Uma entrevista com o maior escritor português do momento

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1986-08-28. Aguardando revisão.

Ele levou limões galegos do Brasil, quando voltou a Portugal, há poucos dias, para as suas batidas de limão. José Cardoso Pires, 50 anos, o maior escritor português da atualidade, autor de dois romances fascinantes, O Delfim e O Anjo Ancorado, além de outros, tem preferência por comidas e bebidas brasileiras. “Em Portugal hoje em dia é chic oferecer-se a caninha nas recepções sofisticadas. Infelizmente, como não temos dinheiro para comprar o açúcar feito de cana, contentamo-nos com o de beterraba, que começamos a produzir, depois que as nossas ex-colônias se libertaram”. Amigo pessoal dos dirigentes africanos de Angola e Moçambique, militante na oposição à ditadura salazarista, Cardoso Pires esteve uma semana em São Paulo, durante a realização da Bienal do Livro e concedeu a Leo Gilson Ribeiro a seguinte entrevista:

Cardoso Pires, há talvez um elo entre seus dois romances mais conhecidos, O Delfim e O Anjo Ancorado? A que você se propôs com eles?

“Já de início você disse uma coisa que para mim é bastante importante como observação: O Delfim e O Anjo Ancorado são mesmo complementares. Do ponto de vista da estrutura, o que eu me propus a fazer com O Delfim foi um romance dentro do romance, portanto, dar ao leitor o que estava escrito e, ao mesmo tempo, o que não estava escrito. Quando estou a descrever uma cena, já a estou vendo em letra de forma, depois as provas, isto é, estou a escrever um livro que o leitor vai ler, mas estou a escrever com ele, com a sua participação.”

O Delfim neste momento vai ser filmado numa co-produção só portuguesa para a televisão. O roteirista, um espanhol de Barcelona, numa conversa comigo, me comunicou que queria substituir o escritor, que narra o livro, por um cineasta que vai realizar um filme, assim como há um romance dentro do romance, portanto, passa a haver um filme dentro do filme.”

O narrador passa a ser a câmara, então?

“Sim, é ele quem discute a leitura cinematográfica durante a sua feitura. A minha ideia central era esta: num país como Portugal, naquele tempo de censura (em 1967), uma censura muito opressiva, o que eu pretendia colocar em questão, quer como tentativa, quer estruturalmente, era: a discussão de uma verdade. Naquelas condições, não se conseguia apurar a verdade naquele país; a verdade concreta, decretam-na. Então, digamos, por hipóteses, por sofismas, por adulterações, aproximações, através de uma discussão dialética sobre as diferentes hipóteses, vejamos se pelas frações de verdade total que elas contêm chegamos a uma conceituação da verdade que é escondida artificialmente.”

Inclusive por meio da superposição de verdades ou versões múltiplas?

“Exatamente, daí as muitas alusões que há à censura, o ler entre linhas, surge o jogo que para mim é bastante significativo: é o jogo dos subversivos, no qual ganha quem tirar mais depressa significados de uma palavra que tenha conotações políticas. Por exemplo: automóvel, capital, capitalista, reacionário.”

Um encadeamento ideológico?

“Sim, e foi um jogo que inventei e que muitas pessoas, depois, passaram a jogar, porque era o método de leitura do fascismo, o de descobrir alusões políticas em tudo. Portanto, eu queria que esse jogo servisse de metáfora da distorção da realidade, vista pelo código da censura vigente no país então. Da mesma maneira, o esquema do crime, da morte da protagonista nunca é dado diretamente, porque eu queria que se percebesse que ela morreu depois do coito com o criado, por meio de uma aproximação com uma história que eu conto paralelamente. É uma prostituta da alta sociedade, que decide cometer um crime perfeito. Ela sabe que seu amante, um velho, sofre do estômago, faz então desesperadamente amor com ele em cima das refeições e realmente ele morre. Portanto, esta é uma aproximação através da qual se percebem outras situações do livro: é o homem alienado por uma sociedade, que ao se perpetuar politicamente já criou uma alienação, uma distorção mental que não lhe permite mais ver as coisas como são, nem visualmente ele tem mais a certeza de que uma mesa é uma mesa”

Não há mais critérios para avaliação da realidade.

“Não há mais critérios: há sempre uma suspeição a encobrir o fato real, seja ele qual for.”

