Diálogo franco com o dramaturgo. Entrevista a Nelson Rodrigues

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Cadernos Brasileiros Ano VI, nº1, pp. 61-65, Sem data. Aguardando revisão.

Seria difícil definir Nelson Rodrigues numa única frase; raras vezes estiveram menos relacionados Dichtung und Wahrheit. Que aspecto de sua personalidade paradoxal e multifacetada se prefere descrever? Pai de dois filhos adolescentes, ele vive num dos bairros mais pacatos e menos sofisticados do Rio, num lar burguês mal distinguível de milhões de outros diaseminados por todo o Brasil. De tez clara, com um olhar melancólico que fixa em todas as coisas que contempla, para muitos, um comentarista de futebol (de O Globo e Jornal dos Sports) original, humorístico e ligeiramente "pancada". Filho de um liberal militante de Pernambuco, veio para o Rio com 5 anos de idade e começou a trabalhar, como repórter, num dos jornais fundados por seu pai, com a inocente idade de 13 anos, "na seção de crimes e roubos." Milhões de leitores, porém, ignoram o comentarista jocoso de esportes e o conhecem como o autor do folhetim naturalista e amargo A Vida Como Ela É, o criador da prostituta "Engraçadinha" e sua filosofia pragmática da vida. Com o pseudônimo de Susanna Flag ele comoveu milhares de leitores sentimentais com sua novela lacrimosa publicada em O Cruzeiro ("Não quis prostituir meu teatro, por isso protituí minha obra de prosador!"). Até há pouco tinha seu programa de TV através do qual difundiu pelo menos uma frase que se tornou anedótica no Brasil: "mulher adora apanhar".

Atualmente, goza de uma popularidade meteórica e ubíqua, depois de receber os primeiros prêmios de teatro que compensaram quase vinte anos de indiferença por parte do público. Este cético dos motivos humanos, de voz serena e maneiras cordialíssimas, passa noites inteiras conversando com a nova geração, os amigos adolescentes de seus filhos, e depois vara a madrugada ouvindo música clássica ligeira ("Não se pode pensar ouvindo Beethoven ou Bach").

Quisemcs ter com ele um diálogo franco, na esperança de compreender certas facetas de sua vida e de seus esforços criadores. Nossa entrevista teve um ambiente perfeito para uma conversa com Nelson Rodrigues. Sentamos à mesa de um restaurante popular que só serve cozinha brasileira ("sem esses fricotes de estrangeiros como os restaurantes de Copacabana), não longe de certos bairros de prostituição rasgada, embora no meio de uma zona residencial pequeno-burguesa, nessa topografia ziguezagueante do Rio de Janeiro. Da janela podia-se divisar uma sinagoga hirta e volumosa diante do crepúsculo, enquanto nosso diálogo era cadenciado pelos ensaios apopléticos de blocos que se preparavam para o Carnaval, com os tamborins, passistas e côro ecoando na tarde pré-carnavalesca.

Inicialmente, Nelson Rodrigues explica seu impulso primeiro para a literatura, para escrever peças de teatro:

Eu tinha 27 anos quando li a Electra de O'Neill: não preciso dizer que me atingiu como um raio. Nunca mais fui o mesmo depois que entrei em contato com o maior dramaturgo que já existiu, pelo menos na minha opinião. Li, uma depois da outra, várias de suas peças: Estranho Interlúdio e Longa Jornada Noite a Dentro são ainda as minhas favoritas. Como O'Neill eu também tenho sido muitas vezes acusa do de ser excessivo e de sofrer de mau-gosto crônico; como ele, também busco sobretudo a autenticidade, uma descrição de situações e personagens tão fiel à vida quanto possível. Se às vezes estão perto do grand guignol e mostram os seres humanos sendo horrosamente desumanos uns para com os outros, certamente não é minha culpa: eu meramente reflito a realidade como a vejo. Admiro o gênio criador de O'Neill. Ele nunca criou um personagem que fosse falso, que não vibrasse com a intensidade palpitante da vida. E que posso dizer sobre sua maravilhosa ausência de truques e enfeitinhos literários que dramaturgos menos dotados usam tantas vezes, para esconder sua falta de talento e de conteúdo? Eu escrevo fundamentalmente por compaixão dos meus semelhantes, uma compaixão que é ao mesmo tempo autêntica e dolorosa porque não pode interferir com o enredo da peça, nem alterar o desenlace trágico tão frequente na vida, como no teatro. É fácil perceber que eu prefiro dedicar minha atenção aos vencidos ou aos que serão inevitavelmente vencidos pelos "fortes" na luta pela vida. Quando escrevo, pouco me importo com estilo, embora escreva minhas peças 3 ou 4 vezes para buscar absoluta autenticidade. Você sabe? eu acho a busca de estilo muito cerebral; para mim ela sufoca a intensidade da vida que se encontra no diálogo espontâneo, quero dizer: o diálogo que não é "melhorado" nem "embelezado" por causa de valores chamados pomposamente de "estilísticos". É por isso talvez que eu leio pouco. Acho que ler autores pode me mumificar ou influenciar, sou contra devorar livros e mais livros. Se levo o que se pode chamar de uma vida solitária e desafiadoramente pessoal isso se deriva de um sentimento de tristeza e de altivez ao mesmo tempo. Abomino os critérios de bilheteria lucrativa, nunca me rebaixei a agradar as massas, nem a permitir que pseudo-críticos e pseudoautores, na realidade analfabetos e imbecis, se tornаssem coautores de minhas peças. Como disse, nunca prostituí meu teatro, preferi prostituir minha obra de contista e jornalista, inclusive ganhando o pão de cada dia como repórter. Não acredito que exista uma inteligência coletiva, em nenhum país do mundo e em nenhuma época da história da humanidade. Há heróis, mártires, santos, lideres, mas só há um Cristo, um São Francisco de Assis, um Lenine, que a canalha então segue."

