Tentativa de explicação

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Correio da Manhã, 1965-03-21. Aguardando revisão.

Já desde o início, a vida de Clarice Lispector fôra um constante deslocamento. Entre a pracinha da Faculdade de Direito em Recife onde ela brincava quando criança e a Praça General Osório, no Rio, onde nos encontramos agora, há uma longa trajetória, uma parábola que percorre meio mundo. Durante esses anos, ela viveu em países estrangeiros, teve dois filhos e a menina que aos sete anos enviava colaborações para a página infantil de um jornal pernambucano transformou-se na mais extraordinária escritora brasileira. O reconhecimento unânime da crítica já se espraia pelo estrangeiro: Der Apfel im Dunkel, o título em alemão do seu romance A Maçã no Escuro, é saudado como uma das obras mais importantes já traduzidas da América Latina. De lá para cá surgiram também seus contos que começara adolescente ainda: densos, estranhos, incomparáveis na sua maneira de expressar sensações, na sua falta de artifício, na sua diretriz inconscientemente nova e intensamente pessoal. Esse deslocamento frequente abrangeu o espaço, o tempo, as circunstâncias. Seus pais, russos da Ucrânia dos trigais imensos e do folclore de uma alegia estouvada, decidiram emigrar e foi numa cidadezinha (“que você não vai achar no mapa”) que tiveram de interromper a viagem para a menina nascer. De Tchetchelnik a Recife, ela trouxe para a nossa literatura muito do mistério daqueles invernos luminosos e foscos, uma ilha de sugestão em meio à exuberância do nosso colorido tropical. Por um triz o destino deixou de presentear-nos com a sua sensibilidade: a família hesitou uns tempos antes de vir par o Brasil distante. Detiveram-se na Alemanha, pensaram estabelecer-se nos Estados Unidos. Felizmente para a literatura brasileira, fixaram-se definitivamente entre nós.

Quando menina, frequentou a Escola João Barbalho, perto da Rua Conde de Boa Vista, naquele Recife de árvores frondosas que traçam um delicado labirinto de sombras frescas nas calaçadas. “A criança geralmente tem uma ideia diferente das dimensões das coisas, você sabe como é: eu brincava na escadaria da Faculdade e lembrava que era enorme. De passagem por Recife, eu a revi no seu tamanho natural, da mesma maneira antigamente aquele jardinzinho da praça, onde choferes namoravam empregadas, me parecia uma selva, um mundo - era o meu mundo, onde eu escondia coisas, que depois não achava nunca mais.”

Com as dimensões, variaram também os ambientes. Transferindo-se aos doze anos para o Rio, Clarice mais tarde se casaria com um diplomata brasileiro e seus olhos grandes, claros, contemplariam imagens do sul da Inglaterra, de Nápoles, da Suiça, de Washington. Mas através de todas as mutações externas permanecia, imutável, o escrever. Isolada que estava do Brasil, da língua, da literatura, ela nunca deixava de escrever: “Eu escrevia sempre, até hoje me espanto de como podia trabalhar sem estímulo, não sei se hoje poderia”. Ao ambiente sobrepõe-se, assim, a visão interior: na Suiça branca, geométrica, de píncaros dos Alpes nevados, ela escreve: “Mistério em São Cristovão”, uma evocação fantasmagórica do carnaval carioca na noite do subúrbio outrara aristocrático. “A Menor Mulher do Mundo” foi escrita numa primavera, em Washington, com os primeiros sinais do calor sufocante, sugerido por uma notícia lida em jornal. No entanto, não fica eliminada, no processo de criação, a paisagem exterior: ela observa a beleza sobrenatural da Catedral de Berna iluminada nas noites de domingo e como que desmaterializada: “E por mais que a vista inteligente quisesse continuar a enxergar o impacto de uma parede, sentia que a transpassava. Atingindo, não o outro lado da transparência, mas a própria transparência.” Ou quando se vê rodeada de moças indígenas num aeroporto da África, ensinando-as a usar um lenço de cabeça que elas admiravam: “Quando vejo, estou cercada de pretas moças e esgalhadas, seminuas, todas muito sérias e quietas. Nenhuma presta atenção ao que ensino, e vou ficando sem jeito, assim rodeada de corças negras. Nos rostos opacos as listras pintadas me olham. A doçura contagia: também me aquieto.”

Os países estrangeiros, porém, não a prendem, Clarice não é uma depaysée que suspira pela Europa ancestral, desambientada no Brasil. Ao contrário. Durante os anos de ausência no exterior, afirma: “Eu vivia mentalmente no Brasil, vivia”emprestada”. Simplesmente porque gosto de viver no Brasil, o Brasil é o único lugar do mundo em que não me pergunto, assombrada: afinal de contas o que é que eu estou fazendo aqui, meu Deus? Porque é aqui mesmo que tenho que estar, que estou enraizada.”

