Especificidade da literatura brasileira

Autor

Leo Gilson Ribeiro

A literatura brasileira tem uma semelhança teológica com as discussões sobre Deus: é descrita melhor pelos atributos que não tem. Assim, ela não se distingue pela fantasia deslumbrante da literatura inglesa. Não é de uma pesquisa metafísica e psicológica da conduta e da condição humana como a literatura russa. Não apela para o racionalismo rigoroso de grande parte da literatura francesa. Então, o que a diferencia das demais? Em parte, a literatura brasileira é a Cinderela das literaturas, relegada artificialmente a um plano inferior por irmãs mais poderosas, as divulgadas literaturas hispano-americanas.

Sem dúvida, uma literatura não cabe numa definição, por mais ampla e abrangente que esta seja. Por isso, é indispensável situar a literatura do Brasil no seu espaço geográfico e no seu tempo histórico. O que significa em primeiro lugar: é preciso compreender que a literatura brasileira só adquire feições próprias mais acentuadas no século XX, quando se torna discernível das suas literaturas irmãs. Hoje, ela não tem mais laços que a acorrentam a modelos europeus. A influência marcante da França nos românticos, parnasianos e simbolistas passou. Tampouco imitamos, perceptivelmente, pelo menos, Faulkner, John Barth, Truman Capote, Norman Mailer, Joyce Carol Oates e outros grandes escritores norte-americanos. Nem o tão decantado “realismo mágico” de um Gabriel Garcia Marquez, entre outros, é objeto de uma serviçal cópia entre nós.

Para apreender melhor as características que tornam a literatura brasileira inconfundível, irrepetível e que exemplificam a sua especificidade precisamos levar em conta vários fatores:

1º) o Brasil é, com a possível exceção do Haiti, o único país das Américas que recebeu Gutenberg e a universidade tardíssimo. A Imprensa Régia só chegou ao Brasil em 1808, na bagagem heterogênea de Dom João VI, Rei de Portugal, que fugia de Lisboa em debandada atabalhoada, escapando às tropas do General Junot, que invadiam Portugal, aliado tradicional da Inglaterra contra Napoleão. Em segundo lugar: embora algumas escolas isoladas de ensino superior existissem antes, só na década de 1930 – há quase 50 anos, portanto – é que as universidades passaram a funcionar, ainda que precariamente, entre nós, surgidas durante a ditadura de Getúlio Vargas, o que já deformou seu espírito desde o início. Enquanto isso, a Universidade de San Marco em Lima é de 1551 e a de Harvard foi fundada em 1620.

2º) Por termos sido ferreamente colonizados pela Coroa portuguesa, nossa autonomia literária, paradoxalmente, derivou-se de modelos estrangeiros: José de Alencar exalta o índio brasileiro, alçado às alturas de virtudes heroicas de Prometeus, Hércules e Apolos da Grécia Antiga, inspirando-se na retórica do movimento indianista de Chateaubriand, de Fenimore Cooper. Machado de Assis anota minuciosamente suas edições de Sterne, para erigir suas obras-primas de romance psicológico docemente niilista, se for possível associar tais palavras, tão contrastantes. Um poeta negro, Cruz e Souza, canta obsessivamente virgens não brancas, mas níveas, alvíssimas, em versos simbolistas decalcados de exemplos vindos de Paris. Castro Alves almeja veementemente a libertação dos escravos inspirando-se em Victor Hugo e seu ódio romântico da tirania. Olavo Bilac traz ao parnasianismo de um Herédia, um Leconte de Lisle, uma sensualidade tropical e uma cintilação mestiça inéditas.

3º) Se considerarmos o Movimento Modernista de 1922 como uma hipótese – a da conscientização definitiva da necessidade de o Brasil voltar as costas para a Europa e interiorizar a criação brasileira, integrando-a em sua paisagem natural e humana – será possível então revelar, pouco a pouco, as verdadeiras características que constituem a literatura especificamente brasileira. Quais seriam elas?

