Paulo Colina - o poeta das cinzas

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Revista Goodyear, n.47, 1988. Aguardando revisão.

“Que Abolição temos que comemorar? A Princesa Isabel, talvez por ingenuidade, cedeu à pressão dos grandes latifundiários. Daí por diante, enquanto milhões de europeus chegavam para substituir o trabalho escravo no negro, o Brasil ‘branqueava’ sua população. O negro da senzala foi atirado à favela, à marginalidade, à fome, ao biscate, à ignorância.”

Incisivo, o poeta paulista Paulo Colina, 38 anos, é um dos artistas brasileiros que mais se destacou na célebre Antologia dos Poetas Negros Contemporâneos organizada por Oswaldo de Camargo, o incansável animador e memória dos movimentos culturais negros do Brasil. A poesia de Paulo Colina (A Noite não Pede Licença, Entre Dentes, Plano de Voo e Fogo Cruzado) não é um muro de lamentações que abandona o presente e vai se colocar no passado da chibata, do navio negreiro, do pelourinho. Melancólica meditação sobre a perversão do mundo e do nosso pobre sky line urbano, a cultivar o lucro e o logro à custa do próximo, ela é cosmopolita e não banal ou sentimentalóide:

“infinda gravidez de ausência 

no ventre da cidade”

Decifra na desolação das massas penduradas do dividendo, atadas a empregos reles onde a fraude incha e faz fortunas, um tom de blues resignado a meditar sobre o infortúnio da condição humana e capta:

“o som arrastado dum carro de bois 

nos ombros largos da noite”

Não é um artista preso ao passado da senzala, a modernidade rasga seus versos como nota dominante:

“E o jato que leva e traz o dia seguinte 

rompendo a barreira do nosso sonho”

e soa uma originalidade austera, concisa na decifração da realidade:

“o limo do tempo apenas 

conserva; 

o fogo campeia a memória”

até uma dubiedade de dor e voo (“pena”) a unir a tristeza e a saudade da liberdade:

“Abrir as mãos 

e soprar a pena 

sentimento do mundo.”

Lúcido o poeta resume em si as nuances de uma sensibilidade de seus anseios e esperanças:

“Sou todo cacos de vidro.”

O centenário que este ano se comemora não é propriamente o da Abolição, pois o negro não teria como festejar a abolição do preconceito nem dar vivas à sua habitual orfandade neste país de um mentiroso clima de “democracia racial”. A discriminação é sutil, ardilosa, diária, enrosca-se em pretextos fúteis, absurdos mas está sempre presente. A recusa polida de uma moça em querer dançar “com uma pessoa de cor”, os empregos que milagrosamente “já foram preenchidos” assim que um negro se candidata a eles, o passageiro de metrô ou de ônibus que pede licença e se levanta quando vem sentar-se ao seu lado uma pessoa “diferente”. Quando ainda era rapaz em Pirituba, zona noroeste de São Paulo, Paulo Oliveira – depois Colina, em homenagem à cidade onde nasceu – jogava partidas de futebol, “peladas, num time misto de brancos, negros, mulatos e até um nissei”.

Hoje sorri: “Foi aos poucos que comecei a compreender certos silêncios, certos afastamentos mudos e me dei conta de que a pobre e solidária Pirituba da minha infância não era o”mundo, vasto mundo” de que fala Carlos Drummond de Andrade. Mas o que tinha de vergonhosa a minha cor de pele? Fazia diferença se meu cabelo e minhas feições eram diferentes daqueles meninos filhos de italianos, de húngaros, de portugueses, que todo dia brincavam comigo de bola de gude, de mocinho e bandido, de guerra?”

Começou para ele um difícil aprendizado: o do ABC do racismo. Um preconceito velado, disfarçado. “Hipócrita, usemos logo a palavra certa”, Colina acrescenta. “Eu nunca tinha notado que era de repente um marginal contra a minha vontade e contra o meu conhecimento. Da noite para o dia eu passara a ser um negro jovem ‘atrevido’, metido a falar certo, rodeado de livros. Eu só podia, para muitas pessoas, ser malandro, quem sabe ladrão ou preguiçoso ou, com a fama que os negros têm, um garanhão perigoso, em busca de moças brancas. Minha mãe, a vida inteira cozinheira de patrões brancos, que moravam em mansões dos bairros nobres como Morumbi ou os Jardins, me dizia sempre que diante de Deus todos têm a mesma cor. E rezava muito. Meu pai, motorista particular, não era homem de muitas palavras. Mesmo assim, atribuía o preconceito à ‘ignorância das pessoas’. Mas nem minha mãe nem meu pai sabiam explicar aquela atitude contra mim: o que eu fizera de mal? Eu me achava ‘normal’ como os outros mas me ensinaram que não, eu não era não. Nós tínhamos vindo de Colina, uma cidadezinha do interior do Estado, para São Paulo, metrópole, atraídos pelo sonho de uma vida melhor, de empregos bem pagos. Nossa vida tinha altos e baixos. Mais baixos, aliás. Sempre que possível, mandávamos buscar avós, tios, primos, a parentada toda. Mas a situação estava piorando, o dinheiro cada vez mais curto. Eu ficava deslumbrado com os anúncios luminosos do centro da cidade, com as livrarias de vitrinas atulhadas de livros coloridos. A realidade era que eu tinha que poupar ao máximo meu único par de sapatos; havia sempre tantas contas pra pagar! Com tudo aumentando de preço na feira e no armazém, lápis, papel e livro viraram luxo para mim.”

