Uma viagem ao absurdo

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1972-6-5. Aguardando revisão.

A partir de agora, a literatura brasileira tem um local que não está delimitado nos mapas geográficos, mas que abrange qualquer vilarejo do vasto interior. Taitara é uma aldeia simbólica: resume o lugarejo perdido na Amazônia, a cidadezinha da região do agreste nordestino, o ponto quase anônimo do típico subdesenvolvimento. Algumas ruas tortas, uma população envilecida pela miséria, a esperança supersticiosa de uma ajuda sobrenatural que virá dar vida a uma comunidade primitiva, que vive da substância diária e pobre, de horizontes econômicos desgastados, sem perspectiva de melhora.

Taitara é menos uma cidade inventada pelo autor goiano José Jacinto Veiga do que um estado de espírito e uma diagnose política amarga. Como os mendigos de Becket, que esperam eternamente por um Deus Godot, que nunca vem, os habitantes desse local fictício regozijam-se quando o rico comerciante, o tio Baltazar do menino que relata a história, chega a Taitara para lá montar uma fábrica importante.

Imprevisível como os deuses caprichosos do Olimpo, tio Baltazar, que surgira misteriosamente, desaparece com a mesma rapidez, vitimado por uma doença não especificada e magoado pelas intrigas crescentes na fábrica que criara. A transformação é completa. Taitara não volta a ser a cidadezinha raquítica que se deteriorava sem o sangue da fábrica nova. Afastado o benfeitor e fundador daquela indústria tão próspera durante algum tempo, em vez de empregos surgem os terríveis Fiscais da Companhia de Melhoramentos em que se transforma a usina inicial.

Tentacular, monstruosa, a Companhia sem rosto nem nome abraço o lugarejo como um polvo: a arbitrariedade se instala com todos os poderes. Qualquer cidadão que transgredir regras minuciosas e sem sentido pode pagar com a vida a violação de um código absurdo: é proibido ter lunetas para contemplar os urubus que infestam a cidade diariamente, é proibido reclamar do calor ou da falta de calor, o cidadão que se abaixar para pegar do chão um objeto que achou será punível como também será encarcerado quem não se agachar para recolher alguma coisa do chão. Sobretudo os muros, meândricos, múltiplos, ameaçam sufocar a cidade como uma serpente anaconda.

Como a Alphaville totalitária do filme de Godard, como a Colônia Penal de Kafka, a poderosa Companhia das autoridades que dirigem esse pesadelo real envolve todos nas malhas das suas leis inflexíveis e de difícil interpretação. O horror da desumanização imposta de cima corresponde ao caos anterior ao raciocínio que se instala nas mentes de todos: o célebre mágico Uzk teria vindo realmente fazer seus números sensacionais na cidade, com permissão das autoridades inescrutáveis, ou teria sido uma alucinação coletiva e ele nunca teria passado por lá?

A incerteza, a dúvida, a suspeita passam a reger aquela cidadela sitiada por dentro como um corpo minado por um câncer que se aloja em suas próprias células. Mas as metamorfoses pessoais estão fora do alcance da brutal Companhia.

A medida que usa menos a farda de Fiscal que o transformava num tirano, o pai do menino narrador deste fatos, readquire suas características humanas de bondade, de coragem, de esperança num futuro melhor e influenciável pela vontade humana.

É uma ilusão penosa e inútil. A Companhia o impede de abrir a loja em que ele investira os últimos centavos. Para impedir o êxodo crescente de seus habitantes escravizados, ordena que todas as estradas de acesso a Taitara sejam bloqueadas, enquanto trancafia aquele desafiador da onipotência da Companhia na Cadeia Laboratório de onde não sairá mais.

De repente, nesse crescendo de acontecimentos apavorantes, o elemento mais surrealista aparece sob a forma do fantástico: surgem pessoas voando livremente pelos céus, caem objetos estranhos do espaço. De nada valem as advertências severas da Companhia para punir todos os que olharem para o alto em busca das inexplicáveis aparições vistas diariamente a olhos nus pela população. Para algumas pessoas seus sentidos mentem.

Hipnotizados pelo clima de pavor em que vivem sob a ditadura hedionda, os homens provavelmente projetam no ar seus desejos frustrados de libertação, de liberdade depois de tão pesado cativeiro. Para outros, os homens voadores realmente existem.

Todo o clima do absurdo é mantido habilmente pelo autor: no final não se tem certeza se o interlocutor do libanês também não alça voo, assumindo sua personalidade desconhecida, mas verdadeira de um ser vindo quem sabe de outro planeta ou de uma galáxia distante.

À primeira vista, José J. Veiga – autor de romances e contos do absurdo simbólico como Os Cavalinhos do Platiplanto, A Hora dos Ruminantes e A Máquina Extraviada está apresentando uma alegoria política sutilmente disfarçada.

