ritual, do suor, da urina, do sangue, do mofo, não! Falo da morte espiritual do ente sozinho, consciente do seu apodrecimento. Será que alguém terá a coragem de tirar todas as máscaras e existir com o rosto nu e suportar a sua humanidade diante de um destino tão opressor à sua volta? É válida a libertação de um só ou nem todos podem salvar-se?”
- Muitos passam a viver no plano da fantasia como sucedâneo da vida.
“É como a Matamoros faz no meu livro. Você pode, sim, pautar a sua vida seguindo uma excelente, provável fantasia. Mas no fim, a Matamoros também não suporta o nível da fantasia dela e ela é uma mulher que no final se mata.”
- E o terceiro e último personagem, o Axelrod Silva, que é a lucidez, a proporção, talvez o intelecto, ele consegue se libertar?
“O Axelrod Silva é um historiador. Ele se concebe como sendo o justo, o significante. Mas começa a sentir que ele próprio é um opressor antes de mais nada, daí aprende que existe um verdugo dentro dele; é uma coisa terrível, enorme, que ele não consegue suportar. Então ele passa a ver historicidade em tudo: na paisagem, nele mesmo, comporta-se o tempo todo como um historiador tomando para si a História como um macho tomando a fêmea. Aí ele consegue encarnar a panbrasilidade do seu sobrenome Silva. Na página 137, a penúltima do livro, ele mesmo reconhece ser um explorador explorado.
Mesmo assumindo plenamente a Pátria, a sua brasilidade pura, ele se sente absolutamente torpe e se mata. Voltamos à eterna e única questão: é lícito moralmente, é existencialmente válido você mostrar ao outro uma verdade que você não pode resolver para ele?”
- É então uma conclusão trágica final: nenhum dos três personagens, nem o Tadeu, nem a Matamoros nem o Axelrod conseguem salvar-se: o Tadeu no plano da compreensão lúcida, fulgurante do que não é e poderia ser, a Matamoros trucidada pela própria fantasia e o Axelrod massacrado pela sua hiperlucidez que o leva à loucura ou pelo menos à morte? No entanto, eu achava que agora você estava menos niilista com relação ao ser humano, que parecia haver um vislumbre de salvação, no Tadeu, por exemplo, que pode ou não se salvar, não se sabe.
“Não sei.”
- Mas justamente por ter pelo menos essa bipolaridade de se ver lucidamente apodrecendo naquela loucura ele não pode assumir a outra loucura oposta, a antiburguesa, antiempresa, antiesmagamento do outro? Seguindo uma noção não marxista mas reichiana ou de Atenas do século de Péricles, ele não tem a possibilidade potencial de tornar-se o que ele anteviu que podaria ser, múltiplo, plural?
“Ele entrevê uma das infinitas possibilidades de ultrapassar a sua vida postiça, imposta, vazia. Poderá haver ou não o novo Tadeu que, aos cinquenta anos, com essas cordas apodrecidas que o liga à mulher esterilizante, que mata a autenticidade dele em potencial, a sua futura e possível plenitude. Mas ninguém sabe se a frase final –”dispenso o motorista” – é a sua libertação ou quem sabe até a pactuação, em plena plenitude, com a mulher que um dia ele amou. Será que ele tomará as rédeas e escolherá? Ele, não sei, pode identificar-se até com a mulher, quem sabe ela não é a forma específica de salvação dele? Porque recordo a frase de Einstein em que ele mostrou que a grande distância um presente é contemporâneo de um futuro: Tadeu, a Matamoros e o Axelrod são as três possibilidades de uma só pessoa nesses três textos. Quer dizer, o Tadeu pode ser ao mesmo tempo um sonho da Matamoros e simultaneamente a hiperlucidez absoluta, a historicidade de Axelrod. Numa só vida ele não teria, o Tadeu, a possibilidade de viver pluralmente uma infinidade de experiências da vida, de pragmaticamente ser inteiriço e ter vivido todas essas experiências. Ele só captou centelhas.”
- Mas eu insisto em que ele traz também uma centelha, talvez fugaz, de esperança, ele tem talvez uma chance de futuro! E uma experiência criadora, através da linguagem, a de atingir o unitário de forma trinária neste Tu não te moves de ti, uma confluência do presente, do passado e do futuro que Einstein pressuponha a grande distância, de nós sermos vários em épocas diferentes ou até simultaneamente, abolido o conceito de Tempo?