Além disso, você alude à distorção da supremacia dos valores meramente materiais, como a do imigrante que volta da França com seu automóvel, suas roupas novas?

“Claro e também me refiro às tais”viúvas de (maridos) vivos”, que existem abundantemente em Portugal. Para lhe dar uma ideia: havia aí, por volta de 1970, uma aldeia no Norte do país, uma dessas aldeias de Trás-os-Montes que ficam completamente despovoadas devido à imigração dos jovens. Nelas só ficam as crianças, os velhos, as mulheres. Não sei como o fascismo deixou passar isto: numa destas aldeias, saiu nos jornais, só ficaram dois irmãos. A certa altura, quando os dois, jovens ainda, quiseram emigrar, as mulheres impediram que eles saíssem, deram-lhes um terreno para cultivar, pois precisavam deles do ponto de vista sexual. Agora imagine só: num país de moral tão dura, tão tradicional como Portugal, que se tome uma tal atitude de desespero é incrível, não é? Mas era a própria sobrevivência natural que estava em jogo já, com aqueles dois homens, os dois últimos homens válidos, indo embora para longe.”

Você alude também, como em outros livros seus, à opressão da mulher, ao código machista imperante?

“Aliás, em tudo que eu escrevi, com exceção dos contos, insisto muito nessa tecla do machismo, que é um mito da sociedade repressiva, é a compreensão do homem irresponsabilizado socialmente e que passa a usurpar uma autoridade que lhe é negada em termos políticos. Ele, então, não só transmite a sua frustração, colonizando a mulher. Mas a ironia de O Delfim é a de que o macho é traído por uma mulher que o dominava completamente. Aí eu pretendo que se veja uma alusão quase freudiana. Aquela mulher que se entrega ao criado mestiço, mas tudo leva a crer que é ela quem controla a situação. Há também o crime passional, o ciúme: o marido é de tal maneira protetor do criado que este mobiliza mais as suas atenções do que a própria mulher desejaria.”

É uma síntese de uma Lady Chaterley em Portugal com traços de Otelo?

“Ora, vou até anotar isto que me parece muito bem observado!”

Há, ainda, uma crítica muito impiedosa que você faz a autocastração de uma sociedade que esse código rígido de ética machista acarreta; há uma correspondência entre a escamoteação de se designarem as colônias africanas de “províncias ultramarinas” e o tolhimento da sensibilidade em prol de um artificial código de “honra” na realidade opressivo da mulher?

“Exato e foi por isso, que escolhi o mestiço, um colonizado que passa a ser colonizado pela segunda vez, é isso mesmo: tudo faz parte de um processo consciente de se ocultar uma realidade.”

O machista irresponsável, sem escrúpulos, seria uma perpetuação, no tempo, do Primo Basílio?

“Eu vejo o machista, o Marialva, na classe da burguesia, como um indivíduo que se afirma, já que está desautorizado em outras áreas, dentro de uma sociedade opressiva, que se afirma através de uma intervenção nas camadas que ele, por sua vez, reprime. Eu quero tornar evidente então que ele não tem autoridade real, na estrutura política do seu país.”

Que ele também é uma vítima, um acuado?

“Perfeitamente, é esse machismo, essa sua caça inescrupulosa à mulher é, em termos psicológicos, uma transferência da autoridade que lhe é roubada. Aí é que aparecem os seus complexos de ser desautorizado politicamente, é uma válvula de escape para as suas próprias repressões.”

Ambos os romances, tanto O Delfim quanto O Anjo Ancorado, são portanto propositalmente inconclusos, são uma obra aberta para o leitor armar a sua própria interpretação?

“De fato, o que se passa é que são, ambos, dois indivíduos derrotados por duas situações diferentes. Em O Anjo Ancorado, o homem é aquele que vocês chamam aqui no Brasil de”esquerda festiva”, é o burguês rico, que herda uma fortuna mas, também, um passado político de esquerda muito ativo. Mas é um desencantado, um rico desencantado, está comprometido com o seu passado, ele pensa corretamente, mas, por outro lado, ele vai criando todo o seu desencantamento na própria ideologia da esquerda onde vai buscar os argumentos para se isolar cada vez mais dela. Consequentemente, é um homem de extrema lucidez de raciocínio, perdido, porém dentro dessa própria lucidez.”

A sua inação é o fracasso do seu código então?