A opressão totalitária é tão ampla hoje em dia que Sombras dos Reis Barbudos pode ser interpretado como uma obra polivalente: dependendo da posição política do leitor será uma ditadura sul-americana ou uma crítica velada à perda de liberdade de imprensa no Brasil ou ainda o símbolo da condenação moral do autor de regimes autoritários, da Madrid franquista ao Paraguai de Stroessner.

José J. Veiga insiste na fluidez de seu romance seco, pontiagudo, fascinante. Mas por detrás dessa flexibilidade de interpretações existe uma sólida estrutura: a denúncia ética de uma coletividade. A ditatura não é um acontecimento que surge do nada: é produto de um ininterrupto encadeamento de atos e omissões, de colaborações e ausências.

Quando os cidadãos sentem medo, os elos dessa cadeia que desembocam no campo de concentração de Direita ou de Esquerda forjam-se concretamente: as lacunas do que fazemos ou deixamos de fazer são preenchidas implacavelmente pelos partidos nazista, fascista, bolchevique que brotam com a espontaneidade da erva daninha.

É inútil esperar um deus ex machina que aparecerá de repente para resolver todos os problemas e restaurar a justiça e a prosperidade sobre o mundo, essa Taitara só fisicamente maior que a Taitara do romance. A passividade política irmana os seres humanos aos animais e às plantas, que só sofrem a ação dos demais sem rebelar-se nem influenciar o rumo dos acontecimentos. Como constata no trecho mais expressivo o narrador auto-biográfico, utilizando a extrema economia de linguagem característica do autor goiano:

“Tínhamos caído em um desvio onde a ideia de tempo não entrava, a vida era uma estrada comprida sem margens nem marcos, estar aqui era o mesmo que estar ali, o hoje se confundia com o ontem e o amanhã não existia nem em sonho; nós esperávamos qualquer coisa, mas já nem sabíamos se era para adiante ou para trás. A única novidade que notávamos em volta era um cheiro, cada vez mais forte de mato, de planta, e as pessoas também iam apanhando uma cor esverdeada, víamos isso em nossas mãos e braços, e no rosto quando olhávamos em espelho. Mamãe dizia que estávamos virando capim, e um dia seríamos comidos por bois e cavalos”.

José J. Veiga vem trabalhando num sulco pouco explorado da literatura brasileira: o da história fantástica, alegórica, simbólica a ponto de se tornar quase hermeticamente inacessível em termos acadêmicos de lógica, de enredo compreensível e de seguimento cronológico. É um filão difícil, porque sobre ele paira a sombra de Kafka. Como é possível inovar, já que não é possível superar, os temas do absurdo? Da lenta transformação do ser humano pensante e sensível na massa fuliginosa dos autômatos, dos robôs e dos assistentes vítimas incolores de carrascos absolutos?

Mesmo como charge política, George Orwell, com a ditadura onipresente de 1984 antecederá a opressão stalinista. Ionesco revelara a dominação nazista da Romênia e da França em sua peça Os Rinocerontes em que os homens abdicando de sua liberdade e de sua luta, transformam-se em raivosos paquidermes prontos a dilacerar quem não estiver disposto a obedecer cegamente a linha do Partido.

É muito mais provável, porém, que as fábulas que José J. Veiga conta ultrapassem os limites estreitos da denúncia política. Seu tema central, obsessivo, é da impossibilidade de conhecimento da realidade e da irrealidade pelo homem. O que é verdadeiro e o que é um contrassenso para ele são dois aspectos de uma mesma Gestalt do mundo exterior, um desembocando no outro, um não desmentindo o outro nem o anulando, ao contrário, até confirmando-o quase sempre.

Os limites do racional lógico e do irracional bivalente, pois tanto pode conduzir ao racismo quanto ao misticismo – são os dois polos que ele não considera opostos. Apolo funde-se com Dionísio: o desejo de ordem e de classificação do conhecimento mistura-se com o arrebato caótico das emoções, do sangue, do terror, da revolta vitalizadora. Mas como os homens não estão de acordo quanto a essa interpenetração de real e de supra real a tentativa de fazer todos verem só o que a Autoridade estipula como visível redunda inevitavelmente na morte espiritual e até física dos opositores do regime totalitário.

Além de uma visão humanista e liberal do homem, a sua é uma visão ética que chega às fronteiras da religiosidade. O absoluto é em termos humanos inexpugnável como o Castelo de Kafka que K. não consegue desvendar. Dessa conclusão agnóstica deriva a angústia típica de seus personagens jogados sem um código válido num mundo regido pela arbitrariedade.

Por isso Sombra de Reis Barbudos é, na moderna literatura brasileira, um lançamento extremamente importante, atual e pertinente. Por detrás de um estilo compacto, que se esconde no linguajar e na mentalidade infantil maravilhosamente reproduzidos, está a lucidez do artista, que, para Shelley, era já “o legislador desconhecido na humanidade”.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1972–6AD) 2023. “Uma viagem ao absurdo.” In Grandes contistas brasileiros do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 10. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.