Jorge de Lima, poeta maior

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1967-06-10. Aguardando revisão.

Em seu conto “Campo Geral” Guimarães Rosa descreve o momento em que o menino Miguilim vê o mundo pela primeira vez em suas dimensões reais, liberto da miopia que lhe embaçara a vista até então:

“Miguilim olhou. Nem não podia acreditar: tudo era uma claridade. Tudo novo e lindo e diferente, as coisas, as árvores, as caras das pessoas. Via os grãozinhos de areia, a pele da terra, as pedrinhas menores e, as formiguinhas passeando no chão de uma distância. E tonteava. Aqui, ali, meu Deus, tanta coisa, tudo… E Miguilim olhou para todos, com tanta força. Saiu lá fora, olhou os matos escrutos de cima do morro, aqui a casa, a cerca de jeijão-bravo e são-caetano, o céu, o curral, o quintal, os olhos redondos e od vidros altos da manhã. Olhou, mais longe, o gado pastando perto do brejo, florido de são-josés, como um algodão… Agora ele sabia…”

O mesmo momento decisivo teria a visão, para uma criança de sete anos, em Alagoas, em 1902. Jorge de Lima subira ao topo de uma montanha de onde descortina o imenso panorama do rio Mandaú, os campos verdes, os banguês, a linha férrea da Great Western, as olarias e ao longe a igreja de Nossa Senhora e os sobrado em que nascera. Como ele diria mais tarde:

“Sem qualquer exagero, posso dizer que naquele instante pela primeira vez me senti tocado pela poesia”.

Era em miniatura o panorama de sua própria poesia que ele vislumbrava então, com todos os temas filtrados através do prisma mágico da sua infância: o Nordeste e seu lirismo intrínseco; o Nordeste e a religiosidade ingenua de suas igrejas barrocas caiadas de branco: o Nordeste dos meninos vítimas da maleita, do tracoma e da subnutrição que comiam balas de terra; da estrada de ferro antiquada, ineficiente, lenta, com sua humanidade colorida, seus mendigos cheios de chagas e louvores a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Mas essa visão profética do futuro conteria também o primeiro contacto com a dor, pois o menino, futuro poeta, estava no topo da serra tão bela, de nome tão prosaico e real e que parecia ser o símbolo do ventre materno do qual o ser humano surge entre dores para a dor: a Serra da Barriga. A serra dos negros fujões, a serra dos zumbis que altivos desafiaram as tropas do governo e que preferiam, como antigos reis africanos, atirar-se no abismo a se entregar de volta ao cativeiro. Já se prenuncia indistinta a solidariedade fraterna com o negro que daria seu colorido inconfundível à poesia de Jorge de Lima. E como último momento desse encontro ele recorda a vista do galo metálico do topo da igrejinha provinciana, o símbolo de Cristo que impregnaria a sua inspiração de uma transcendência mística, tornando-o com “A Túnica Inconsutil” e “Mira Celi” o mior poeta religioso do idioma.

É a partir desse despertar prematuro aos sete anos de idade que ele enche os cadernos infantis de exercícios de caligrafia entremeados de poemas: os versos em louvor de Nossa Senhora, sua madrinha, ao preto Benedito, ao Lau contador de histórias. Cedo, aos 9 anos, já brota o amor pelo próximo que o levaria, adulto, a escolhera medicina como a atividade pela qual realizaria mais o bem, ajudaria mais os necessitados. Na adolescência de seus quinze anos ganha notoriedade em todo o País, entrando para a antologia poética com seu “Acendedor de Lampeões” que recorda um pouco o triste e lírico companheiro do Pequeno Príncipe de Saint-Exupéry, mas com a consciência social já aguda e predecessora dos poemas sociais finais: “Triste ironia atroz que o senso humano irrita/ ele que doira a noite e ilumina a cidade/ talvez não tenha luz na choupana que habita”. É curta porém essa fase em que a forma de seus versos é rigidamente parnasiana, calcada em Bilac e de tudo inadequada à sua mensagem poética. Como bem reconhecia José Lins do Rêgo, “seus alexandrinos são o cárcere em que está encerrada a sua liberdade criadora”. Logo a visão primeira – a deseja por Rimbaud de todo poeta “vidente” – romperia o dique da rima e da métrica, dos adjetivos pomposos e da insegurança de estilo. Essa torrente avassaladora que invadiu o seu estro foi o Nordeste, expresso na linguagem livre do Modernismo, que recém-libertara as expressões artísticas do Brasil, na semana da arte moderna em São Paulo. A independência intelectual que vinha um século depois da emancipalção política. Mas a poesia nordestina de Jorge de Lima não seria uma imitação do regionalismo de Mário de Andrade com a sua Paulicéia Desvairada. Viria integrar o Nordeste no terreno da poesia, como o romance já se aclimatara ali com José Lins do Rêgo, e Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos e José Americo. Pela janela do seu trem, como sobre um mural do Nordeste, desfilam as paisagens humanizadas pela mulher proibida que vem à soleira da choupana dar um adeus ao maquinista que ela nunca há de beijar, nas paradas os aleijados vêm aos vagões mendigar, entram homens sem nariz dos cartazes de elixir, meninos vestidos de feridas. Mas no interior do trem também tudo se humaniza com a segunda classe comprando bentinhos e a história do Padre Cícero, a primeira com seus coroneis e negociantes discutindo tarifas e impostos e o conferente que como entregador de cartas de Van Gogh é um sonhador, de olhos tristes e ausentes, o conferente que não exige bilhetes, bastam amabilidades e conversas para se viajar de graça. Enquanto isso passam lá fora os canaviais, as velhas fazendo renda, os banguês e as usinas: é o Brasil que desliza, célere como um ri, doce como os canaviais que margeiam o trilho.

