Doris Lessing

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1987/01/24. Aguardando revisão.

Os diários de uma boa vizinha e Se os velhos pudessem antes de mais nada prejudicam gravemente a vista do leitor: a Editora Record não deixou espaço, como sempre, entre uma linha e outra, impedindo assim que os olhos repousem com um espaço em branco. Que importa se são livros de Doris Lessing, a grande escritora inglesa contemporânea? O lucro em primeiro lugar!

Estes Diários, no original inglês, já contêm em seu próprio título a brincadeira que a grande autora de Shikasta e da série Os Filhos da Violência preparara com muito humour britânico para editores e leitores: chamam-se Diaries of Jane Somers. Jane Somers? Quem é? Uma total desconhecida. Doris Lessing confessa no prefácio e em entrevistas concedidas quando se desfez o segredo e todos ficaram sabendo que Jane Somers era ela: sempre desejara escrever usando um pseudônimo. Queria que os críticos julgassem seu texto pelo seu valor intrínseco e não por terem sido da autoria de uma autora de grande renome internacional como ela. Afinal, todas as etiquetas tinham sido usadas para colocar a sua obra em escaninhos literários como se recolhem pombas num pombal, cada uma em seu nicho no pombal coletivo.

Doris Lessing? Era uma escritora que, na África colonial do Império Britânico, levantara a voz denunciando o racismo, principalmente o holandês, contra os negros, em sua Rodésia natal, hoje Zimbábue. Tratava-se de uma comunista militante. Em seguida aderira ao feminismo. E agora o misticismo misturado com a luta maniqueísta entre o Bem e o Mal em escala planetária! O “golpe de mestre” deu certo, porém ninguém, absolutamente ninguém, descobriu que por trás da “estreante” Jane Somers estava a magnífica militante em tantas áreas ao mesmo tempo. Alguns agentes literários e editores mais sensíveis “farejaram” um clima inegavelmente lessiano: ela teria “ajudado” a novata em seus manuscritos?

Sinceramente, o disfarce não é perfeito. Não que se descubra imediatamente, por detrás da máscara, a combativa autora, franco-atiradora em tantas trincheiras ao mesmo tempo a destruir falsos mitos de “superioridade” racial dos brancos sobre as demais raças, de colonialismo como “o fardo imposto pela Civilização com C maiúsculo ao homem branco”, irmão inteligente e mestre das populações de pigmentação mais escura. Marginalizada pelas pessoas de “bem” à medida que publicava seus livros, Doris Lessing tentou vencer um desafio quase impossível. Tentou criar uma autora prática, eficiente, enérgica, conservadora, um pouco sentimental e dificilmente apta a compreender as dificuldades e fraquezas alheias, embora sempre dotada de bondade. E ainda por cima uma escritura de cunho romântico, redatora de uma revista de alta moda, preocupada apenas com desfiles internacionais de couturiers famosos e obcecada com sua aparência impecável, sempre.

A famosa ironia devastadora de Doris Lessing, livre para exprimir-se, faz desmoronar as metas meramente gananciosas dos editores, na sua maioria. Ela conta que eles falam, a sério, sobre “o tempo de sobrevivência de um livro nas prateleiras” de uma livraria como um quitandeiro falaria do tempo que seus legumes e vegetais aguentem ficar sem se estragar, numa cesta à espera de compradores, antes de serem jogados fora… Algumas observações finais dessa fina prosa que é Doris Lessing completam sua visão realista e satírica do turbilhão do mercado editorial, um pouco aparentado com a teatralidade de um show de televisão rápido e superficial: a publicidade é essencial, seja qual for o valor do autor. Ela chega quase a sugerir que, hoje em dia, Shakespeare teria que aparecer no Fantástico da TV Globo para promover seu Hamlet (a tragédia da indecisão), o Otelo (um drama de traição, ciúme e inocência!) ou O Rei Lear (como a ingratidão de suas filhas é vingada pela filha boa!)…

Ele reconhece que lançar um livro se tornou um, por que não dizer a palavra?, um negócio e desse business faz parte uma “promoção” maciça, entrevistas a jornais, revistas, à tevê. Mas como “promover” Jane Somers se dela não havia fotografias, nem uma história de sua vida, nenhuma “personalidade” sobre a qual os redatores profissionais pudessem criar uma novelista “mais empolgante do que Dallas? Por fim, há a supressão de liberdade: a extrema esquerda e a extrema direita exigem que tal livro seja suprimido, banido, jamais seja publicado: pobre Liberdade, quantos crimes se cometem em teu nome!… E por último: muitos críticos, acomodados, não querem apenas que cada autor ou autora escreva sempre o mesmo livro, para lhes dar menos trabalho com o choque de um estilo e temas novos?