“É isto, daí a sua frieza, a sua indiferença diante de sua frustração, da sua derrota psicológica. Ele é um homem que, como certos animais de estrutura comprovada cientificamente, se adaptou a um período da pré-história; a sua adaptação foi tão feroz, ele conseguiu, ele conseguiu se identificar de tal maneira com o seu ambiente que nunca mais pôde sair dele. É o caso da tartaruga, que não mudou desde que nasceu, como animal privilegiado, desde a era peleolítica. É, também, o caso do engenheiro em O Delfim: ele adaptou-se tanto aos códigos, à místca e à mítica dos valores paternalistas que passou a ser sempre um inadaptado, a querer sempre transferir, a criar toda uma mitologia, uma mitomania que constitui a sua própria defesa…”

A defesa de um esquizofrênico, de alguém que cria a sua própria realidade?

“De esquizofrênico e, portanto, de inadaptado à realidade que o cerca: é outro tipo de inadaptado, que vive num mundo fechado, a lagoa, que ele considera o seu sossego; no entanto, é em torno da lagoa, que para ele simboliza o mundo protegido do exterior, é em torno da lagoa que os imigrantes vão se apoderando das fábricas, vão cortando as florestas que lhe estão em volta. E no final, ele próprio, que era contra a máquina, embora seja engenheiro, acaba tendo que viver como empregado de uma fábrica que lhe destrói a propriedade. É um encadeamento sucessivo de relações contraditórias, o que se evidencia pela própria descrição, uma descrição conflitiva, para realmente se chegar à hipótese final, como nos romances policiais em que se procura descobrir quem cometeu o crime.”

Seria justo reconhecer uma continuidade histórica entre os seus romances e os de Eça de Queirós, a continuidade de uma estagnação no tempo de situações sociais que só se modificaram na aparência, mas de certa maneira O Delfim e O Anjo Ancorado não continuam A Ilustre Casa de Ramires na época atual?

“Sim, mantiveram-se os mesmos valores das classes dominantes: a mulher, a propriedade, a sociedade hierárquica.”

Depois da Revolução de 25 de Abril, há em Portugal uma tensão entre literatura e engajamento político e uma consequente rotulação rígida conforme a cartilha política que cada escritor seguir?

“Eu penso que há que dizer, preliminarmente, o seguinte: em Portugal, hoje, somos absolutamente livres para dizermos o que quisermos, não há censura de espécie nenhuma. Mas há a censura partidária, isto é: as críticas que os partidos fazem. Cada partido político quer ver em cada jornal, em cada escritor, instrumentos manipuláveis pelos partidos. Isto porque os partidos são inclementes, são como umas flores carnívoras; para eles um jornal ou um escritor independente não existem. Todos os partidos são portadores ou têm a ambição de representarem uma única verdade inquestionável. Há de fato, entre eles, alguns que são bastante mais liberais, como, por exemplo quer o Partido Socialista, quer o Comunista, em Portugal, em matéria de engajamento, são extremamente tolerantes, mas os demais são extremamente violentos quanto a essa questão. Tanto a extrema-esquerda quanto a extrema-direita são inflexíveis e consideram o escritor apenas um meio para atingirem suas metas políticas.”

Como um funcionário do Estado que por acaso está trabalhando no departamento de imprensa?

“Isso para eles seria o ideal, não é? Também, por outro lado, a literatura em Portugal apresenta o fenômeno de que só agora é que os escritores começam a escrever, depois da efervescência política da Revolução de abril. Isso porque as urgências políticas e administrativas foram mais prementes, os escritores foram convocados para dirigirem televisões, rádios, jornais. Eu mesmo fui chamado para dirigir o Diário de Lisboa, fui vereador, o Abelaira foi diretor de revista, agora está ligado à televisão, quer dizer: os escritores foram voluntariamente prestar sua colaboração. Além de vencer todos os seus traumas psicológicos de uma mudança brusca do fascismo para a liberdade, foram chamados para missões tão duras, tão exigentes, o que aconteceu foi que os escritores se sentiram incapazes daquele mínimo de solidão e de paz interior indipensáveis para escrever. Estavam absorvidos pela política. Agora é que começamos mais a tomar pé, começamos realmente a escrever. Por outro lado, é forçoso reconhecer, a necessidade de politização abriu comportas tão grandes que foi toda uma literatura política, que era fundamental e que tinha sido suprimida pelo governo fascista, que começou a aparecer. O editor, o comprador de livros não estavam interessados em literatura imediatamente após a Revolução de 25 de abril: nasceram por aí umas vinte editoras, todas a publicar livros políticos por todos os lados. Atualmente, está a se dar o inverso, simplesmente: o público cansou-se de livros políticos e está a voltar o ensaio literário, a ficção e a poesia. Antes, não, os leitores estavam interessados em problemas concretos: o que é reforma agrária, etc etc.”

