Em qualquer lugar, o artista sofre

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1969/12/11. Aguardando revisão.

Shakespeare foi censurado por Thomas Bowdler na era vitoriana. Eliminando todas as cenas consideradas “indelicadas” ou substituindo versos inteiros, Bowdler criou um verbo na língua inglesa, to bowdlerize, que significa “mutilar um texto qualquer, alterando ou amputando seu sentido”.

Federico Garcia Lorca, o poeta do Romancero Gitano, foi fuzilado pelas tropas fascistas da Espanha acusado duplamente de ter tendências “republicanas” e ser amigo “demasiado íntimo” de toureiros e jovens atores.

Baudelaire, que praticamente inaugura a poesia moderna, com Les Fleurs du Mal, teve sua obra processada pelo Ministério da Justiça francês, tachada de “obscena e mórbida”.

James Joyce, um dos supremos inovadores do romance do século XX, viu sua obra-prima Ulysses, confiscada pela alfandega de Nova York por “intuito pornográfico e nada edificante”.

No Brasil, o livro O Casamento, de Nelson Rodrigues, foi apreendido pelo Serviço de Censura por “obscenidade”, o mesmo acontecendo com A Filosofia na Alcova, do Marquês de Sade, impugnado pelo Juizado de Menores de São Paulo. Provavelmente, no Brasil, estes livros foram retirados das mesmas bancas de livrarias que vendem fotografias de mulheres nuas em poses lascivas nas revistas do tipo Playboy e a poucos metros de cinemas que exibem filmes de orgias com prostitutas, “redimidos” pelos cinco minutos finais em que as “pecadoras” e “viciadas do sexo” têm um fim trágico.

A censura é um camaleão que muda de cores de acordo com o país e a época: numa sociedade hipócrita, assume ares de pureza assexual completa. Coloca na prisão, com trabalhos forçados, o escandaloso Oscar Wilde, mas lê às escondidas, avidamente, as centenas de encontros eróticos de um autor depravado e anônimo e delicia-se com a escabrosa Minha Vida Íntima de Frank Harris.

Num regime totalitário, a censura elimina qualquer contestação política por meio do exílio, da prisão, da execução primária.

Mas seja ela de fundo religioso, condenando à fogueira da Inquisição em Lisboa o dramaturgo da era colonial brasileira Antônio José da Silva – o Judeu – “acusado de seguir secretamente a fé dos hebreus”; de fundo moralista, zelando pelos seus pupilos, os cidadãos; ou de fundo ideológico, silenciando os que anseiam pelo diálogo e pela liberdade, a censura encontrou seu paraíso ideal na Rússia.

Cem anos depois, os mesmos métodos brutais e desumanos caracterizam a única nação da Europa que nunca conheceu um período sequer de liberdade.

Em meados do século passado, Dostoiévski, um arrebatado escritor russo, foi denunciado por um “dedo-duro” anônimo e interrogado pela polícia do Tzar. Conduzido às prisões, foi mandado depois para a Sibéria, onde contraiu doenças graves e conviveu com criminosos comuns, emergindo para a vida novamente em meados de 1860, com um livro que sacudiu a Europa inteira: Recordações da Casa dos Mortos.

Em meados deste século, Solzhenitsyn, um arrebatado escritor russo foi denunciado por um “dedo-duro” anônimo e interrogado pela polícia secreta soviética, a terrível KGB. Conduzido às prisões de Stalin, foi mandado depois para um campo de concentração na Sibéria, onde passou oito anos de sua sentença de trabalhos forçados e contraiu uma doença grave: o câncer. Em meados de 1960, sua denúncia dos campos de concentração e do regime comunista da era do Stalin abalou a União Soviética e o mundo. Um Dia na Vida de Ivan Denisovitch foi citado por Kruchev, no 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética, como prova do horror da era stalinista.

Mas Um Dia na Vida de Ivan Denisovitch, uma vez atingido o propósito utilitarista de Kruchev, não foi reimpresso na Rússia e “discretamente” os exemplares ainda existentes nas bibliotecas públicas foram “retirados para encadernação”, sumindo totalmente de circulação.

A Rússia é o único país que possui os grandes valores de sua literatura proibidos de divulgação e só conhecidos de seu povo em edições clandestinas.

É talvez a primeira vez na história que uma literatura nacional existe fora de seu país e de seu território linguístico. Desde os tempos da Inquisição na Europa o escritor não sofria uma perseguição tão intolerante por suas ideais consideradas heréticas: heresia religiosa durante a Inquisição católica em 1400, heresia política durante o regime comunista russo em 1960. São grandes nomes que completam uma lista de dezenas de artistas silenciados pelo Partido Comunista.

É o Partido, através do Sindicato de Escritores, que decide até que escritor terá direito a uma datilógrafa, a viajar ao estrangeiro, a ter uma dacha (casa de campo), a fazer traduções, a lecionar, a pronunciar conferências, a declamar em público, a aparecer na televisão ou a entrar em contato com visitantes estrangeiros, a ler jornais mesmo comunistas do estrangeiro como o italiano L’Unità ou o francês L’Humanité e a receber direitos autorais nacionais ou estrangeiros.