O contato inicial com os livros é explosivo, em mocinha ela lê “como quem tem fome, com avidez: eu lia atabalhoadamente, às vezes, até dois livros por dia. Chorava com O Lobo da Estepe, de Hesse, com Dostoiewsky. Acho que não aprendia nada nem apreendia nada também: Machado de Assis, por exemplo, me causava prazer lê-lo, só mais tarde é que descobri a sua melancolia”. Diametralmente oposta à “técnica” literária, à criação consciente de um “estilo” penosamente forjado, Clarice Lispector chegou espontaneamente ao seu modo, inconfundível, de escrever, do qual diria Mestre Alceu Amoroso Lima com a sua autoridade inconteste: “Ninguém escreve como ela. Ela não escreve como ninguém. Só seu estilo mereceria um ensaio especial. É uma clave verbal diferente à qual o leitor custa a adaptar-se. É preciso ler muito devagar as primeiras páginas, para entrar nesse plano estilístico singular, cheio de mistério e de sugestão. Uma vez nele, cremos que o leitor sentirá o mesmo encando sombrio que sentimos. E que coloca Clarice Lispector numa trágica solidão em nossas letras modernas”. Mas para ela essa “clave verbal diferente” e entranhadamente inimitável surgiu naturalmente, sem esforço nem intenção: “Meu estilo não foi escolhido, eu não saberia escrever de outro modo. Meu estilo é um desajeitamento, uma procura de acertar. Tive até susto quando comeaçaram a falar do meu estilo! A princípio, confesso, fiquei um pouco decepcionada também, porque insistiam no modo de eu escrever e não no que eu escrevia.” Depois copreenderiam, diz, a identidade do que dizia e da forma de dizê-lo ou, para usar a linguagem crítica, que a forma e o conteúdo são inseparáveis.

Para ela, escrever é atingir um momento, embora passageiro, de realização, de plenitude. Através da áspera busca que significa a criação, essa lenta jornada “perto do coração selvagem”, escrever para ela é uma forma de totalidade: “Como certos instantes em que se ouve música: é-se invadido por uma totalidade, como a do amor, tem-se uma noção de se estar completo, integral.” Do amor ela já dissera, anteriormente: “Amor? É respiração, não é? E não se pode dizer mais que isso. Quem não ama pode realizar alguma coisa em função da falta de amor. É como um abismo que é a ausência de uma montanha. A falta de amor pode ser tão profundamente sentida que se pode viver da falta que ele faz.” Ora, para quem tem uma concepção tão absoluta da arte, a literatura nunca é “literária”, é-lhe indiferente saber a que “escola” pertence: “Não é só que me faltem cultura e erudição, é que esse assunto não me interessa, antigamente eu me acusava, mas hoje não busco documentar-me; porque eu acho que a literatura não é literatura, é vida vivendo, nem se pode aprender também, o que se faz é sofrer com os outros, e aprender sozinha”. Para ela, escrever se compõe de duas componentes, ambas - sem que ela o diga - de origem religiosa: a humildade diante do ato de criar e a inocência, que a libera de qualquer “método” ou “tendência literária”, tornando-se o escrever espontâneo, evidente como um ato natural, o desabrochar de uma flor, por exemplo:

“O processo de escrever é feito de erros - a maioria essenciais - de coragem, e preguiça, desespero e esperança, de vegetativa atenção, de sentimento constante (não pensamento) que não conduz a nada, e de repente aquilo que se pensou que era”nada” era o próprio assustador contato com a tessitura de viver-se esse instante de reconhecimento, esse mergulhar anônimo, esse instante de reconhecimento (igual a uma reconciliação) precisa ser recebido com a maior inocência, com a inocência de que se é feito. O processo de escrever é difícil?! mas é como chamar de difícil o modo extremamente caprichoso e natural como a flor é feita (Mamãe, me disse o menino, o mar está lindo, verde e com azul, e com ondas! está todo anaturezado! todo sem ninguém ter feito ele!).” É também um sinal profundo de humildade: “Refiro-me à humildade no sentido cristão (como ideal a poder ser alcançado ou não), refiro-me à humildade como técnica… só se aproximando com humildade da coisa é que ela não escapa totalmente…”. Se alguns a acusam de hermética, de difcíil, ela argumenta: “Tomo um ar involuntariamente hermético. Depois da coisa escrita, eu poderia friamente torná-la mais clara? Mas é que sou obstinada. E por outro lado, respeito uma certa clareza peculiar ao mistério natural, não substituível por clareza outra nenhuma. E também porque acredito que a coisa se esclarece sozinha com o tempo: assim como num copo de água, a água fica clara. Se jamais a água ficar limpa, pior para mim. Aceito o risco.”