E você é proscrito pelos partidos mais intolerantes?

“Bom, eles rotulam os escritores sempre…”

A priori até

A priori também! A mim, ultimamente me têm deixado em paz, mesmo porque não tenho publicado nada, mas quem publica automaticamente é considerado bom por certos partidos e péssimo por outros.”

O que leva a um certo maniqueísmo?

“Perfeitamente, e esse maniqueísmo, que é um mal, agora aparece muito menos evidente do que antes: alguns é que se agarram à imagens do passado, se alguém aderiu à ditadura ou à oposição, eram consequentemente acusados de comunistas, socialistas, oportunistas. Hoje, que há maior estabilidade democrática, os portugueses se defrontam com uma realidade que desconheciam.”

Uma realidade submersa?

“Sim, e que surge à superfície neste momento com todos os traumas, rivalidades e magmas de quem se desconhece e se revela por inteiro agora.”

Mas dentro dessa polarização de estrema-direita e extrema-esquerda, você como fica?

“Eu sou marxista, embora não pertença a nenhum partido. Voto de acordo com as minhas tendências políticas, as minhas opções. Penso que, melhor neste instante, depois de tantos anos de fascismo, o escritor, ou mehor, eu, que sempre fui engajado e sofri até perseguições durante o regime salazarista, posso escrever melhor, fazer melhor literatura, enriquecer-me interiormente se puder ter uma liberdade total. É verdade que essa liberdade não se faz sem compromissos ideológicos, mas não me interessa nenhuma prisão desse tipo. É o que acontece com a grande maioria dos escritores mais conhecidos em Portugal, aliás. Eu não deixo de ter admiração por um escritor, mesmo que ele não seja militante, desde que seja bom.”

E atualmente, o que você está escrevendo?

“Estou a escrever um romance e tenho um livro que deve sair agora, em outubro, que reúne meus artigos dispersos sobre a posição social e política do escritor, algumas exegeses literárias, escritos que não pude publicar durante aquela época e alguns artigos sobre as várias temáticas que levantam a condição democrática para o escritor, ou seja, para nós, problemas inteiramente novos.”

Durante esse intervalo em que você suspendeu as atividades literárias e foi diretor do jornal Diário de Lisboa, foi vereador, o que essa experiência somou para você?

“A experiência do jornal foi dolorosa, porque, como você sabe, o jornalismo em Portugal era muito mau e continua a sê-lo. Eu não posso nem comparar os jornalistas que lá temos com os jornalistas brasileiros. O pior jornalista que vi em minha vida é o de Portugal, com exceção de uma minoria, é claro. Na redação do Diário de Lisboa, por exemplo, havia 47 pessoas das quais só trabalhavam praticamente 10.”

Encaravam o jornalismo como um emprego público, uma sinecura?

“Estavam habituados a fazer um jornalismo burocrático com a tesoura da censura e a cola dos remendos, de modo que foram provocados pelas realidades permanentes e se desorientaram. Cansei-me, embora me tenha dado humanamente bem com todos e lá tenha deixado amigos. Consegui que o Diário de Lisboa, que já era de militância antifascista, mantivesse seu prestígio, aumentasse a tiragem, cumpri a minha tarefa. Afastei-me porque percebi que comecei a gostar do que fazia e não ser com cinquenta anos de idade que eu ia começar, agora, a minha vida de jornalista. Já a experiência da Câmara Municipal, como vereador, essa foi muito boa, porque pude, através dela, conhecer uma realidade que eu nunca pensei que houvesse. Foi quando conheci a minha cidade e a conheci sob uma perspectiva negativa. Como a dos bairros da lata, por exemplo.”

Bairros da lata, o que são?

