Como vai a liberdade na URSS? Zinoviev responde

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1978/12/09. Aguardando revisão.

Transcrição total de um diálogo entre um famoso pintor que tentou inutilmente elevar a arte soviética ao nível internacional e durante mais de vinte anos não obteve permissão nem para expor uma única vez e um sociólogo igualmente célebre que tudo fez para desenvolver a sociologia em prol do Partido, do Povo, do Estado, só para ver todos os seus esforços desmantelados em nome do Partido, do Povo e do Estado soviéticos:

“- Afinal, que vida filha da p...!

- Pois é, eu quero que todos os f... da p... vão à m...!”

Aleksandr Aleksandrovitch Zinoviev teve um destino semelhante. Bastou revelar os labirintos da burocracia e da hipocrisia reinantes no “paraíso socialista” em Les hauteurs béantes (sem tradução em português) para que imediatamente desabasse uma série de infortúnios sobre sua cabeça. Colocado no Index dos “caluniadores da Nação”, ele perdeu da noite para o dia sua cátedra de Lógica na Universidade de Moscou, viu todos os seus títulos e diplomas anulados por um AI-5 global soviético e, é lógico, foi excluído do Partico Único.

L’Avenir Radieux (O Futuro Radioso), recém-publicado pela Editora suíça L’Age d’Homme, é uma sátira estonteante da duplicidade que estigmatiza a vida soviética: o vazio dos slogans, dos numerosíssimos congressos, dos discursos verbosos, contrasta vividamente com a realidade mesquinha, sórdida, cínica, oportunista, que caracterizam a indiferença e a descrença políticas totais.

É um slogan que adquiri as feições de personagem mudo mas cambiante em todo o livro. Na Praça dos Cosmonautas, na Avenida do Marxismo-Leninismo da Capital Mundial do Comunismo (não muito longe da filial moscovita do Chase Manhatan Bank, dos milionários Rockfeller, situada no número 1 da Praça Vermelha – ironia da História) ergue-se um lema que se quer permanente: “Viva o comunismo, futuro radioso de toda a humanidade”. É o início da farsa demagógica e em certos pontos hilariante de Zinoviev: a placa leva um tempo enorme para ser construída e exige um custo absurdo, equivalente ao total dos investimentos agrícolas previstos no primeiro Plano Quinquenal. Feito com material inferior, o slogan cai aos pedaços três vezes por ano. Tem que ser conservado limpo e isso exige que se apaguem os palavrões que mãos anônimas escrevem em suas margens. Pior ainda: erigidas em um espaço vazio, as letras de aço inoxidável deixam interstícios que logo servem de drive-in a céu aberto para os amantes (do lado de “Viva o comunismo”) e de reuniões de alcoólatras irrecuperáveis (do lado do “Futuro radioso de toda a humanidade”). Em seguida, os amantes e os bêbados inveterados seduzem Milícias do Povo a participar de sua boêmia, certas senhoritas conhecidas por venderem seus favores corporais e traficantes de drogas alojam-se à sombra da palavra “radioso”, enquanto turmas de homossexuais se reúnem protegidos pela palavra “comunismo”. Breve, 24 horas por dia, havia exposições de pinturas proibidas, cafés-concerto, jogatinas, tudo detrás das letras que se desfaziam mesmo quando feitas de titânio e fotografadas do espaço pelos cosmonautas atentos.

Zinoviev aproxima-se das histórias kafkianas de humor negro e cinismo de Siniavsky, que valeram ao autor “dissidente” um processo judicial farsesco e a expulsão para a França, onde reside atualmente. Há jornais murais nas Universidades que ridicularizam o regime com versos obscenos rimando com vetustos lemas monolíticos do marxismo-leninismo, como por exemplo:

Deixa em paz meu soutien,

Tira as mãos, mas que grossura!

As superestruturas repousam

Sobre a infraestrutura.

O autor constata na vida do dia a dia soviética a disparidade surrealista: os discursos sobre o humanismo escondem os milhões de vítimas dos campos de concentração descritos acuradamente por Solzhenitsyn no Arquipélado Gulag: os slogans de “luta contra os inimigos do Estado” são a senha para os expurgos políticos arbitrários e costumeiros; as vitórias nos esportes ou as soirées do ballet Bolshoi são o verniz que não oculta a agitação política que as Embaixadas soviéticas financiam em que a extrema esquerda marxista se alia aos mais retrógrados líderes religiosos para manter o povo persa numa teocracia islâmica feudal que impede a emancipação da mulher, a modernização social e o desenvolvimento econômico do país.

