Na contramão (resenha sobre o livro Contistas Portuguêses Modernos; seleção de João Alves das Neves - Editorial Tanagra)
O intercâmbio literário entre Brasil e Portugal é uma rua de mão única, até agora proibido para os mais importantes escritores portugueses contemporâneos. Enquanto em Lisboa são fartamente editados e discutidos Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, as editoras brasileiras preferem abarrotar o mercado nacional com medíocres best-sellers americanos. Agora, a Editorial Tanagra, de São Paulo, amplia sua primeira edição de Contistas Portuguêses Modernos, substitui trabalhos de vários autores e faz uma útil apresentação crítica de 28 contistas atuais de Portugal, selecionada pelo escritor e jornalista português radicado em São Paulo, João Alves das Neves.
“A História de Venâncio, Segundo-Oficial” descobre um contista finíssimo na sátira política, Joaquim Paço d’Arcos. Com traços do vigor de Gogol na descrição da burocracia russa, Paço d’Arcos relata, na época atual, a carreira humilde do funcionário público português preocupado em denunciar os ratos que devoram os documentos importantes do Estado na repartição em que trabalha. Excluído da comissão formada por medalhões que investigaria a denúncia e tomaria providências, Venâncio decai moralmente e passa no final a alimentar, nos longos serões noturnos, as ratazanas mais velhas, até sua demissão por ter cooperado com os roedores na destruição das escrituras de propriedade da rica sogra do diretor de sua seção no Ministério Público.
Aquilino Ribeiro, o maior novelista português surgido depois de Eça de Queirós, surpreende por apresentar um conto de ficção científica à maneira de Ray Bradbury: “A Revolução”. Grupos humanos arrasados por uma possível guerra atômica, remanescentes do caos, readquirem a dignidade desenterrando os tesouros culturais da humanidade, até chegarem à estátua da Vitória de Samotrácia, que simboliza o triunfo da vida sobre a bestialidade e a destruição.
Miguel Torga continua fiel a temas frequentemente rurais, no magistral “O Senhor”, que lembra os contos místicos de Tolstoi, alterna a elevação do cargo religioso com a miséria do campo ao levar um pobre cura de aldeia a intervir num parto difícil e dessa forma celebrar a participação divina no dia-a-dia dos lavradores ignorantes.
João de Araújo Correia preocupa-se com uma dimensão mais acentuadamente social do convívio humano no conto “A Eleia”. Em quatro páginas sem qualquer vocábulo supérfluo, ele apresenta como personagem principal uma corda grossa, que no interior de Portugal se chama eleia. Dela depende o destino de uma velha criada torturada por uma patroa que parou no tempo e acha que tudo tem que custar “10 réis como no tempo da Mamã”. Em “O Castigo”, de Alves Redol, o conhecimento e independência começam a surgir em um menino do campo, espécie de Miguilim português, injustamente castigado pelo mundo dos adultos, deslumbrado pelo contato com a natureza e aconchegado pelo afeto de um cachorro que enfrenta, com muita valentia, um boi bravo.
É interessante a seleção final, toda dedicada a três escritoras, jovens e inovadoras. Delas, incontestavelmente, Maria Judite de Carvalho, com “A Noiva Inconsolável”, é a mais moderna, a mais ágil, a que melhor aprendeu a lição dada por Katherine Mansfield, a esplêndida narradora de histórias curtas inglesa. Esquivando-se do envolvimento no sentimentalismo (que constitue a cilada mais perigosa para os escritores lusitanos e brasileiros), Maria Judite de Carvalho traça por trás de uma banal desilusão amorosa um quadro irônico da maledicência, da hipocrisia e da crueldade de um meio feminino constantemente alimentado por mexericos e intrigas.
Evidentemente, entre os 28 contistas, emergem sempre ilhas de talento num mar mais ou menos espesso de mediocridade. Essa antologia não poderia fugir a essa regra internacional. Entre os defeitos dos contistas portugueses destaca-se em primeiro lugar o pieguismo exemplificado por “Menina Olímpia e a Sua Criada Belarmina”, de José Régio, em que uma velha patroa arruinada e vestida ridiculamente é mantida secretamente por sua velha criada que pede esmolas na rua. Depois, a ausência de um sopro renovador que liberte a maioria dos contistas lusitanos de um enfoque literário pseudofilosófico, à maneira dos escritores de 1800, quando era moda Victor Hugo e Charles Dickens condoerem-se de seus personagens com seus leitores e exporem sua filosofia de vida em meio a figuras ocas de ficção. É o caso do conto de Fernando Namora, “Piquenique”, que adota o monólogo de uma solteirona solitária: “Todos tinham muitas coisas que dizer uns aos outros, menos eu. Sentia-me mal, leprosa, indesejada”. Finalmente, o excessivo regionalismo que caracteriza o estilo de muitas dessas histórias, tornando-as de difícil compreensão para o leitor brasileiro. Assim como é plenamente justificável que Guimrães Rosa tenha um glossário de termos brasileiros no final de seus livros editados em Portugal, seria compreensível que as edições futuras desses contistas definissem expressões do tipo “vem regar à despega”, “marrã no cortelho”, “Não é lá com os corticinhos de cores nem com os mitenes de máscaras… E a sra. Rosinha esmichou uma abelha mofina e tonta, que ainda lhe marinhou pelo braço”.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Na contramão (resenha sobre o livro Contistas Portuguêses
Modernos; seleção de João Alves das Neves - Editorial Tanagra)},
booktitle = {Redescobrindo Portugal: Perfis e depoimentos de alguns
escritores portugueses},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {6},
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url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-6/01-brasil-portugal-tentativas-de-aproximacao/00-na-contramao.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Veja, 1971-06-26. Aguardando revisão.}
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