“São os bidonvilles (favelas cobertas de zinco) que nós começamos a destruir para substitui-las por casas. E aconteceram coisas realmente comoventes. Durante as reuniões de moradores de bairros, passamos a fazê-las num grande cinema do Estado, à moda de um parlamento, de uma assembléia pública. As pessoas entravam e expunham seus problemas, podiam interromper as conversações, opinar. A princípio, foi muito difícil porque havia muita indisciplina, muita agressividade, mas pouco a pouco foi se normalizando. Foi uma experiência violenta, havia casos como o de uma chefe de uma comissão de moradores, uma mulher gorda, enorme, descalça - entrou no Palácio da Câmara Municipal, com mais vinte ou trinta moradores e começou a falar: que queriam começar imediatamente a construir; eu expliquei que havia providências a tomar com o planejamento urbano, o exame das plantas por arquitetos etc. Ela então me perguntou porque só queriam que nós lhes dêssemos o material.”Nós mesmos contruímos as casas porque nossos maridos têm amigos que trabalham na construção civil, outro têm amigos dispostos a colaborar conosco, de modo que precisamos do seguinte: o projeto aprovado rapidamente e holofotes colocados nas obras para trabalharmos de noite e só precisamos que nos deem cimento, madeira, o resto fazemos tudo sozinhos. Estamos também aqui para falar com o Sr. porque queremos que a escola tenha uma biblioteca já no dia seguinte e queremos que os Srs. Nos deem os livros.” Ainda estavam no bairro da lata, não tinham casa para morar e já estavam a pensar em uma biblioteca!”

Deve ter sido uma experiência emocionante…

“Ah, foi, sim! A ideia que eu propus não obteve votação, foi considerada bizarra, surrealista, pitoresca. O que eu pretendia era isto: mudou o regime, não é? Então, ficaram as estátuas da época dos ditadores, as estátuas de Salazar, do General Carmona, em cada chafariz havia uma placa com elogios para o Américo Tomás. O problema era que começavam a deitar abaixo as estátuas e guardavam-nas. Ora, isso ocupa espaço, é inconveniente; propus, então, na imprensa, etc. que se mantivessem as estátuas, mas, objetivamente, teriam, cada uma delas, uma lápide. Por exemplo, ao pé da estátua de Salazar, exlicava-se: Salazar, tantos anos de fascismo, tantos presos políticos, tantos crimes; achei que isso era pedagógico, a pessoa lia, se inteirava de quem ele tinha sido na história política do país. O projeto não foi para a frente mas negar que Salazar existiu é um erro, ele existiu e como! A meu ver, todo assassino merece uma estátua para educação do povo; assim, as crianças aprenderiam a história viva nas praças públicas.”

O jornalismo, você abandonou porque ameaçava também a sua criação literária?

“Aconteceu, também, que todos os dias aconteciam muitas coisas a que não estávamos habituados; qualquer coisa política que se publicasse era logo desmentida por jornais de outros partidos, era uma situação caótica e e evidente que sem paz no trabalho se sai dali esgotado, nem se quer ver mais uma caneta nem uma máquina de escrever! Eu penso que a experiência do jornalismo, para mim, provou que o jornalismo é o grande inimigo do escritor por uma razão: porque tenta, o indivíduo começa a gostar a um ponto tal, fica tão envolvido, que, pouco a pouco, termina absorvido, se entrega, o jornalismo é uma máquina maldita; conheço vários escritores, bons escritores, que são também jornalistas, que juram detestar o jornalismo mas que, quando dele se afastam, logo, daí a dois ou três meses, voltam para a imprensa. São pessoas que toda a vida usaram o jornalismo como pretexto para não fazer uma obra literária, não publicar, não escrever porque não têm tempo.”

Além disso, o jornalismo não envolve demais com os fatos cotidianos, enquanto a literatura se dedica a questões perétuas, menos fragmentárias?

“Sem dúvida, a literatura trabalha a longo prazo. Isso seja dito embora eu pense, como ficou claro nas discussões que tivemos aqui, nas universidades no Brasil, eu pense que o jornalismo, como o ensaio literário, a crítica da literatura, o artigo literário são atos de criação. Para se ser um grande crítico é preciso que se tenha, como você sabe melhor do que ninguém, além de cultura, a imaginação, pelas relações que se estabelece dentro de um texto. A crítica ou a ensaística literária, ao contrário do que se poderia supor, não se faz dedutivamente: pegam-se os dados, zás, chega-se à conclusão. Não. O bom crítico, o bom jornalista é o que tem capacidade de relacionar elementos que não estão à vista e para isso é indispensável a imaginação criadora. Dar apenas o número de páginas, quando nasceu e morreu um autro, isso é obra de ratos de bibliotecas de que as universidades estão cheias.”