Seria inútil dizer que Doris Lessing/Jane Somers passaram com louvor como “estreantes”. Ou não tanto “estreantes” assim. Quem já leu os livros anteriores de Doris Lessing se recorda de que ela repetidamente lamenta, principalmente no 1º volume de Shikasta, que a pomposa História da Civilização não tenha nunca reunido o depoimento das pessoas humildes, das empregadas domésticas, do proletariado, por exemplo, em sua marcha da humanidade do tacape até o míssil atômico. Ela, obliquamente, consegue inserir o testemunho de pessoas humildes, de pessoas exploradas pelas classes dominantes e por suas próprias famílias nestes dois livros estranhos, mas que, aparentemente, não poderia ter sido escritos por uma “estreante”, simplesmente porque uma jovem autora dificilmente teria uma visão tão profunda de um problema que Doris Lessing aborda, amplamente, pela primeira vez: o da velhice. Aqui ela mescla os dois temas: o relato de uma empregada quase analfabeta e que é, simultaneamente, uma velha desamparada de mais de 90 anos de idade, em seu ambiente paupérrimo e caótico, em que sobrevive graças à sua própria vitalidade. Claro, Jane Somers evita a armadilha da mera luta de classes: também as velhinhas que moram em casas de luxo, com sua família, ou em asilos luxuosos, são tão fracas e dependentes dos demais quanto as mais abandonada recipiente da caridade alheia ou estatal.

A primeira parte, Os Diários de uma Boa Vizinha, parece nitidamente melhor do que a segunda, quando a soap opera, o kitsch piegas torna a história de amor da mulher em plena crise da meia-idade lacrimosa e até pouco crível e levemente enfadonha – novidade absoluta em se tratando de Doris Lessing!

Já as descrições da degenerescência total, do abandono infra-humano a que está relegada a anciã Maudie Fowler evocam, não mais o realismo às vezes bastante seco, prosaico mesmo, de Doris Lessing e o ultrapassam, chegando a um naturalismo de imundície e podridão que nada ficam a dever às cenas mais repugnantes de Zola. Seria injusto para com o leitor revelar o grau de mudança humana, espiritual que se processa lentamente no espírito da frívola narradora e da sua “protegida” no decurso desta verdadeira luta afetiva entre duas pessoas que pouco a pouco aprendem, uma com a outra, realidades para as quais seus olhos tinham estado fechados a vida inteira, até seu encontro.

A plural autora inglesa não se limita a esse diálogo, é óbvio. Refere-se a temas atuais, como ao desemprego altíssimo na Inglaterra, à decadência de suas indústrias, à desorientação “punk/apática” da nova geração, incapaz de dialogar sequer com os “caretas” mais velhos. Narra as ascensões e quedas do mundo predominantemente feminino que redige e dirige a revista chic para mulheres e seus dramas de adultério, lesbianismo, fracasso individual e “vitória” amarga na carreira. Sem esquecer as farpas dirigidas à família bem-pensante, antiartística, anti-liberdade e de um conservadorismo que nem reacionário é, de tão conservado em formol que se mantém…

Talvez os livros ganhassem em ritmo se a “estreante” não se repetisse tanto e emagrecesse substancialmente esses dois volumes, podando-os de páginas quase que rigorosamente idênticas a páginas anteriores. Ou terá sido um ingênuo despistamento da autora?

Alguns dos temas pelos quais Doris Lessing sempre se bateu, como a afirmação da individualidade da mulher, o que implica ela sair debaixo da tirania aparentemente doce e protetora do macho, afloram enfaticamente. Afinal, o dilema das mulheres não se reduz ao binômio: sucesso na carreira, mas sublinhado pela solidão e aceitação de uma situação infra-humana, que massacra seus talentos, mas em troca de “um lar”, um “homem” (embora ele tenha amantes ficas) e montes de filhos mimadíssimos? Foi essa a proposição do movimento feminista de “liberar” a mulher? Que terceira solução haveria para a escolha entre “a rainha do lar”, com detergentes, fraldas sujas, menus e um pouco de ócio e a solidão de uma “career woman” tão boa ou melhor que seus concorrentes homens?

Se Doris Lessing conhecesse a esmagadora maioria das mulheres de classe média brasileira, acomodadas dentro de seu casulo de cabeleireiros, manicures, pedicures, levas as crianças para a escola e trazê-las de volta à casa, sem uma efetiva participação política e social no dia a dia brasileiro, ela teria um de seus sorrisos sutilmente sardônicos: o Brasil ainda está no estágio do harém consentido. A escolha entre a realização solitária e o aconchego muitas vezes suicida do “lar, doce lar” como única meta final nem existe entre nós.

Por remexer, indiretamente, neste vespeiro por enquanto quieto, além de outros motivos excelentes, estes dois livros deliciosamente apócrifos mexem ou deveriam mexer com a consciência, o brio e o dolce far niente de milhares de nossas integrantes empobrecidas proletarizadas e alienadas classes médias, salvo as já mencionadas exceções.

O problema do envelhecimento sem dignidade da definição dos rumos próprios da vida de cada mulher na sociedade contemporânea, da juventude desnorteada e desprovida de qualquer autoridade ou rumo, a crise da meia-idade feminina, a recusa inicial em verificar a existência da realidade fora dos desfiles de modas e de um mundo esteticamente perfeito, longe das tragédias humanas que nos cercam: constituem uma Doris Lessing nova, mesmo sob o sutil disfarce de uma autora que faz seu début literário como Jane Somers?

Evidentemente que não. Mas diante das mulheres, prioritariamente, em Londres, no Brasil ou em Madagáscar, Doris Lessing coloca um espelho cheio de interrogações urgentes e pertinentes. É só aferir se o desafio toca cada uma das integrantes do mundo feminino ou não: uma tarefa árdua, mas gratificante que merece ser enfrentada sem escapatórias de preconceitos sexistas a priori. Quem se habilita?

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Doris Lessing .” In As três grandes damas da literatura europeia: Virginia Woolf, Marguerite Yourcenar e Doris Lessing, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 7. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.