Baudelaire. Quase dois séculos de uma poesia original e sublime

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1981/04/09. Aguardando revisão.

A cultura francesa, ao contrário dos demais países da Europa, não teve, até a metade do século passado, um gênio universal que representasse o ápice de sua criação literária nacional, como Dante na Itália, Cervantes na Espanha, Camões em Portugal, Shakespeare na Inglaterra. Literatura de uma continuidade plurissecular de grandes talentos, nenhum deles emblemático da profundidade do pensamento e da forma estilística perfeita de uma civilização, as letras francesas se ressentiram sempre de um nome maior, universalmente aceito como um valor fora do tempo e das fronteiras.

Apenas o calendário nos leva a comemorar, hoje, os 160 anos decorridos depois no nascimento de Charles-Pierre Baudelaire no número 13 da rue Hautefeuille, em Paris. Porque, na realidade, a maioridade poética da França, tão tardia, data, de fato, de 1857: ano da publicação do livro de poemas Les Fleurs du Mal (As Flores do Mal), que revoluciona não só a poesia provincianamente francesa e medíocre até então, mas abre todo um mundo novo poético para a Europa e o Ocidente. Coincidentemente, é o primeiro gênio francês a ser tributário de uma cultura de além-mar: Baudelaire incendiou-se como vocação literária ao ler o norte-americano Edgar Allan Poe. Não é fanfarronice pan-americanista bater no peito e esperar que a “França e a Oropa” se curvem diante das Américas: é a mera constatação de que a cultura europeia – e não só a francesa – deixara de ser inspiradora, ditadora e exportadora de movimentos artísticos e filosóficos para buscar sua inspiração decisiva nas Américas, tendência que a grande repercussão de Faulkner na França e dos autores hispano-americanos em toda a Europa atual só faria acentuar. Assim como na Itália o grande romancista Cesare Pavese deslumbrava-se com os romancistas americanos que traduzia admiravelmente, Melville sobretudo, também na França, Malraux, Sartre e Camus, a suprema trilogia criadora do após-guerra, exaltavam Hemingway, John dos Passos, John Steinbeck, Faulkner, Melville e Whitman.

Baudelaire, porém, não foi um servil imitador de Poe: ao contário, transcendeu qualitativamente, o seu grande ídolo e instaurou na poesia contemporânea os temas nunca mais abandonados da modernidade. Parisiense, poeta refinadíssimo dos quadros urbanos da Cité, Baudelaire ultrapassou de muito, aliás ultrapassou incomparavelmente, as tentativas – quase todas abortadas literariamente – do naturalismo de um Zola a retratar o submundo do Lumpenproletariat parisiense. Baudelaire simbolizou, a custo da própria vida, a primeira cisão entre o poeta e a sociedade. Se antes dele os parnasianos como Leconte de Lisle e Herédia (imitados por nossos parnasianos tropicais como Olavo Bilac) criavam uma poesia marmórea, cinzelada, de formas perfeitas e degustada pela classe média culta e pela aristocracia, Baudelaire ateve-se intrinsecamente a uma verdade interior que entraria em choque flagrante e ruidoso com os bem-pensantes comsumidores de poesia de sua época.

Até hoje, pode-se dizer com certeza que a sua grandeza se transmitiu ao grande público? Pois ele ousava chafurdar em tudo que era “ilícito”, “marginal”, “imundo”, “proibido” da sociedade parisiense, um Toulouse Lautrec das letras, um Daumier do verso, mas sem a intenção político-social de mera denúncia ideológica deste nem sem a poetização inconsciente do meio das prostitutas, cafetões, tarados e ladrões daquele. Seria um erro crasso atribuir a Baudelaire qualquer sinceridade com relação ao autoproclamado “satanismo” da sua obra. Cristã, talvez até contra a própria vontade, sua coletânea de poemas e escritos em prosa induz finalmente não à irrisão nem à chacota mas à piedade, à compaixão humana vibrante e que nada perdeu do seu vigor depois de um século e meio.

