A vocação teatral de Gunter Grass

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1966/06/24. Aguardando revisão.

Já ao prestar homenagem a Shakespeare, Günter Grass anunciara que estava preparando a sua primeira peça teatral. A estreia mundial em Berlim de Die Plebejer proben den Aufstand (“Os Plebeus ensaiam a Revolta”) desencadeou enorme expectativa no cenário cultural europeu e foi simultaneamente vaiada e aplaudida com delírio.

Seu tema central não poderia ser mais atual: a revolta dos operários do setor oriental de Berlim cujo 13º aniversário celebra-se em 17 de junho. Sufocada pelos tanques soviéticos, despertou o comentário de Camus, escrito de seu próprio punho sobre uma fotografia que mostra os trabalhadores atirando pedras contra os carros armados do Exército Vermelho: “O absurdo existe”.

Mas para Grass a rebelião política, historicamente comprovável, era um mero ponto de partida para a obra teatral. Contrastando com os dramas alemães contemporâneos, muitas vezes deformados pela paixão política e pelo mea culpa de um O Vigário, de Hochhut ou um Marat/Sade de Peter Weiss, ele punha em dúvida a autenticidade desse pretenso “teatro-verdade” social. Mostrava que o mais célebre representante do teatro marxista - Bertolt Brecht - estava, como o rei no conto de Andersen, nu, apesar das roupagens esplêndidas que lhe emprestavam. A desmistificação do “mito Brecht” em torno ao qual a Esquerda internacional criara um “culto da personalidade” tão subserviente quanto o que circundara Stalin e tão sacrossanto quanto o fanatismo dos afilhados do “Padin Ciço” do Nordeste, emparelhava-se com outras meditações de profunda pertinência para a nossa época: qual o valor do teatro doutrinário? que ligação pode haver entre a atividade intelectual e a atividade política? que eficácia podem ter as palavras diante das granadas, dos tanques e dos canhões?

O gérmen inicial de Os Plebeus ensaiam a Revolta constitui a análise da atitude de Brecht diante dos autores clássicos. Intitulada Estudo da Primeira Cena do Coriolano de Shakespeare, essa análise reformula as conversações do dramaturgo de Mãe Coragem com seus atores, expondo o dogma brechtiano de que os textos clássicos devem ser furtados à naftalina e aos museus para serem utilizados segundo uma pragmática marxista.

Grass: “Durante o período dessa reelaboração, dessa análise, sobreveio a data fatídica 17 de junho de 1953. Enquanto Brecht, referindo-se a Tito Lívio, quebrava a cabeça, imaginando de que forma poderia armar mais eficazmente os plebeus (imaginários) de Shakspeare, irrompem sem ensaio prévio e desarmados os pedreiros (reais) da Stalinallee (artéria principal da parte comunista de Berlim) para protestar contra os excessos dos horários de trabalho. como antigamente os plebeus romanos contra o aumento vertiginoso do preço do trigo.

“Sabe-se que Brecht assumiu com relação àquela insurreição uma atitude de cautelosa expectativa. A sua experiência revolucionária resumia-se a slogans à la Spartacus... O que me importa é extrair da atualidade algo de útil à sua adaptação teatral do Coriolano, com a revolta dos plebeus da Antiguidade... Enquanto os operários querem conquistá-lo para sua causa, ele os utiliza para a encenação shakespereana. Ao passo que os trabalhadores mostram-se indecisos e não sabem como comportar-se logo depois (de declarada a revolta), ele, o Chefe, nada tem de indeciso na sua tendência: na sua adaptação vencerão os plebeus, enquanto no mesmo palco, que espelha a revolta dos pedreiros, a revolta real desmorona.