“É como acontece com as pessoas apaixonadas, Leo. Elas ficam, digamos assim, imantadas. Por que as pessoas apaixonadas bruscamente despertam nos outros uma certa complacência, mas também um certo distanciamento? Porque uma pessoa apaixonada naquele momento está assumindo a passio animi, a paixão da alma, não aquela morbus animi, nem, como você diz a mors animi, a morte da alma. O apaixonado modifica as noções de tempo, da vida, do instante; há como que uma dilatação ou contração ou estagnação do tempo na hora em que você se dá inteiramente ao outro.
Talvez o melhor do meu trabalho, quero dizer o mais satisfatório, seja o nível de intensidade que meus personagens atingem, não foi por acaso que escolhi como epígrafe para o meu livro anterior – Ficções – a epígrafe do escritor José Luís Mora Fuentes que disse: “Intensidade, era apenas isso tudo o que eu sabia fazer.” O que eu quero é “agarrar” o instante e não ficar naquele estado de morbidez da alma nem daquela palavra terrível que o filósofo Jankélévitch usa: amavissi, a nostalgia funda d’avoir un jour aimé (de ter um dia amado). Você vai sempre sentir a nostalgia de ter estado, ter sido, ter amado. A isso você opõe o estado da paixão sem limites, é a imantação plena, o fervor intenso. Por que? Porque no processo passional as noções de tempo, vida, instante, ficam transfiguradas. O meu trabalho é aquele instante, um segundo antes da flecha ser lançada, a tensão do arco, a extrema tensão, o sol incidindo no instante do corte, é a rapidez de uma navalha que, com um golpe lancinante, fulminante, corta o teu pescoço.”
- Aquele trecho de Jankélévitch que você me mostrou e assinalou no livro também fala de amar inteiramente a alteridade do outro, entregar-se a ele.
“Sim, quando você consegue uma embriaguez neurônica, álmica, quando você toma para si o Outro, de repente nós nos olhando assim, nos olhos um do outro, mas eu ainda não sou você nem você é eu, mas se abruptamente eu puder ser você e correr todos os riscos, sem fanatismos? O que eu quero é uma junção do misticismo com a ciência. Quero que d’improvviso, como dizem os italianos, nós consigamos a passionalidade que é a essencialidade absoluta junto com uma certa maneira de ver o mundo na sua raiz original religiosa. Mas religiosa no sentido que (o grande teólogo Paul) Tillich fala: na raiz mais profunda de você mesmo, no teu âmago absoluto, para que você consiga amar com toda a intensidade. Um dos livros mais impressionantes que eu já li em toda a minha vida, o livro mais impressionante desta década é o de Ernest Becker, A Negação da Morte.”
- O que o Ernest Becker, prêmio Pulitzer nos EUA, diz de tão fundamental?
“Ele faz uma análise do comportamento humano, abrange o Freud, o Otto Rank e se você realmente absorver o que o Becker afirma, você precisa de uma energia psíquica e nervosa indescritíveis para suportar o nível de vivência que ele te propõe. Porque ele chega a uma conclusão desesperada e se você não dispuser de escudos, carapaças, defesas, você não resistirá. Já imaginou o que seria uma pessoa se sentir plenamente livre no plano psíquico, afetivo, emocional, intelectual?!”
- Aquela palavra em russo que eu te mostrei, o um, com esse m vibrando e o u partindo como que de um aterrador vagido do cérebro…
“É, essa palavra ummm, gutural, visceral assim, me pareceu impressionante, aterradora, tanto que a anotei. Isso porque esse ummm, ao significar o intelecto em russo, expressa todas as possibilidades do intelecto, as formas do intelecto, a pactuação com o intelecto, o perigo abissal do intelecto, pois não há nada mais terrível do que você se sentir intelectualmente capaz, potente. O ummm russo, com essas reverberações ameaçadoras do”m” depois do “u” profundo, abissal, eu sinto como demais verdade, sensorial, é um barulho que vem de dentro, perigosíssimo, talvez o homem tenha extrapolado a utilidade do intelecto, talvez se ele tivesse tido noção da periculosidade implícita desse som, sei lá, mântrico, aterrador, seria outra coisa o intelecto e não esse ummm apavorante!”