Como Flaubert inaugurava o romance que retrata a hipocrisia de um mundo onde o dinheiro, a sufocação dos desejos legítimos dos indivíduos, a opressão da mulher reduzida a objeto doméstico e dócil recipiente sexual, Baudelaire também se atreve a dirigir-se ao leitor partindo da cumplicidade dos dois, do poeta e do leitor, com relação à situação de frustração, mentira e violência da sociedade estabelecida. Por isso, logo nos primeiros poemas ele se dirige ao “leitor hipócrita”, ao desvendar as cenas vetadas pela sociedade. A princípio, seu livro ia chamar-se Les Lesbiennes (As Lésbicas), dando-lhe o título que se restringia a um poema, Les Femmes Damnées” (“As Mulheres Malditas”, no sentido social e teológico do termo). Mesmo assim, a publicação daquela celebração do vício, das taras, das drogas, do álcool, dos paraísos artificiais, do devaneio produzido pela volúpia, pela immaginação, pelo arrebato artificial dos sentidos foi demais para o Ministério da Justiça francês que baniu a circulação de livro “tão nefando” como o definiu o promotor. Da mesma forma Flaubert ao evocar, com a mestria de um gênio no romance, o adultério e os direitos femininos ao que se chamava êxtase e hoje se chama clinicamente de orgasmo, num mundo em que os mais elementares direitos e desejos da mulher eram pisoteados com aplausos da Igreja, da Justiça, da Família e de toda a sociedade bem-pensante, sofreu condenação também jurídica por “difamar o bom nome da mulher francesa”, conforme consta do ruidoso processo instaurado contra o autor de Mme. Bovary.

Baudelaire – infinitamente mais do que seus sucessores cronológicos, Rimbaud, Verlaine, Mallarmé, Valéry, Saint-John Perse – foi o artista mais abissal de toda a cultura multissecular francesa a tornar idênticas a realidade circundante e a transrealidade poética. Nunca, antes dele, autor algum moderno se atrevera a traçar um quadro luxuriante de detalhes nauseabundos de uma carniça em decomposição na rua, o ventre ensanguentado devorado por moscas e cobiçado por cães em torno e a exalar um odor fétido – para terminar com a certeza de que a sua amada também terminará assim, podre e horrenda, mas a imagem da sua beleza será para sempre preservada na Arte da poesia e no sentimento do amor que o poeta devota à sua musa mortal.

Não que ele seja um revolucionário da forma: seus poemas têm rimas; não se afastam do classicismo ático da grande poesia internacional. É essa síntese de forma tradicional com conteúdo explosivo que identifica o primeiro poète maudit, poeta maldito, como Verlaine o definiu. Baudelaire significa a mesma ruptura de premissas entre o grande público e o artista que Cézanne e o cubismo, Schoenberg e a música dodecafônica, Joyce e o texto de literatura aberta, que pode ser lida e interpretada pelo leitor como um dueto de instrumentos musicais. Ele nunca pontifica, nunca usa o verso como retórica, há pouquíssimas descrições de paisagens em seus poemas. Sobretudo, ele incute uma passionalidade inédita na poesia francesa, até então gelidamente imitativa do Renascimento italiano, do pietismo espanhol ou do romantismo inglês e alemão trazido à França pelos amores germânicos de Mme. de Staël.

Com Charles Baudelaire a França passou, pela primeira vez em quase 20 séculos de criação poética, a ser a matriz de todo o Ocidente. Seja como admirável crítico profundo de artes plásticas ao celebrar a pintura inovadora de Delacroix ou revolucionária de Goya, seja como retratista citadino, nos fascinantes Petits Poèmes en Prose da miséria, da velhice, da decadência a rondar o metrô e os parques e calçadas de Paris, seja como original celebrador da beleza negra, nos versos que escreveu à prostituta mulata pela qual se apaixonou na série de mulheres belas que inspiraram seus versos, a famosa Jeanne Duval, indelevelmente, um dos seis ou sete maiores poetas de toda a cultura ocidental. Enquanto os pálidos T. S. Eliots e os pseudo-solenes, às vezes demasiado pomposos Saint-John Perses, passam para o esquecimento da História, Baudelaire, ao contrário, é objeto de teses e exegeses cada vez mais numerosas, na França e em outros países: um gênio tão bouleversant quanto à teoria da relatividade de Einstein na Física, a sua teoria e a sua praxis poética o colocam naquele restritíssimo âmbito de poetas supremos que o passar do tempo só faz avivar como incursão única na criação literária.