Mas, talvez, você possa elucidar um ponto que me interessa atualmente: até que ponto a literatura, a linguagem, ainda são pertinentes dentro da época em que vivemos. Não sei se a cinematografia, a sociologia, a psicologia já não tomaram muito do lugar e da eficácia da literatura?

“Penso que sim, que tomaram e cada vez mais, mas isso não deixa de ser salutar, porque então aparecendo formas literárias diferentes, hoje há concorrência para a literatura. Ela tinha um campo só seu, que foi invadido: o do livro. Contar em romance aquilo que a sociologia…”

Ou, às vezes, uma reportagem jornalística

“Ou uma reportagem jornalística podem contar metodicamente, com maior economia de meios, é uma asneira. A literatura tem que contar muito mais por sugestão, sua narrativa tem que ser muito menos cronológica, muito menos científica, muito menos datada e precisa e objetiva para que a obra literária deixe um depósito qualquer que o leitor receba, uma acumulação de informações que lhe fiquem e que permitam, portanto, uma leitura interior diferente daquela que ele recebe através dos outros meios, o cinema, o jornal, etc.”

Uma interpretação subjetiva?

“Creio que sim e é o que se está a tentar: é a única salvação dos escritores. Você vê, pela experiência cabal do new journalism nos Estados Unidos: é mais um avanço rumo a espoliar a literatura de um terreno que era seu, antigamente.”

Você pensa na ficção-reportagem de um Truman Capote em A Sangue Frio?

“Pois claro, além de Norman Mailer, de Susan Sontag.”

E o realismo socialista soviético ou um Soljijitsin, como você os vê?

“Para lhe ser muito leal, vou lhe dizer uma coisa que talvez possa desagradar a muitos: eu não consigo ler até o fim O Arquipélago Gulag, de Soljinitsin, acho-o um péssimo escritor! Independentemente de ser um grandíssimo reacionário, beato, fanático de igreja, tsarista. Soljinitsin, para mim, não é, de maneira nenhuma, um contestatário, não é um caso exemplar de um indivíduo que quer a liberdade. É, ao contrário, um tipo que vem propor-nos uma outra escravidão, a de um capitalismo mais reles, que ele pretende, agarrado a um misticismo feroz e mal escrito como o diabo. Já o li em duas línguas e não se trata de dizer que está apenas mal traduzido porque li também Tchekov em francês e sei que é bom.”

Mas, e a denúncia política de um regime que o Soljinitsin faz?

“Mas a mim interessa-me só a denúncia de uma coisa quando a proposta que se faz é realmente uma proposta coerente. Se ele entende que o regime soviético é totalitário, pois muito bem, que o diga, mas o que ele propõe em substituição é a volta, em nome dos valores religiosos, de uma ordem de coisas tsarista. Já ao contrário, o Naboov, um dos melhores escritores do mundo, um príncipe também anti-soviético, tsarista, além de escrever maravilhosamente, faz uma crítica à sociedade capitalista. Ele a acusa, seu romance Lolita é uma América destruída aos bocados, é um tratado sobre isto. Ora bem, Nabokov não vem propor que se acabe com o Socialismo em nome de valores ultrareacionários. Além disso, a literatura soviética que conheço, que é pouca, não me interessa, como disse numa extensa entrevista à televisão.

Considero que a ficção, hoje, existe, pelo menos aquela que me interessa, em primeiro lugar na Alemanha Ocidental; em segundo, a dos Estados Unidos e a dos países latino-americanos. A França, a Itália etc., não dizem mais nada, pelo menos para mim, o que li dos países socialistas tampouco me interessou, francamente, deixei de lado.

Li, agora, um livro muito bom, do cubano Alejo Carpentier, que é um belo romance, El Recurso del Método. Acho que Cuba é um dos poucos países socialistas onde encontrei bons contistas, alguma coisa que me interessa; os outros, francamente, nem conheço, o pouco que li me impressionou mais pela falta de risco, de criação, de aventura de ideias que dão.”