Fiel à herança psíquica de Portugal, que predominou sobre as contribuições de todas as outras nacionalidades e raças que aqui vieram se fixar, o artista brasileiro é, fundamentalmente, no plano da literatura, um poeta. É verdade que a nossa poesia percorre uma escala vasta, como a de qualquer país: temos os nossos Evtuchenkos sentimentais e oportunistas assim como temos os nossos Pasternacks. No entanto, é uma constante da literatura brasileira que ela começa com os versos do Padre Anchieta e continua por meio da poesia atual, múltipla. Desde os tempos coloniais, desde a independência até hoje, o sentimento nativista que se esboçara com Gonçalves Dias, o romantismo próximo de Eichendorff ou Morike, de Casimiro de Abreu, a poesia social de um sopro épico que se antecipa a Whitman com Castro Alves – todas as fases da literatura brasileira estão profundamente enraizadas na poesia. A poesia é tão popular, em suas formas mais kitsch, que um poeta que compara os seios da amada com um morango, J. G. de Araújo Jorge, amalgamou esse erotismo culinário com um vago socialismo e conseguiu suficientes votos para eleger-se deputado federal.

Mas, no plano sério, o Brasil desempenha o mesmo papel que Portugal desempenha ao lado da Espanha: os de língua portuguesa são superiores em poesia, sempre, e são, quase sempre, superados pelos de língua espanhola no romance e no ensaio crítico. Mesmo o maior escritor de contos e romances do Brasil de todos os tempos, Guimarães Rosa, é eminentemente um poeta que, como Baudelaire, escreveu também em prosa. Grande Sertão: Veredas contém milhares de versos com métrica rigorosa, engastados no fluxo maior da sua narrativa plural metafísica estilisticamente fascinante, filosoficamente profunda. Ressalta-se, porém, que o Brasil tem a revelar ao mundo e compartilhar com ele através de boas traduções e edições dignas o maior gênio da poesia ocidental vivo: Carlos Drummond de Andrade. O poeta mineiro começa a ser traduzido, nos Estados Unidos, por uma grande poetisa, como Elizabeth Bishop, que morou no Brasil longos anos, e lá se agitam os meios intelectuais com o descobrimento gradual da grandeza múltipla de Carlos Drummond de Andrade. Porque Drummond, como o chamamos no Brasil, é um poeta social e político, em A Rosa do Povo, da sua fase já ultrapassada, de aproximação de premissas marxistas no setor sociopolítico, mas um poeta que nada tem a ver com o horrendo “realismo socialista” soviético. Ao contrário: a sua poesia engagée é vibrante, vivíssima, percorrida por uma cintilação rara de convicção democrática, de fraternidade humana e de um estilo que não faz concessões ao panfletarismo da propaganda política em busca de metas que nada têm a ver com a totalidade que é a visão filosófica do homem, nem procura restringi-la ao homo politicus simplesmente. Carlos Drummond de Andrade, além de um estilo insuperável na língua portuguesa, que o equipara claramente aos supremos poetas do idioma – Camões e Fernando Pessoa –, é um indagador metafísico que se interroga sobre os temas eternos da morte, da desilusão amorosa, da dor, da melancolia, da alegria, do envelhecimento, da comunhão com a natureza ou com o próximo. É um poeta em eterna renovação, adotando técnicas do estilo de vanguarda ao lado de uma atitude clássica com relação à linguagem. A sua obra é tão vasta e tão rica que constitui um De rerum naturae de Lucrécio em termos modernos e menos pessimistas, embora imbuídos da mesma noção trágica do efêmero que se oculta por detrás da beleza. Neste ponto ele se aparente mais com um Hopkins na sua celebração do Belo e de Shakespeare no seu ceticismo de não ter encontrado um Deus capaz de apaziguar a sua inquietação plural. Finalmente, acrescentemos que João Cabral de Melo Neto continua, com majestade intrínseca, a sucessão de grandes poetas do Brasil, da categoria de Jorge de Lima, com sua poesia que mescla a Andaluzia e o Nordeste, a arquitetura e a miséria social, os dados visuais com uma filosofia possivelmente cristã de reconciliação final com as vicissitudes próprias da vida.