Mesmo depois que Paulo Colina começou a trabalhar, primeiro como office-boy, depois na firma de produção de alimentos onde sua mãe se empregara como cozinheira e lhe arranjara uma colocação, as coisas não melhoraram. Havia um filho de portugueses que o detestava e fazia tudo para tornar sua vida no escritório um inferno. “Ele não gostava de pretos”, era a explicação que não explicava nada. “Colegas da minha raça procuravam me animar, me aconselhando a ‘não ligar para isso’ ou dizendo que ‘a gente se acostuma, depois nem liga mais’. Quando chegava o domingo, havia trégua naquela guerra sem pé nem cabeça, eu pegava um livro de Lima Barreto que comprara num sebo – sempre fui rato de livraria de segunda mão, fuçava tudo que podia – e saía para olhar o tio Tietê. Ia ler ou reler aquele negro que para mim fora um deslumbramento. Antes do Lima Barreto eu não imaginava que existiam escritores negros a não ser o Cruz e Souza. E logo tratei de aprender inglês, quem sabia inglês conseguia empregos bem remunerados e podia ler tantos autores também..”

Poetas, romancistas, ensaístas começaram, em edições de bolso, a enfileirar-se em sua estante no quarto. “Muitas vezes eu preferia passar o almoço com um copo de leite e um sanduíche que levava de casa pra poder comprar livros de Leroy Jones, Richard Wright e hoje Toni Morrison, essa analista profunda e sutil do mundo negro em Song of Solomon, por exemplo. Então, eu raciocinava triunfante, os negros não eram só bestas de carga, a se curvar e dizer servilmente ‘sim, sinhô’ para os brancos, nem eram apenas craques de futebol ou sambistas. Consciente da minha falta de preparo, dos meus erros e tropeções, comecei a garatujar uns versos. Hoje reconheço que eram horríveis! Mas eu queria escrever, expressar o que sentia. Além de poeta eu queria ser dramaturgo, criar peças para o Teatro do Negro, escrever romances sobre o que o Lima Barreto chamava de ‘negrice’, muito, muito tempo antes de se falar da ‘Négritude’ com os poetas africanos e antilhanos.”

Atualmente, ele acha, o negro continua explorado, depois da fase em que o samba, o jongo, eram coisas de morro, dava polícia em cima, samba era o folclore da favela pendurada sobre a paisagem do Rio de Janeiro, barracão de zinco “cantado” como “beleza comovedora”, implorando clemência à cidade a seus pés. Lorotas! Paulo comenta: “Agora, o Carnaval virou indústria. Indústria que rende para os bicheiros, pelo menos em termos de prestígio, mas rende para o Estado também, trazendo divisas estrangeiras para o tesouro nacional. São desfiles milionários, com cinco mil pessoas, muito luxo do tipo Hollywood. A negrada fica na bateria, que é coisa de negro mesmo, ou então empurra os carros alegóricos no muque e dança e dança quando pode: negro não é forte, negro não é só músculos e sexo? O Carnaval serviu também para dar emprego a milhares de artesãos que o ano inteiro confeccionam fantasias”.

Pára para repetir a frase de sentido duplo: “Confeccionar fantasias… é, essa é a função do negro carnavalesco hoje. Forjar a fantasia de que a vida é mansa. Vamos ser Maria Antonieta e o Rei da França durante três, quatro dias de apoteose? Vamos comemorar a Abolição, essa ficção que não houve? Da ‘liberdade’ de não saber ler, de não ter formação profissional, nem de um plano financeiro monarquista ou republicano para apoiar o negro e formá-lo para o mercado de trabalho ninguém cogitou. Resultado: o negro ‘sobrou’ na nova sociedade ‘livre’ como ‘sobrou’ antes. Foi ser capinador na roça, abrir valas para esgotos na cidade, viver de ‘bicos’ ou, como ladrão, arrancar ela força aquilo que era seu por direito e lhe negavam. Sempre um marginal, sempre o último a ser contratado e o primeiro a ser despedido. É o jogo das classes dominantes, ou tem sido até agora, não é? E por que nenhuma escola de samba milionária pensa em fundar uma escola de verdade onde se dê instrução para os negros? Já dizia Noel Rosa que”samba não se aprende no colégio”, mas toda a situação do negro no Brasil mudaria por meio da educação, essa alavanca que iria destruir até as favelas.”