Negando ao marxismo-leninismo qualquer veleidade “científica”, Zinoviev o considera uma ideologia a mais destinada a servir aos interesses de uma classe dominante (os militares, os burocratas, os artistas dóceis ao partido monolítico) e reinstaurar a escravidão da gleba abolida pelos Tsares no século passado. Reconhecendo que como para Hitler, também para os dirigentes soviéticos nenhum acordo assinado passa de um mero “farrapo de papel sem qualquer valor”, ele denuncia a propaganda mentirosa governamental que viola diária e impunemente todos os itens do Tratado de Helsinque e enumera:

  1. Não há liberdade de migração nem dentro do país: para morar em Moscou ou Leningrado, é preciso uma autorização expressa conseguida através de pistolões: além disso, todo cidadão é obrigado a registrar na polícia sua residência e pedir autorização prévia à delegacia policial de seu bairro para ir de uma distância como de São Paulo a Santos;

  2. Ao GLAVLIT, órgão da Censura Total têm que ser submetidas todas as obras a serem recitadas, apresentadas, cantadas, lidas, recitadas, executadas ou difundidas: antes do imprimatur dessa Inquisição ubíqua não se publica uma linha, não se projeta um metro de filme nem se mota uma única cena de uma peça ou ballet;

  3. A total ausência de liberdade de imprensa, rádio e TV carimba com o indispensável autorize-se apenas os artigos previamente censurados e que reflitam a férrea infalibilidade do partido ou se dediquem a temas anódinos como a transmissão de partidas de hockey e a filmagem de um enésimo “Congresso pela Paz” que se realiza simultaneamente com a intervenção bélica soviético-cubana em Angola ou na Etiópia;

  4. O OVIR, sigla da repartição do governo no que autoriza ou não a emigração de cidadãos par o estrangeiro (principalmente de judeus rumo a Israel), já que na URSS são cidadãos de segunda classe com a especificação “nacionalidade: judeu”, em vez de russa, impressa em seus passaportes internos) é responsável pela eternização da duplicidade: quem preenche um formulário para emigrar pode ser preso a qualquer momento por “vadiagem”;

  5. Não há eleições livres, pois como só há um partido, “escolhe-se” uma lista única, muitas vezes com um candidato apenas. As abstenções não existem: daí as “vitórias” nas urnas soviéticas subirem a alturas inauditas de apoio ao governo: 98,7%, 99, 1% etc.;

  6. A falta de acesso a qualquer informação que não tenha a chancela única do regime impede a massa de cidadãos de saber em que espécie de sociedade deformada vivem e compará-la à realidade ocidental, iugoslava, chinesa etc. A proibição de livre assembleia e de palavra só cimenta essa unilateralidade de opinião;

  7. A russificação de todas as nacionalidades é levada a cabo com uma brutalidade só igualada à chacina dos judeus pelos nazistas alemães, uma russificação que significa a opressão de todos os demais pela minoria russa;

  8. Como não há liberdade de culto, todos os credos religiosos são implacavelmente perseguidos pelo Instituto de Ateísmo do Estado, doutrina fruto do “materialismo histórico-científico” da cúpula reinante;

  9. Tampouco na música, nas artes plásticas, na literatura e na dramaturgia é possível inovar: a arte acadêmica, fotográfica é o critério oficial que desemboca no realismo socialista, glorificação do kitsch, enquanto os compositores se dividem em execráveis, como Chopin, “que induz à melancolia com seus Noturnos derrotistas”, ou anti-povo, como o inovador : Prokofieff e os progressitas, como Beethoven, “de origem proletária e que exalta a alegria e o otimismo”...

  10. As greves estão proibidas, por seu caráter “anti-social” e por “prejudicarem o desenvolvimento econômico da Nação”.

Os sindicatos, as universidades, os jornais, as editoras, tudo está amarrado ao Soviet Supremo, que decide inquisitorialmente o que “serve aos propósitos progressistas da URSS” e o que é “anti-soviético”.