Por que você só escreve peças sobre a zona norte do Rio, o subúrbio?

Porque é a única zona genuinamente brasileira do Rio de Janeiro, ao contrário da zona sul, Copacabana e o resto, que são tão cosmopolitas e estrangeiradas! Na Avenida Atlântica, homens e mulheres andam vestidos de calças italianas ou blue jeans americanos, falam uma gíria internacional incompreensível, feita de palavras estrangeiras, servilmente imitam tudo que a Europa e os Estados Unidos criam. Até a maneira de cometer suicídio da gente da zona sul é copiada de Marilyn Monroe e outras personalidades em moda, que deram cabo de suas existências: tomam pilulas para dormir, abrem o bico do gás, etc. Imagine você que nas partes chiques da zona sul até as empregadas domésticas se atiram do alto dos edificios, em vez de cometer o único tipo de suicidio brasileiro que existe: atear fogo à roupa. Nunca ouvi falar que havia suicidio idêntico fora do Brasil.

Na sua última peça, Bonitinha, mas Ordinária, que acho um pouco antológica, porque contém amostras de todos os crimes e perversões que você generosamente distribuiu mais equanimemente entre as suas peças anteriores, na sua última peça você acumula uma atrocidade sobre outra, mas ela termina com uma nota que me pareceu otimista, de esperança. De fato, o personagem principal não vende sua dignidade de ser humano por dinheiro, e queima o cheque que a compraria. No final, éee e a sua amada, uma prostituta redimida pelo amor, olham para o sol nascente e simbólico, numa praia deserta. Fale-me a respeito de Bonitinha, mas Ordinária.

No que se refere às atrocidades, devo esclarecer o seguinte: as atrocidades, na minha opinião, têm dois aspectos. Primeiro, a vida com sua crueldade feroz nos leva a ser desumanos para com os nossos semelhantes e em segundo lugar nós carregamos em nosso sangue, esta argila antiga de que fomos criados, o instinto destruidor, o prazer de matar. A guerra é o triunfo coletivo dos instintos bestiais do homem, do instinto de destruição em nós. Há, creio, uma dilaceração do homem entre Deus e Satā. Estamos agora vivendo na época de Sodoma e Gomorra, a apocalítica, nuclear, final. Como o filme Dolce Vita mostrou, a nossa é uma época que é meramente de transição e que nos trará alguma coisa radicalmente nova, quem sabe? Talvez até um novo modus vivendi entre os homens. Isto é o que eu tento demonstrar em Bonitinha, mas Ordinária: uma espécie de ressurreição no fim, uma redenção como você viu bem. Os personagens principais, expurgados do mal, como Adão e Eva entrando no Paraíso reconquistado.

Como você se sente como dramaturgo no Brasil de hoje, em que autores ditos de esquerda surgem, em que Brecht é encenado febrilmente e um "teatro social" tendencioso emerge?

Primeiro deixemos bem claro o seguinte: geralmente, o que mata o dramaturgo no Brasil é a sua pusilanimidade, sua falta de coragem, não só para a crítica social, como para enfrentar os grandes temas. Ultimamente, certos grupos teatrais no Brasil - não preciso especificar quais, apelando para um sectarismo ingênuo e brutal, começaram a atacar, sem discriminações, todos os problemas político-sociais nacionais. Isso, porém, sem ater-se à parte vital, sem levar em conta, isto é, os problemas específicos do teatro, entre os quais a poesia dramática que lhe é inerente. Passaram a fazer um teatro-reclamação, um teatro bobo e balbuciante. Esses ignorantes que se arvoram em marxistas, na realidade, nunca leram uma linha de Marx e com os métodos estúpidos que adotaram não conseguem nem criar Arte, nem adiantar o processo político brasileiro.