Os meios de combate variaram, desde os tempos de Stalin: hoje em dia a execução não é sumária, por fuzilamento, sem julgamento prévio, como nos tempos do ditador classificado de “criminoso monstruoso” por Evtuchenko.

A censura soviética tenta esconder a verdade usando táticas variadas. Afastando de cargos importantes os escritores dissidentes – Evtuchenko é desligado da revista Yunost (Juventude) depois que assina um telegrama de protesto pela invasão russa da Tchecoslováquia.

Encarcerando-os em campos de concentração distantes e com trabalhos forçados que equivalem a uma morte lenta e torturada – Yuli Daniel e sua mulher Larissa, Siniavsky, Alksandr Solzhenitsyn, Evgenia Guinzburg acusados de escritos “anti-soviéticos” têm suas obras proibidas depois de publicadas de contrabando no estrangeiro.

Internando-os em hospícios para correção ideológica – o filho do grande poeta Essenin, Essenin-Volpine e o novelista Valeryi Tarsis são internados como “loucos e débeis mentais” em Institutos para Nervosos do Estado, uma experiência apavorante que Tarsis, refugiado em Londres, relata em Enfermaria 7 (Editora Expressão e Cultura).

Mutilando inteiramente sua obra e desfigurando seu sentido – Kuznetsov empreendeu uma das fugas mais espetaculares dos últimos tempos, ao pedir ao seu acompanhante russo que o deixasse a sós uns minutos com uma prostituta em Londres. Lançando-se pela janela, Kuznetsov pediu asilo ao governo inglês e declarou que seu mais famoso livro, Babi Yar, tinha sido tão deturpado pela censura soviética que não mais era seu. Trazia os originais microfilmados, sem cortes e prometeu publicá-los em breve. (A edição brasileira, da Editora Civilização Brasileira, é justamente essa edição denunciada como mutilada pelo autor).

Impedindo a publicação de sua obra – Um dos grandes dramaturgos e romancistas russos, Mikhail Bulgakov, dirigiu-se em carta a Stalin, pedindo que seu livro O Mestre e a Margarida (Editora Nosso Tempo, no Brasil) fosse liberado.

“Prova – escreveu Bulgakov – com documentos que toda a imprensa da União Soviética e de todos os organismos que a controlam demonstraram unanimemente, com rudeza fora do comum, que minhas obras não podem existir na URSS”.

Hipócrita ou sadicamente, Stalin respondeu em tom cordial:

“Li sua carta com todo o prazer e prometo fazer tudo que estiver ao meu alcance. O senhor não será vítima de nenhuma perseguição. Ainda tenho influência. Desejo-lhe muitas felicidades”.

De fato, Stalin fez tudo o que estava ao seu alcance e sua influência era tão total que a obra de Bulgakov – conhecido como excelente autor de teatro também - nunca foi publicada sem cortes, nem mesmo décadas depois, quando Kruchev permitiu sua publicação, em tiragem limitada e com 80 cortes, que a edição brasileira (Editora Nosso Tempo) sublinha, colocando-os entre parênteses.

O Mestre e a Margarida, inspirando-se na esplêndida tragédia de Fausto, de Goethe, foi, além de uma obra-prima, uma obra assustadoramente profética. Nesta ficção passou a refletir-se estranhamente a terrível realidade das depurações stalinistas logo seguidas por Kruchev e atualmente por Brezhnev e Kossiguin: uma bela manhã o Diabo chega a Moscou. E logo legiões de escritores morrem em circunstâncias trágicas e misteriosas. Muitos são internados no hospício, por suas ideias de liberdade e democracia. Outros ateiam fogo a seus manuscritos, escorraçados por todas as editoras. Kafkianamente, a História passou a confirmar a imaginação, a realidade substituiu a ficção mais aterradora: um ditador elevado à histeria de um mito, Stalin-Satã, dizima toda oposição intelectual pelo extermínio do corpo e da obra. Como declara em dois trechos decisivos de sua novela Solzhenitsyn, ameaçado de exílio por suas obras “anti-soviéticas”:

“Aprendi, através do meu próprio exemplo, que um homem pode ultrapassar o umbral da morte antes de seu corpo estar sem vida. Seu sangue pode estar circulando ainda, mas – psicologicamente – você já passou por toda a preparação ritual para a morte e viveu a sua própria morte. E então você já encara tudo a seu redor desapaixonadamente, como se você já estivesse no túmulo” (Pavilhão de Cancerosos).

“Um grande escritor é, por assim dizer, um segundo governo. Eis a razão por que nenhum regime, em lugar algum, jamais amou seus grandes escritores – apenas os medíocres” (O Primeiro Círculo).

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Em qualquer lugar, o artista sofre .” In Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra os despotismos e os totalitarismos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 12. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.