Na literatura alemã atual você se refere ao Günter Grass, ao Heinrich Böll?

“Não, até que o Grass, apesar de interessante, me parece bastante reacionário, bastante conservador, politicamente, mas é um bom escritor. Refiro-me, principalmente, a aqueles mais avançados; por exemplo, o Hans Magnus Enzensberger, um grande escritor; um Arno Schimidt me parece um experimental espantoso, agora só os conheço em traduções, em inglês, em francês, pois não conheço uma palavra de alemão.”

Nos Estados Unidos?

“Bastava um só nome, o de um dos livros mais bonitos que já li na minha vida e que deu o filme chamado Um Estranho no Ninho. Bastava este livro de Ken Casey, e já chega; e, como disse o Norman Mailer, a Susan Sontag, o A Sangue Frio de Truman Capote - são contribuições inteiramente novas. Embora eu deva dizer que Truman Capote é um indivíduo típico daqueles que já andam por cima deste planeta, endeusou-se tanto que quando a gente se lembra do que ele escreveu antes, contos e Other Voices, Other Rooms - pois bem, o Capote perdeu aquele preciosismo lírico que o distinguia tanto, era uma das suas seduções.”

E a latino-americanos?

“Bem, eu já lhe disse antes: o maior poeta da língua portuguesa para mim é o João Cabral de Melo Neto, que acho até maior do que o Drummond; depois Guimarães Rosa; O Coronel e o Lobisomem, um grande livro; depois, gosto muito de A Hora dos Ruminantes, do J. J. Veiga; gosto da Nélida Piñon; penso que os brasileiros têm a esse respeito, um depósito grande, válido. Recentemente, li um livro brasileiro que me decepcionou: Zero, de Ignácio de Loyola Brandão, que me pareceu um mero desejo de estar up to date; não me seduziu. E fica sempre uma verdade, que é esta: os portugueses conhecem melhor a literatura brasileira do que os brasileiros a literatura portuguesa. O que não conhecem em Portugal é a qualidade de certa crítica literária brasileira, mas qual o crítico aqui que reúne seus trabalhos em livro? Não podemos andar aí a catar em jornais os artigos importantes, é preciso que sejam coligidos e publicados; nem é possível comprar os jornais em que saíram as críticas mais importantes. Essa é uma lacuna importante e que os escritores portugueses gostariam que desaparecesse, pois ignoramos tudo que seja sobre a crítica brasileira. A literatura brasileira em Portugal é lida pela elite que ainda são umas quatro mil pessoas, através da Editora Livros do Brasil que, em Portugal, quase só divulga literatura brasileira. Ultimamente apareceu aquele livro kafkiano, surrealista, muito bonito, o do Veiga, como se chama?”

A Sombra dos Reis Barbudos?

“Exatamente. Há um desequilíbrio: onde está a Editora de Portugal no Brasil?”

E atualmente, você está preparando uma peça de teatro, conforme disse antes?

“Sim, estou a fazer, só acabo essa experiência quando chegar a Portugal…”

É a sua primeira experiência no teatro?

“Não, fiz outra anteriormente, encenada lá em Portugal, durante o fascismo, mas os estudantes começaram a interessar-se muito pelo espetáculo e o governo resolveu fechá-lo imediatamente. Agora estou a fazer uma peça que é sobre a PIDE, a polícia política do fascismo. Depois do 25 de abril, tive muito contato com as atividades da extinta PIDE, tive acesso aos seus dossiers, inclusive a um dossier das minhas conversas telefônicas, tenho relatórios da PIDE sobre torturas de presos. Inclusive aconteceu comigo uma experiência terrível ao manejar esses dossiers: um dos meus melhores amigos, desde os 11 anos de idade, um indivíduo de quem fui padrinho de casamento, me denunciava à PIDE, como consta dos dossiers. No dossier consta tudo: quando ele entrou, quanto ele ganhava como informante da PIDE, a falar de mim, da minha mulher, da minha filha. Era um dos meus três melhores amigos. Quando voltar a Portugal, vamos nos reunir, isolados, o diretor, o cenógrafo, os atores e eu e discutir a peça. Ela partiu dessa experiência para mim sumamente traumatizante.”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1986) 2022. “Uma entrevista com o maior escritor português do momento .” In Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns escritores portugueses, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 6. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.