É interessante: Brecht expôs pontos de vista semelhantes quando defendeu sua peça Lucullus, diante do Comitê de Kultura soviético. Mas eu sei que você, como Ionesco, detesta Brecht. Explique-me, seria melhor, por que a violência desempenha um papel tão importante nas suas peças. O que significa a violência para você?

Bem, na verdade, eu sempre procuro ir além da epiderme das falsas convenções e atingir a parte viva da realidade que palpita sob ela. A violência quebra as convenções sociais, é a autorrevelação do indivíduo, por meio da qual ele revela sua verdadeira natureza e desafia os valores naturais e sobrenaturais. A educação, "as boas maneiras", são apenas uma camada tênue de verniz que impõe uma conduta mecânica e automática logo desmentida pela verdade e pelo poderio elementares da violência, a raiz de todas as coisas. A violência é também a consequência final da doença que corrói a vida do ser humano: a falta de amor. Todas as catástrofes pessoais e coletivas derivam desta fundamental falta de amor entre os seres humanos, que chegaram até ao extremo de "praticar o ato do amor sem amor". Veja como a violência e a falta de amor predominaram na história da humanidade e sufocaram a tendência inata que o homem pudesse ter para o bem: 10 milhões de pessoas foram trucidadas para que Mao-Tse Tung vencesse na China. Lembre-se do terrível assassinato de milhões de judeus nos campos de concentração da Alemanha de Hitler. E Hiroshima. E Stalin. Realmente, sempre há um tipo qualquer de antissemitismo do homem contra o homem. Se não é dirigido contra os judeus, é contra os católicos, os protestantes, os negros, etc., etc.

Antes de terminar nosso diálogo tentamos encontrar uma conexão lógica entre a sua maneira de viver e as afirmações candentes de suas peças e de suas declarações. Mas é difícil reconhecer a mesma pessoa no autor dos dramas naturalista-expressionistas que chocaram duas gerações de brasileiros quase, e no filho dedicado que todos os dias vai almoçar com sua velha mãe no bairro de Laranjeiras. Recordamo-nos de que nos dissera que nunca viaja de avião, não toca em álcool e é supersticioso "como todo bom brasileiro" ("tenho horror ao número treze e a gatos pretos"). O homem que vê um sem-número de filmes de cowboys, de "intocáveis" e gangsters é o mesmo que afirmara recentemente: "Sou um homem triste. Como se pode ser feliz se o mundo todo está errado? Ser feliz significa aceitar a iniquidade coletiva, um homem feliz é um homem degradado." Depois de uma pausa, fazemos a pergunta final:

Você dá atenção às críticas construtivas que seus amigos fazem às suas peças? Por exemplo, muda algumas coisas em suas peças, atendendo a essas críticas bem-intencionadas?

Aceito, é claro, a crítica inteligente - mas ela é tão rara no Brasil, onde em 80% dos casos "ser afoito e irresponsável" significa ter uma coluna de crítico no jornal! Porque eu não altero minhas peças se aceito a crítica de amigos inteligentes? Porque eu não adoro a perfeição, não a busco como dramaturgo. Sempre me lembro de Ortega y Gasset que escreveu um ensaio magnífico sobre Anatole France, acho que era. Disse uma coisa inesquecível sobre o autor francês, algo assim como "não gosto do que ele escreve porque a perfeição que visa obter, e obtém muitas vezes, denota uma carência de mistério e a falta da marca humana e aliena sua obra da minha sensibilidade". Não me lembro exatamente das palavras, mas o sentido é êste. Ou talvez, quem sabe? Talvez eu não mude minhas peças porque sou neurótico. Mas na nossa época o herói, o santo, o gênio têm que ser neuróticos como o mártir e o profeta. E nós, pobres mortais que não somos nada disso, podemos deixar de ser neuróticos se pararmos para pensar um minuto no mundo, na condição do homem, em tudo? Basta ver a angústia onipresente que permeia o nosso mundo de hoje com seus muros de Berlim, bloqueios de Cuba, invasões da Índia e assassinato de um Kennedy. O que nos pode salvar do desespero e do asco senão a rebelião da neurose?

E depois de uma pausa entrecortada pelos tamborins e de olhar para a sinagoga, lá fora, já quase completamente envolta pela noite, ele perguntou, levantando-se: "Vamos?"

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Diálogo franco com o dramaturgo. Entrevista a Nelson Rodrigues .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.