A metamorfose (resenha ao livro O Rei da Terra)
A carreira de certos escritores tem uma semelhança inquietante com a balística: ambas descrevem curvas de quedas inexoráveis. Dalton Trevisan sempre cultivou, com coerência, o mito do escritor difícil, que nunca concede entrevista, é sempre visto e nunca interrogado. Esconde-se dos importunos, detesta falar de literatura e é mais fácil vê-lo num botequim popular discutindo futebol do que lendo, digamos, Kierkegaard ou Maurice Blanchot. Era o vampiro de uma Curitiba que ele via como uma cidade provinciana e que dava o título a um de seus melhores livros. Fazendo da capital paranaense seu espaço geográfico, localizou na pequena burguesia e seus mitos um filão que explorou exaustivamente. Era o Inferno do tédio, dos amores desfeitos, das mulheres que atiçam fogo ao vestido ou bebem formicida, apaixonadas por galãs libidinosos e estroinas. Como uma tragicomédia humana, desfilam os Joões cheios de brilhantina e frases melosas, as Marias adúlteras ou megeras, os maridos carrascos. Entre os dramas individuais de paixão, sexo e remorso, inserem-se murais coletivos. É o caso da obra-prima que enfeixa a coleção Cemitério de Elefantes – os párias da cidade, os bêbados, os mendigos, que vêm morrer, como os velhos paquidermes inúteis, na pacata praça da República local. Ou de A Guerra Conjugal, quando chegou à perfeição estilística.
Infelizmente, depois que um projétil atinge sua altura máxima, em literatura como em balística, a queda é inevitável. O Rei da Terra é a parte decadente, descendente, de uma curva que já passou o ápice. Mudaria Curitiba ou mudou o autor? O gigantismo da urbanização teria sepultado os personagens ou Dalton Trevisan começou a repetir-se monotonamente? Afinal, sãos as mesmas situações, as mesmas obsessões, os mesmos ambientes, a mesma previsibilidade de narração e de desfecho que os livros anteriores já esgotaram. O Rei da Terra é da estirpe dos tarados que não se confessam à esposa “quadrada”. Escreve no maço de cigarros da vagabunda que pegou num inferninho uma dedicatória emoldurada por um coração pingando sangue. Passa por episódios grotescos (a prostituta a enfiar-lhe pastilhas contra a tosse na garganta e ele incompreendido como “o rei da noite curitibana”). Ilumina toda a mitologia lírico-libidinosa do brasileiro médio, piegas e medíocre. Mas o que fica é a sensação penosa do já lido, já sorrido, já visto em outros livros de Dalton Trevisan. Até o kitsch urbano dos galanteios do conquistador barato (“para mim o vestido mais bonito é a tua pele”) dirigidos à adúltera é fartamente conhecido.
Este O Rei da Terra não chega a provar que o Vampiro de Curitiba tenha exaurido o sangue de suas vítimas. O triste é que com ele o morcego tenha perdido o veneno e a força da mordida.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2022,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {A metamorfose (resenha ao livro O Rei da Terra)},
booktitle = {Grandes contistas brasileiros do século XX},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {10},
date = {2023},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-10/02-dalton-trevisan/04-a-metamorfose.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Veja, 1972 (s-data determinada). Aguardando revisão.}
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