“Na História - pois o dia 17 de junho faz hoje parte da História - e na minha peça os tanques soviéticos dilaceram a insurreição. E enquanto os operários consideram a intervenção dos tanques um fato, o Chefe lhes faz uma dissertação sobre as possibilidades e modos de utilizar os tanques no teatro - qualquer coisa que aconteça se transforma logo para ele numa cena; os diálogos, os coros, os cortejos de dez ou doze filas, tudo para ele se torna um problema estético,

“O importante para mim é indagar da situação de um intelectual inteiramente absorvido pelos seus problemas expressivos, relacionados com a exigência de se mudar a sociedade, e que de repente se vê frente a frente com uma série de acontecimentos que ameaçam realmente mudá-la. No meu drama, os operários têm consciência política somente através das horas de trabalho, embora essa consciência possa ampliar-se politicamente até á exigência de eleições livres.

“Cria-se uma fratura, uma incompatibilidade e é o que sucede na minha peça: para o Chefe, a concepção que os trabalhadores têm da política é demasiado exígua, estreita; por sua vez, estes não estão interessados em elaborar uma teoria da Revolução. De certa forma, seja o Chefe, sejam os operários têm razão e não têm ao mesmo tempo: representam duas consciências isoladas, não comunicantes”.

Ironizando o fato de terém sido idêntica mente negativas a reação capitalista do jornal Die Welt do trust Axel Springer de Hamburgo e a comunista, do órgão oficial do governo títere de Ulbricht na Alemanha Oriental, o Neues Deutschland, Grass opta por uma terceira posição.

“A minha afirmação é a de que existe um terceiro caminho. Não creio que ele signifique um programa político determinado nem que possa ser considerado desde já como ideal e explicativo. A terceira opção é a faculdade e a possibilidade de permanecermos flexíveis, disponíveis para uma contestação válida e especialmente a possibilidade de podermos rever acontecimentos que se cristalizaram ideologicamente.

“A revolta de 17 de junho é considerada, na Alemanha Oriental comunista, um golpe contrarrevolucionário e fascista, já no Ocidente é vista como uma rebelião em prol da liberdade - eis duas interpretações ideologicamente esclerosadas de um acontecimento. A minha tentativa é a de ressuscitar esse evento de forma a torná-lo novo e vivo, atual, fresco, que cause sofrimento, que perturbe através de uma peça de teatro”.

Contestando a validez artística ou política de uma peça “engajada”, Grass especifica: “Escrever um drama ou uma comédia engajada significa ter uma doutrina preestabelecida, pois por mais dialética que seja, uma doutrina deve ensinar, difundir. Brecht escreveu dramas”engajados”. Eu os considero pouco logrados, ao contrário: considero incapaz por definição qualquer drama “engajado”. Sou mais inclinado, de preferência, a aceitar um tipo de drama que eu chamaria de dialético, no qual tanto a tese quanto a antítese, a afirmação e a negação possuam o mesmo quantum de realidade. O essencial é que o drama possua uma faculdade capaz de elucidar, de ilustrar uma situação. Que a explique, que a ilumine, que levante problemas. A minha peça apresenta personagens que só podem ser considerados cômicos de forma muito limitada, não diretamente.

“De um lado deparamos com o Chefe, para o qual o”engajamento”, a “participação” se tornou uma torre de marfim. De outro deparamos com a vingança trazida pela própria realidade: os operários que se insurgem, pedem a sua ajuda, movidos por exigências exíguas e mesmo confusas. Não existe um verdadeiro diálogo entre os dois interlocutores: falam sem se ouvir mutuamente. Ora, é cômico este tipo de relação entre o grande (digo “grande” entre aspas) as teorias, a consciência e o pequeno, o modesto, as exigências salariais, as reivindicações referentes aos horários de trabalho; da mesma forma que uma catedral não é, por si só, nem mais nem menos cômica do que um camundongo: cômica é a relação entre os dois...

“A realidade atual não pode ser solucionada pela obra literária”. “Mas posso imaginar que daqui, digamos, a vinte anos, os personagens do meu drama se tornem arquétipos. Ou ainda há outra possibilidade: a de que se tornem inteiramente incompreensíveis para uma humanidade futura: então já teremos construído a sociedade sem classes de Marx ou a Cidade de Deus de Santo Agostinho”.

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “A vocação teatral de Gunter Grass .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.