Tornado insuportável dia-a-dia na firma onde a mãe se curvava horas e horas sobre panelas e caldeirões, Paulo Colina entrou numa grande companhia importadora e exportadora japonesa e ainda hoje, em outra empresa, trabalha neste ramo. Era a única pessoa de cor entre nisseis, em sua maioria, e um ou outro brasileiro de outra origem étnica. Traduziu com um colega Masuo Yamaki, os versos do gênero tanka – mais popular que os refinados hai-kais de Bashô – do poeta Takobuko Ishiawa. “Eu senti logo uma afinidade surpreendente com ele. Era um poeta contemporâneo, que se defronta com a modernidade, um poeta urbano, angustiado, sozinho, que bebia muito, frequentava prostíbulos e morreu jovem. Eu sentia muitas das tristezas e incompreensões que ele sofreu. Traduzir seus versos era quase uma tarefa fácil para mim, embora muito dolorosa.”

Apolítico, o poeta brasileiro desmente a frase de Khuane Nkrumah, “a não-violência é anacrônica” e acredita, ao contrário, que a violência só aumenta os problemas. Seguidor de Martin Luther King, o grande líder religioso e social dos Estados Unidos, que inspirado na doutrina da não-violência, de Ghandi, libertou as massas negras oprimidas, ele exemplifica a espiral de violência com a década de 60 no Brasil, “quando as guerrilhas causaram mais mortes inúteis em porões de torturas e no campo. Está provado que a violência, definitivamente, não é a solução”. O radicalismo de Malcom X ou dos Panteras Negras não é a resposta, assim como lamenta quem queira emigrar para um país da África Negra: “O brasileiro negro que for para a Nigéria ou para o Quênia, por exemplo, vai se deparar com choques tribais, com hostilidade, com uma falta quase total de possibilidades de se realizar profissionalmente, em países onde a luta pelo pão ainda precede a luta pelo lápis e o papel, a reconstrução dos países devastados pelo colonialismo ainda é muito recente e árdua. A nossa luta é aqui. Somos brasileiros há 400 anos, aqui é que demos nosso suor, nosso sangue, por que escapar? É uma ilusão.”

Sem se deixar rotular de pessimista, ele vê o ser humano ainda em um estado muito primário, cheio de brigas, de preconceitos. “O homem, em geral, ainda é um bicho nocivo. Nocivo para seus semelhantes e para a natureza, que destrói. Pra ser sincero não vejo, rigorosamente, um único país civilizado na face da terra onde os homens vivam fraternalmente. É uma busca frenética do poder, ainda que para obtê-lo seja preciso pisar na jugular do outro. Claro, quanto ao racismo, o Brasil não é a África do Sul, onde reina o pavor, mas estamos muito longe, mesmo hoje em dia, de uma verdadeira democracia. Nossa democracia, e não só do ponto de vista racial, não passa de uma balela, um engodo. Francamente, eu preferiria que o racismo brasileiro não fosse disfarçado. Que fosse como nos Estados Unidos onde o preconceito é às claras, mas onde a lei está a favor do negro, há recursos legais para combater a discriminação. Os negros norte-americanos já têm uma classe média com alto poder aquisitivo, acesso à educação universitária e cargos eletivos de prefeito, governador ou, na economia de mercado, a postos de executivos de firmas importantes. E aqui? A Lei Afonso Arinas? É mais uma prova de que existe o racismo, senão a lei não precisava existir. E ela é inócua: quem a viola é denunciado, vai à delegacia mais próxima, paga uma multa insignificante e fica tudo por isso mesmo… Agora, na nova Constituição, parece que a discriminação é definida como crime inafiançável. Só que no capítulo das chamadas minorias os evangelistas se colocaram contra a proteção a proteção dos homossexuais. Por que eles estão excluídos? Será que não são filhos de Deus lá na Bíblia deles?”

As vocações de Paulo Colina e James Baldwin coincidem em sua relutância em limitar seus escritos a ensaios anti-racistas como Da Próxima Vez, Fogo! ou a fazer uma poesia panfletária, obcecada apenas por um tema: “A visão que se tem de dentro do gueto negro, eu digo sempre, é uma visão menor da realidade, que é múltipla e muda rapidissimamente. Não posso bater só nessa tecla: sou negro. Gosto de ser negro. Amo minhas raízes africanas. Não sou um disco quebrado. Quem for escrever, negro ou branco, tem que ter uma única coisa indispensável: talento. No ‘movimento negro’ temos de tudo. Há negros bajuladores de Maluf, do Jânio e, antigamente, do Adhemar de Barros. Dedicam livros babosos aos poderosos e querem usar sua subliteratura rastejante para subir socialmente. Basta de o negro eternamente ‘morder o granito’ das estátuas que povoam as praças das cidades brasileiras.” Seu é o sonho de Martin Luther King transportado para o Brasil: o de um dia haver uma efetiva democracia brasileira, quando a cor da pele do indivíduo não pesar mais na avaliação do seu valor, do seu caráter, da sua dignidade: “Será que estou sonhando alto demais?”

Recusa-se a banalizar palavras como solidariedade ou povo, despejadas de qualquer palanque político e toda a propaganda governamental. Afinal, sua poesia e sua ação social estão longe dos desfiles do “reinado de Momo”. Estão fincadas firmemente na realidade da Quarta-Feira de Cinzas, “de olhos bem abertos e sentidos alerta”.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1988) 2022. “Paulo Colina - o poeta das cinzas .” In Racismo e literatura negra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 1. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.