Essa ojeriza ao postiço das conversas “literárias”, da “vidinha literária” confirma o seu horror ao monstre sacré, mantém a sua naturalidade como ser humano e torna mais funda a sua comunicação com o mundo que a rodeia. Um mundo no qual as crianças e os bichos ocupam um lugar privilegiado, aparecendo frequentemente nos seus contos, nos seus romances: “Sinto muita ternura pela infância me sinto mesmo, próxima da criança, às vezes nem sei quem encabula mais, se eu ou a criança. Mas essa minha empatia, essa minha identificação com a criançça é irresistível.” Talvez porque a criança tem uma imaginação poética, livre de conceitos intelectuais, vê tudo com mais liberdade, com maior espírito crítico e com uma agudeza de percepção não desprovida da ironia que caracteriza muito da autoironia da escritora. Como o mundo infantil se reflete, na sua candura, no seu humor, na sua percepção perspicaz e imaginativa no diálogo intitulado “Como, meu filho”, que contém o seguinte trecho:

“… Pepino não parece inreal?

  • Irreal.

  • Por que você acha?

  • Se diz assim.

  • Não, por que é que você achou que o pepino parece inreal? Eu também. A gente olha e vê um pouco do outro lado, é cheio de desenho bem igual, é frio na boca, faz barulho um pouco de vidro quando se mastiga. Você não acha que pepino parece inventado?”

Ou no diálogo brevíssimo denominado “Ad Eternitatem”:

“- Me disseram que a gente está no século XX, é?

  • É.

  • Mamãe, como nós estamos atrasados, meu Deus!”

Bem próximos das crianças, estão os bichos, aliás, unidos por uma ternura frequentemente mútua. Clarice explicando o seu amor pelos bichos, que menciona em diversas de suas histórias, confessa: “Eles me parecem uma forma acessível de gente. As pessoas são inacessíveis, o animal não me julga… Parece-me que sinto os bichos como uma das coisas ainda muito próximas de Deus, material que não inventou a si mesmo, coisa ainda quente do próprio nascimento; e, no entanto, coisa já se pondo imediatamente de pé, e já vivendo toda, e em cada minuto vivendo de uma vez, nunca aos poucos, apenas, nunca se poupando, nunca se gastando.”

E se não fosse escritora, o que ela teria sido? Ela se sente realizada, feliz, como é atualmente? “Se eu não fosse escritora, juro que ia ser medica. Eu seria mais feliz. Ser médica quer dizer agir diretamente na realidade, ter contato direto com outro ser humano. Eu teria minhas horas ocupadas frutiferamente, dormiria o sono dos justos, dos que compriram uma tarefa essencial. Mas também se eu fosse feliz, ia morar bem longe, numa cidadezinha do interior. Do Estado do Rio, talvez.

-?! - É, sim, porque é preciso ser muito feliz para viver numa cidade pequena, pois ela alarga a felicidade como alarga também a infelicidade. De modo que vou morando mesmo aqui no Rio. Você sabe, nas cidades grandes todos sabem que em cada apartamento existe uma espécie de solidariedade, pois em cada apartamento mora uma pessoa infeliz.”

Da cobertura ampla de um prédio, em Ipanema, onde conversamos à noite, olhamos um momento para a favela em frente à Praça General Osório. Talvez não seja uma praça tão diferente da praça em frente à Faculdade, no Recife: aqui, também, os choferes namoram as empregadas e é talvez perto daqui que Clarice escondeu as coisas que nunca mais conseguiu achar. As luzes da favela brilham quase que com ternura sutil. Se não fosse a tragédia que elas iluminam incertamente, podia-se dizer que a favela era bonita, mas não do sentido estético, no sentido alienado da miséra que as luzes nem escondem. Bonita no sentido poético, como é feio um prédio construído pela sofreguidão imobiliária. Sartre, em sua última obra, reitera seu desencanto com a obra literária, que considera ineficaz como arma de mudanças sociais. Uma posição semelhante e uma conclusão idêntica são as da escritora brasileira: “Desde que me conheço, o fato social teve em mim importância maior do que qualquer outro: em Recife, os mocambos deram a primeira verdade para mim. Muito antes de sentir”arte”, senti a beleza profunda da luta. Mas é que tenho um modo simplório de me aproximar do fato social: eu queria era “fazer” alguma coisa, como se escrever não fosse fazer. O que não consigo é usar o escrever para isso, por mais que a incapacidade me doa e me humilhe.”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1965) 2022. “Tentativa de explicação .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.