Mas para Jorge de Lima chegara o tempo de uma definição vocacional. Em suas próprias palavras, hesita entre o sacerdócio e a medicina, fundindo-as porém num verdadeiro apostolado de bondade no exercício da sua arte de curar e minorar os males do corpo. Diante de sua casa em Alagoas e mais tarde em seu consultório na Cinelândia, no Rio, estendem-se as filas dos pobres que são atendidos de graça e recebem os remédios e as receitas aviadas sem cobrar. Quantos barracos precários nas favelas do Esqueleto e da Babilônia recebem sua visita humilde e benfazeja.

De reminiscências da pompa ritual dos negros adeptos de Xangô na Bahia e do seu contacto com a miséria que no Brasil amiúde acompanha a pele de cor negra, Jorge de Lima cria a sua série de poemas negros. O Romantismo brasileiro, imitação servil e insossa de Chateaubriand e de Fenimore Cooper, só louvaria o índio dentre as três raças que compõem o Brasil. Mais por atitude do que por qualquer auteticidade os Perís atléticos de virtudes e de proporções gregas povoariam romances artificiais, ladeados por Iracemas de lábios de mel, tão imateriais quanto a substância literária de que eram feitas. O negro tinha sido esquecido, a não ser pela vibração de indignação de Castro Alves ou pelo aristocrata Joaquim Nabuco ao pesuadir a Pincesa Isabel a assinar as leis cuja ausência aviltava a consciência brasileira. Jorge de Lima vai mais além: uma parte de seus poemas negros relata o passado de medonha injustiça, de tristeza e de crueldade usadas no tratamento dos escravos. Em estilo e ritmos inteiramente originais, cria sua “Nega Fulô” com concisão e toques de comovedora pungência. E parte de seus poemas celebra não o lado elegíaco, trágico do negro, mas, perto do júbilo de um spiritual norte-americano, exalta a fé religiosa do negro, a certeza de uma recompensa espiritual para os açoites que lhe maceram a carne e a alma. A poesia negra de Jorge de Lima será mais do que fraterna: na expressão de Gilberto Freyre será uma poesia que se identifica com o negro, que adquire a sua carne e a sua psique para melhor refletir sua angústia e seus anseios. Esse filho de família aristocrática, esse neto de avô dono de banguê e de bisavó que dançou uma valsa com o Imperador Pedro II inaugura no Brasil quase a poesia cristã dirigida ao sofrimento negro, mas uma poesia que assume as formas iradas do Cristo que chicoteou os mercadores do Templo – a sua inspiração nada tem de piegass, ao contrário é candente na sua denúncia de um materialismo cruel, contagiante no seu entusiasmo ela redenção final dos oprimidos, tangidos pela injustiça.. Além do negro, ele sem seus versos se insurge contra a miséria imemorial do Nordeste, uma das regiões mais indigentes do globo, a par do Egito, da Índia, do Congo, cancro de uma nação e deuma tradicional incuria admnistrativa. Pela primeira vez alternam-se em suas visões daquele Inferno dos “alagados” do Recife imagens de ironia ácida, de amargura e angústia mescladas à sua profunda compaixão humana.

O convívio mais íntimo com os seres humanos e a sociedade que construiram revela ao poeta a mísera condição humana – a sua fragilidade, a sua injustiça, o seu ódio estéril. São demasiado fortes as legiões de Lúcifer. Constata que a podridão se apoderou dos coraçõe empedernidos e perverteu a justiça, trasnformando em vendilhões tantos dos sacerdotes dos seus templos. Mas o título de um de seus poemas dessa fase de crise espiritual intensa é sintomático: “O Poeta vence o tempo”. “Já não vejo mais a paisagem de plantas carnívoras”, ele proclama, apaziguado. Distanciam-se de seus olhos os choques de indivíduos que se limitam a julgar a dimensão humana pelas suas aparências menores: “Pobres de espírito os que julgam a Lei pelos homens de lei,/ a Igreja pelos homens da Igreja,/ a Eternidade por um trapo de tempo…”. Submisso, ele se resigna diante do embate inútil da ambição e do egoismo; estoico, murmura como numa prece:

“…Aceito as grandes palavras eficazes

E os caminhos que Deus pôs diante de mim…

…Aceito a não importância da vida…

Mas deixai-me ver no meio dessa conturbação

O que está acima do Tempo, o que é imutável.