- Mas em grego antigo o intelecto é nous…
“Ah, sim, o nous é uma coisa deslizante, tem uma delicadeza silábica, escorregadia, agradável, sem peso, não tem o peso terrível do ummm russo, não te coloca a carapaça do Reich e do Kierkegaard por cima. O ummm russo te faz morrer nele, o ummm, como é que se pode falar do ummm diante dos campos de concentração do Gulag, da invasão de Budapeste, como é que os russos tiveram hiperintuição de que ummm era realmente perigoso?”
- Você tem uma paixão sensorial pelo som e pelo desenho das palavras, por sua grafia, por isso é que você usa nomes hebraicos, japoneses para teus personagens e inventa neologismos belíssimos como olhante, vaziez, infernosa, cintilância, entre dezenas de outras. As próprias palavras fazem parte da tua ficção no sentido do imaginário como corporificação e encampamento do real aparente?
“Olha, Leo, foi até bom você falar nessa palavra ficção. Eu explico porquê: na matemática há coisas estranhíssimas de que eu gosto muito. Neste livro de Bertrand Russel, por exemplo, Misticismo e Lógica, ele, como grande cientista, revela que os físicos e matemáticos postulam a existência do que denominam de”ponto de ficções lógicas”.”
- Ficções ou fixações?
“Não, ficções mesmo.”
- Mas ficções quer dizer o imaginário, o sonhado, o onírico, o irreal!
“Isso segundo a definição do dicionário ou da literatura. Mas eles falam em física matemática como um ponto de ficção que pode levar a efeitos físicos reais, palpáveis. A partir dessas ficções você passa a ter experiências concretas, pragmáticas. Então nada justifica a dissimulação dessa palavra ficções tomada abusivamente apenas no seu sentido de dicionário literário e não rigorosamente científico. Para mim, desde que li esse livro, as ficções deixaram de ser o imaginário apenas para fazerem parte do real tangível, de um comportamento que pode ser medido. É como se você, entrando num plano de passionalidade total, várias coisas pudessem brotar, acordar em você: aquele tristíssimo amavissi do Jankélévitch, coagente daqueles veículos de angústia do homem que são o decorrer do tempo, a brevidade da vida, o amor, a morte. Mas o amavissi pode ser superado, você pode ir além da nostalgia tristíssima de um dia ter sido, ter amado. Seja qual for o teu passado, se tua infância foi feliz ou infeliz, essa nostalgia nos persegue exceto no caso da lucidez passional. Há casos de exilados políticos que saíram de regiões geladas e foram banidos para regiões ensolaradas e que mesmo tendo lembranças do cárcere, da neve, do frio intenso, do sofrimento, sentem essa nostalgia do lugar, por mais pavoroso que tenha sido, em que foram, em que conseguiram ter estado e ter sido. O (romancista grego contemporâneo) Kazantzakis aborda isso ao começar o seu livro sobre Ulisses exatamente onde Homero o terminou. Ulisses depois de nove anos de viagens e desencontros volta ao lar, a Ítaca, onde a fiel Penélope o esperava. E Ulisses começa a sofrer de amavissi, a ficar triste, mudo, não fala das experiências que teve no seu périplo acidentado e cheio de perigos, tem sonhos com Circe, tem, como diríamos em português, saudades de ter sido e ter amado naquele lugar agora longínquo assim como tinha nostalgia do lar e de Penélope quando estava banido da sua Ítaca natal.
- Os três personagens de Tu não te moves de ti querem dizer isso também, de certa forma, que o movimento é externo, o trem se move, mas você não se move dentro de você. Esse livro difere dos teus anteriores?