Dentro desse caráter específico da literatura brasileira, o aporte trazido pelas escritoras tem se revelado decisivo. Hilda Hilst, na prosa e na poesia, Cecília Meireles e Henriqueta Lisboa na poesia, são valores já estabelecidos como definitivos, ao lado da maior contista das Américas, Clarice Lispector, e de valores novos que se confirmam na poesia e na prosa como Marly de Oliveira, Eugênia Sereno e outras. É preciso ressaltar, no entanto, que a contribuição das mulheres à dramaturgia, com Consuelo de Castro e Leilah Assunção, só é tolhida em sua plena repercussão pela ação coibidora da Censura, responsável pela proibição de quase 500 textos da dramaturgia brasileira, proibidos de serem levados à cena ou sequer publicados. A mulher vem assumindo uma posição de liderança igualmente na crítica literária e no ensaio, com Nelly Novaes Coelho, Dirce Côrtes Riedel, Lúcia Miguel Pereira, Maria Luiza Ramos e outras. Além desses valores brotam outros, novíssimos ou se afirmam, mais amadurecidos, os nomes de uma Lygia Fagundes Telles, que em seus momentos mais destilados se assemelha à delicada, miniaturesca, quase oriental melancolia de uma Carson Mc Cullers, ou de uma Nélida Piñon, vigorosa romancista com Fundador e excelente contista com Tempo das Frutas, ambas escritoras tipicamente in progress, aproximando-se de sua realização plena em futuro já previsível.

Se a mulher, como elemento vítima, ergue a sua voz e fala, outros segmentos minoritários e oprimidos da sociedade brasileira igualmente começam a se fazer ouvir. Se não temos uma literatura judaica comparável nem de longe aos magníficos escritores judeus norte-americanos – Saul Bellow, Bernard Malamud, Isaac Bashevis Singer etc. – temos uma importante literatura social que se espraia pelo teatro, pela música popular, pelo conto e pelo verso. Com a ruptura dos gêneros e consequentemente interpenetração de formas de literatura, um dos nossos maiores poetas sociais é um compositor letrista, Chico Buarque de Holanda, objeto de reveladores estudos linguísticos da sua metalinguagem. Assim como Aldir Blanc, Gilberto Gil, Caetano Veloso e outros são, legitimamente, poetas que fazem versos para suas músicas, unindo a sutileza das melodias dos Lieder de Schumann a uma veemência verbal digna de um Bob Dylan ou de um John Lenon. No conto João Antônio e seu Leão-de-chácara e Nélson Rodrigues, Mauro Rasi, Plínio Marcos e José Vicente subvertem o teatro, transformando-o num instrumento de reflexão política, social e humana, sem o maniqueísmo de uma Esquerda estúpida e castradora da criação tanto quando a Censura.

Já um escritor francês sintetizou numa frase o que, na sua opinião, era o espírito da criação literária francesa: “ce qui n’est pas clair, n’est pas Français”. Não há possibilidade de uma síntese semelhante para a literatura brasileira. Ela é arraigadamente crítica, às vezes até sarcástica, como o nosso Swift da era colonial, Gregório de Matos Guerra, ou o nosso ácido Galdós mulato, Lima Barreto. É uma literatura sempre intensamente poética, mesmo na prosa ou na dramaturgia. E está na vanguarda da renovação estilística com Mário de Andrade e Oswald de Andrade e suas obras máximas, Macunaíma, Serafim Ponte Grande e Memórias sentimentais de João Miramar; com Guimarães Rosa e Hilda Hilst ou o romance renovador de Osman Lins, Nove, Novena, ou os esplêndidos autores que na falta de um termo melhor chamaremos de regionalistas, Ariano Suassuna e seu romance delicioso, A Pedra do Reino e O Coronel e o Lobisomem de João Cândido de Carvalho. Os contos soturnos, reminiscentes de Kafka, de J. J. Veiga, como A Máquina Extraviada, A hora dos Ruminantes e Sombras de Reis Barbudos inserem o Brasil na problemática da liberdade em países desprovidos desse clima, nas pegadas de um George Orwell ou de um Arthur Koestler.