Senhor, estou cansado, quero descansar”.

Nem mesmo a poesia que ele declarara estar acima de tudo, lhe é permitida. Para atender ao apelo do Cristo que dissera “Deixai Pai e Mãe se queireis seguir-me”, ele confessa:

“Senhor Jesus, o século está podre;

Onde é que eu vou buscar poesia?

Devo despir-me de todos os mantos,

Os belos mantos que o mundo me deu.

Devo despir o manto mais puro…

Os gritos da terra, dos homens sofrendo

Me prendem, me puxam – me dai vossa mão”.

A entrega do poeta a Deus é total e sem desespero. É um retorno do erro inicial para a verdade imutável. A volta depois da queda. Jroge de Lima traça com Murilo Mendes as diretrizes do seu estro: restaurar a poesia em Cristo. O poema “Quero ser ensinado por Deus” sitetiza admiravelmente este divórcio do vácuo espiritual que é o mundo, afastado da verdade eterna pelas contingências do perecível, do limitado pela morte, pelo tempo e pelo espaço. Finalmente ele encontrou o caminho de volta à Casa paterna: o prisma global de Deus contém toda as cores da gama poética que o deslumbrara anteriormente. Ele consegue fundir na sua poesia final o misticismo do enamorado de Deus e a promessa de justiça simbolizada pelo Cristo Redentor dos oprimidos da terra: “Vinde os possuidores da pobreza,/ Os que não têm nome no século…/ Jesus-Cristo, Rei dos Reis/ Os vossos pés quer lavar,/ O filho do marceneiro/ Não vos pode abandonar”. Comparando o simbolismo do Cristo com a Salvação no poema intitulado “Cristo-Peixe”, ele chama todos os deserdados da terra para participar da milagrosa multiplicação dos pães: “Eu vos darei o peixe, ó famintos de todas as idades,/ ó desvalidos de todos os países,/ ó miseráveis de todas as cores e todas as raças!”

Depois dessa divisão de seu próprio corpo e de seu espírito entre os necessitados de pão e de consolo – a única grande poesia no Brasil que fundiu o tema social com o tema religioso – o poeta perde seus contornos materiais, torna-se etéreo, diáfano, no diálogo interior com Deus. A inspiração bíblica traz um sopro vigorosa à sua lira de tantas cordas e tão profunda ressonância. O Rei David e os Salmos do Velho Testamento, Marta e Maria vivificam a sua ascenção espiritual e deixam sua marca indelével na sua trajetória final. “A Túnica Inconsutil” e “Mira Celi” são os cimos dessa alta expressão mística. Os sonetos de compreensão muitas vezes difícil marcam a transição derradeira entre o seu diálogo com o mundo e o seu encontro com o Deus que incendeia a sua alma ansiosa pela união mística final. Até que os primeiros sintomas da morte se fazem sentir. A doença que o minaria caminha dia a dia pelas suas veias, peos seus músculos, pelos seus nervos. Emerge desse combate surdo a noturna, esplêndida Invenção de Orfeu, a evocação conclusiva, enigmática, profundamente subjetiva do seu universo interior recôndito. Ecoam trechos teológicos, paralelismos com o País de Vera Cruz. A grande Epopeia do Brasil, Os Lusíadas da alma brasileira? Evcação mágica do primeiro poeta que desceu aos Infernos e cuja mística abrandava as feras? Grande poesia internacionalmente, de qualquer forma, esse longo poema de dez cantos súmula de toda uma vida inspirada e nobre “noche oscura” de uma alma complexa e fascinante, de indevassável mistério derradeiro:

“A ilha ninguém achou

porque todos a sabíamos.

Mesmo nos olhos havia

uma clara geografia.

Mesmo nesse fim de mar

qualquer ilha se encontrava

mesmo sem mar e sem fim,

mesmo sem terra e sem mim.

Mesmo sem naus e sem rumos,

mesmo sem vagas e e areias,

há sempre um copo de mar

para um homem navegar.

Nem achada e nem não vista

nem descrita nem viagem,

há aventuras de partidas

porém nunca acontecidas”.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1967) 2022. “Jorge de Lima, poeta maior .” In Poetas brasileiros contemporâneos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 4. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.