“Sabe, neste livro a ser publicado depois de amanhã (e como tenho pavor dos lançamentos dos meus livros!) eu me propus muitas coisas, mas acho que todo escritor fica assim em redor de um eixo básico. O Axelrod Silva se chama assim por quê? Por causa de Axel, que vem de axial, rod, de roda e Silva vem de brasilidade, o Brasil, essa sensibilidade nossa, não é? Eu fico sempre em torno do mesmo eixo, o meu (livro anterior e personagem-título) Qadós penetra no hebraico que é a língua das delícias. O Qadós seria o santo, ele e o Axelrod são de certa forma parecidos, dizem que a História se repete, eu acho que ela se repete em espiral e você, o homem, como o Qadós, quer ficar com a ponta da corda ligada naquilo que você chama de o Inominável, alguma coisa que você ainda não conhece. Você quer percorrer esse caminho, quer percorrer esse trânsito, mas sabe que é dificílimo. É preciso cada vez mais sentir e cada vez definir menos. Por isso não sei se o escritor pode falar de um cotidiano fotográfico porque quem tem a coragem de ir até o âmago da fotografia, o âmago de si mesmo de tocar o fundo do poço de si mesmo, a resposta dos porquês? Você corre um risco absoluto: o de levar o leitor a um ponto do qual ele não retorna. Citando a frase crucial do Becker:”O que exatamente significaria neste mundo ser inteiramente não reprimido, viver plenamente, em expansão física e psíquica? Isso só pode querer dizer que só se pode renascer como louco.” E o temor do Axelrod diante do pai lúcido, quando ele exclama para o pai: “Muito me satisfaz o ainda não te entender por inteiro, se eu te entendesse eu estaria agarrado à lucidez, mas estaria louco, livre como tu, mas louco…”
- Uma pergunta final: é correto concluir que neste último livro a preocupação política tornou-se mais presente neste tríptico? É verdade que já nas Ficções, o Vicioso Kadek era torturado e currado na prisão, colocado no pau de arara e em Teologia Natural a miséria social atingia o paroxismo do pobre lavar a mãe para deixá-la menos preta e pretender vendê-la no mercado para depois comprá-la de novo e com a venda daquele “tico de mãe” comprar os apetrechos que o defendam da cegueira nas salinas onde trabalha, mas em Tu não te moves de ti como é que você coloca o aspecto político da tua ficção imaginária e transreal, matemática?
“Como eu vejo e sinto um ser político? Como de repente você pode ficar cristalizado dentro de sistemas, sejam eles quais forem? Como é que as pessoas são levadas a aderir a partidos, esquemões, todas essas estruturas rígidas e senescentes como o marxismo, o fascismo, o capitalismo, o fanatismo religioso? Quando é que houve essa ruptura impressionante que perverteu todos os esquemas que se pretendia implantar para a felicidade do homem, a justiça e a liberdade e que acabaram se chamando Vietnã, Afeganistão, Etiópia, Hiroshima, Nagasaki, Auschwitz, Guernica, genocídio dos armênios, dos judeus, dos cambodgianos e laocianos, escravidão dos negros, extermínio dos índios, KGB, poluição, bomba de nêutrons, dissuasão atômica pela paridade do terror mútuo das superpotências, o Gulag, o terrorismo contra inocentes, o Esquadrão da Morte, as prisões de Cuba, do Uruguai, da Argentina, do Brasil, o sufocamento da primavera de Praga na Checoslováquia de Dubcek? Todos os”ismos” são sufixos, aliás o Axelrod diz: “comeram os meus sufixos”. Tudo isso: capitalismo, marxismo, fascismo, nazismo, cristianismo fanatizado, islamismo fanatizado, carreirismo ou luta pelo poder, consumismo, tudo isso deturpa o homem total e constitui um corpo de conceitos longínquos para o escritor. A política rasteira, mentirosa da realidade, a Realpolitik fica sujeita a torpes deturpações semânticas diárias, sórdidas, viscosas de embuste, tudo fracionado em partidos, sistemas, fórmulas dogmáticas – nada disso tem mais significado para o escritor. Não se pode criar uma noção arrumadinha, publicitária, de Pátria, de Congresso quando a Pátria é, no real profundo e não no real da demagogia dolosa, uma verdade grudada na minha sensibilidade e que nenhum slogan governamental nem partidário poderá jamais expressar! O político rasteiro, comezinho, é uma verdade fragmentária, mendaz. A totalidade do ser humano seria o sentido de compreender o homem, o teu próximo e dar vida a ele. Fazer da tua linguagem uma extensão da tua própria atuação, aí, sim, você começa a ser livre. Na hora que você começa a enunciar para o outro esse ummm perigosíssimo junto com o coração também perigosíssimo, mas se deve ouvir mais o coração e menos o intelecto, só assim você começará a amar o outro. No mundo de hoje só um louco é que não pode pensar em utopias. Temos que desejar a utopia, sonhar com a utopia, querer a continuação do homem através de uma coisa inimaginável, impossível, mas que o ser humano vai conseguir, vai chegar até lá.”
- E você acha que não há esperança nessa tua nova fase de pensamento e de escrever?
“Não sei, talvez, quem sabe?”
Reuso
Citação
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author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Depoimento de Hilda Hilst: "Eu quero a junção do misticismo
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booktitle = {Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa,
Clarice Lispector e Hilda Hilst},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
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doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Jornal da Tarde / O Estado de São Paulo, 1980-3-15 /
1980-3-16. Aguardando revisão.}
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