Nas suas mínimas anotações ou em suas cartas, ele deixa, clara, a marca nobre, inconfundível da sua unicidade irrepetível, como no trecho em que comenta a obra de Théophile Gautier e de Edgar Allan Poe e que diz:

“O poeta determina fatalmente um retorno ao Éden… A sede insaciável de tudo o que está mais além e que revela a vida é a prova mais viva de nossa imortalidade. É ao mesmo tempo por meio da poesia e através da poesia, por meio de música e através da música que a alma percebe os esplendores situados por detrás du túmulo; e quando um poema requintado desperta lágrimas nos olhos, essas lágrimas não são a prova de um gozo excessivo: são o testemunho de uma melancolia irritada, de uma postulação nervosa, de uma natureza exilada na imperfeição e que quereria apoderar-se imediatamente, aqui mesmo nesta terra, de um paraíso revelado”.

A natureza é simultaneamente um dicionário no qual o artista colhe palavras como é tambem a fusão só aparentemente paradoxal entre a imutabilidade hierática e a sensação fugidia de um “eu” efêmero. O poeta relata as correspondências ocultas existentes não só entre um perfume que evoca uma cor e um som que lembra uma emoção como ao contemplar o espetáculo da vida, mesmo a mais prosaica de todas, ele se torna o símbolo humanamente compreensível do infinito contido na brevidade do instante fugidio. A poesia decifra os hieróglifos da natureza: ela é dona da sabedoria do Verbo Divino graças à imaginação poética que vê o mundo na sua realidade-relâmpago mais profunda. Artista da paixão, da intensidade total, no país que tomou como lema Descartes e sua lógica esterilizadora, Baudelaire recupera a noção helênica do instante fugaz que se consome, mas é sacralizado pelo êxtase amoroso, pelo arrebato artístico, pela noção metafísica de que assistimos a um esboço da criação e não à sua revelação total, uma epifania antecessora apenas da reintegração na divindade final e inserida em todos os instantes, rostos e formas dos vegetais, seres humanos, animais, pedras, rios.

De uma musicalidade que nenhum poeta francês conseguiu igualar até hoje, Baudelaire perde em qualquer tradução, por mais ingentemente esforçada que seja, porque as sílabas, o colorido das vogais, o ritmo melódico das frases são todos elementos irrepetíveis em outra língua. Inconformista individualista que não acreditava na política, o artista mais medular que a França já produziu em todas as centúrias da sua produção, Baudelaire intensificou a vida por meio do uso, pioneiro, de drogas, pintou os cabelos de verde para chocar os idiotas, morreu na miséria e ignorado, fugindo dos credores, da inveja, dos processos movidos pelo Ministério da Justiça francês. Hoje a França e com ela toda a Europa não têm um poeta longuinquamente tão sublime quanto ele nestes últimos 160 anos que são, grosso modo, o século e meio de uma única grande figura na poesia europeia desse período: Charles Baudelaire, a quintessência da linguagem metamorfoseada em revelação poética transcendente e de estilo irretocavelmente perfeito, o autor de linhas que hoje continuam tão pertinentes quanto quando foram escritas em 1846:

“A poesia moderna está ligada por afinidades simultâneas com a pintura, a música, a escultura, a arte do arabesco, a filosofia zombeteira, o espírito analítico e por mais afortunadamente, por mais habilmente composta que ela seja, apresenta-se com as marcas visíveis de uma sutileza tomada de empréstimo a diversas artes… A poesia se relaciona com a música graças a uma prosódia cujas raízes mergulham mais adiante no interior da alma humana do que poderia ser indicado por qualquer teoria clássica… A poesia está ligada à pintura, à cozinha, à cosmética pela sua possibilidade de exprimir toda sensação de ternura ou de amargura, de beatitude ou de horror. É um dos privilégios prodigiosos da arte que o horrível, expresso artisticamente, se torna beleza e que a dor, ritmada e cadenciada enche o espírito de uma calma alegria.”

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Baudelaire. Quase dois séculos de uma poesia original e sublime .” In Testemunhos Literários do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 3. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.