Permanece, porém, o desafio mortal para a literatura, não só brasileira e não só atual: a tradução. A literatura brasileira só poderá tornar-se um patrimônio dos povos que não falam o português se contar com aliados indispensáveis: tradutores dignos. Guimarães Rosa, o nosso Joyce, é típico dos dois extremos que se pode atingir a tradução: a péssima ou a sublime. Guimarães Rosa foi tão absurda e levianamente deformado na tradução norte-americana cometida pela criminosa Harriet de Onis que na Universidade do Texas, o Departamento de Estudos Luso-Brasileiros mantém um seminário atual sobre os erros de tradução de seu livro Grande Sertão: Veredas, pervertido pela inescrupulosidade dessa tradutora, que o transformou num vulgar bang-bang de um Farwest localizado em Mato Grosso, retirando-lhe o esplendor estilístico, a transcendência filosófica, a visão mística, os tesouros dos neologismos e arcaísmos ou seja: roubou-lhe a alma. Eu cheguei a pedir a um professor norte-americano que esteve aqui no Brasil, dando um curso sobre “A Violência na Literatura Norte-Americana” que incluísse por favor a tradução de Mrs. De Onis em seu currículo das violências que se perpetram impunemente aos autores quando entregues a tradutores ineptos. Mas, do lado positivo, Guimarães Rosa teve a fortuna singular de encontrar um tradutor perfeito, que dedicou mais de dez anos a essa tarefa árdua, a de passar para o italiano seus contos enfeixados em Corpo de Baile e sua narrativa longa Grande Sertão: Veredas. Edoardo Bizzarri, ex-adido cultural da Itália em São Paulo, deu este supremo presente a seu país de origem que veio enriquecer com a sua presença, transformando suas traduções de Guimarães Rosa na ampliação dos tesouros literários de que dispõe a língua italiana. Como já disse Isaac Beshevis Singer: “A tradução é o maior obstáculo que existe para o conhecimento mundial da literatura”. Portanto, seria lícito pedir aos editores estrangeiros aqui reunidos apenas isto: não permitam que as traduções de autores brasileiros que serão editados por suas editoras sejam entregues à primeira pessoa que estiver à mão e declarar que ouviu falar do Brasil, capital Buenos Aires, onde se fala espanhol e as cobras disputam as ruas com os índios, com Pelé e o Carnaval. Se já se disse que “política é importante demais para ficar nas mãos dos políticos” isso vale também para a tradução, que não pode ficar entregue à inépcia e à imoralidade de maus tradutores, pois se trata do patrimônio planetário da humanidade. Para se aquilatar a importância decisiva da tradução pense-se no que seria do movimento romântico alemão sem a tradução de Shakespeare feita por Schlegel e Tieck? O que seria da poesia renascentista inglesa sem a importação das formas poéticas italianas? O que seria de Katherine Mansfield sem a tradução de Tchekhov? E de Baudelaire sem Poe? O que saberíamos da literatura russa, que Thomas Mann chamava de die heilige Literatur, a literatura sagrada, sem as traduções alemãs, inglesas e francesas de Dostoiévski, Tchekhov, Tolstoi, Gogol, Turgueniev, Andreyev etc. etc.? Como dizia o príncipe Hamlet ao querer captar o rei Claudius, representando o assassínio de seu pai por meio de atores: the play’s the thing, nós diríamos que a tradução é tudo: é a arma, é o instrumento, é a fonte de enriquecimento espiritual permanente para os menos utilitaristas. As traduções de um Soljenitsin, de um Mandelstam nos revelam o horror do Estado totalitário da União Soviética e nos obrigam – a nós e a Santiago Carrillo – a uma revisão de conceitos políticos dentro da concepção mais totalizante da visão humana em escala planetária. Hoje que o mundo é um só, o corpo das nações não está mais desmembrado, a tradução pode significar literalmente a morte ou a revivência de um grande autor em outro idioma. Ruim, a tradução esteriliza e mata, é o genocídio cultural, é o Dachau e a Hiroshima da letra e do espírito. Boa e fiel é como toda grande obra de arte intrinsecamente: liberadora das limitações artificiais impostas pelas fronteiras, pelos regimes políticos, pela torre de Babel das nações umas contra as outras. A tradução pode transplantar um coração nacional para um organismo universal mais vasto e mantê-lo mais rico e mais vivo por mais tempo, enquanto o verbo for o princípio e o fim da criação.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. Especificidade da literatura brasileira . Edited by Fernando Rey Puente. Conferências, ensaios e alguns artigos especiais. Vol. 9. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.