Zinoviev vê nessa onipresença da ideologia a perversão dos valores humanos e espirituais: como a juventude sabe que tudo não passa de mentira, adota uma postura exterior de conformismo que esconde um ceticismo cínico e sem escrúpulos morais de qualquer tipo: o importante é sobreviver, ter acesso a um cargo elevado, ganhar bem, ir aos mercados fechados ao povo e onde os produtos estrangeiros custam barato para a casta dirigente, ter uma casa de campo, poder ir ao estrangeiro de vez em quando. Essa adesão amoral para ele representa a violação, consentida, da consciência individual e o cultivo exclusivo do egoísmo utilitário: a corrupção, a bajulação, a denúncia são apenas suas sequelas “naturais”.

Há inúmeros pontos de vista originais neste Futuro Radioso: já que o Estado tem que alimentar milhares de escritores medíocres, livrar-se de Soljenitsin não é só descartar-se de acusações documentáveis sobre o massacre de milhões de vítimas dos expurgos estalinistas: é livrar-se da ameaça que o talento literário significa para a multidão de medíocres obedientes e mudos: assim é possível matar dois coelhos com uma só cajadada.

O personagem que fala pelo autor, designado como Anton, enuncia as tendências irrefutáveis do comunismo uma vez arrebatado o poder: a estratificação social solidifica-se: se só os filhos de proletários têm acesso às universidades a vantagem da educação torna-se hereditária: quando já se ouviu falar de qualquer universitário, que depois de formado tenha se tornado operário, professor humilde ou funcionário de baixa categoria nos ministérios públicos? Concomitantemente, como as castas “superiores” são as únicas admitidas à tecnologia e às artes cosmopolitas do Ocidente, cria-se um fosso “dinástico” entre o povo, relegado sempre a uma cultura inferior, primária que lhe é acessível segundo a decisão arbitrária e elitista dos dirigentes culturais. Esta cristalização é reforçada pela fixação da população “inferior” no campo, o que se consegue por mil expedientes oficiais e oficiosos: a distribuição dos escassíssimos alojamentos, o aumento dos salários, as creches – tudo serve de pretexto para selar a repartição sólida entre os que têm o direito ao meio urbano e os que são impedidos de sair de seu primitivo meio rural. Paralelamente a essa esclerose social, procede-se a um processo sistemático de repressão das massas: seja por meio dos campos de “reeducação” política ou da ordem dada aos citadinos para colher legumes nas plantações no campo ou dos apelos altissonantes à juventude para que, numa imitação dos escoteiros que “praticam uma boa ação por dia”, os jovens forneçam um trabalho gratuito na construção de casas, no ingresso nas Forças Armadas. São todos tipos de “exploração humana” que abrangem todo o espectro desde a barbárie dos campos de extermínio dos dissidentes até a aparente brandura dos “apelos” coercitivos para a produção não remunerada.

A parte do livro consagrada à análise do comunismo como a ameaça de totalitarismo mundial alterna-se com as “tiradas” hilariantes de Zinoviev que frequentemente mistura a farsa com o obsceno. Um candidato à emigração é “acusado” de ser judeu, por isso quer emigrar: para provar que é cristão, demonstra concretamente que não foi circuncisado, perante um comitê que incluía mulheres apavoradas com tal audácia. Irônico, o escritor acrescenta: e era tudo parte de um novo simulacro de verdade – os avós desse rebelde impudico eram judeus que sabiamente se converteram ao Cristianismo desde os últimos sangrentos progroms tzaristas contra os bairros israelitas de numerosas cidades russas. Frequentemente, o autor encaixa versos execráveis de sarcasmo ao regime soviético, do tipo:

“Dorme filhinho

O Partidão é o meu leitinho” ou

“Mesmo as crianças de colo

Derrubam os Planos ao solo”

Meio autobiográfico, meio sátira impiedosa, este Futuro Radioso não tem as qualidades de uma ironia devastadora de um Swift, um Gogol, que a publicidade editorial lhe quer generosamente atribuir. Seus personagens são caóticos, estereotipados: os jovens invariavelmente descrentes de tudo e carreiristas, os mais velhos perplexos com os resultados da “Revolução” bolchevista; os stalinistas convictos, como a sogra, sempre iludidos com a versão do “Éden socialista” que o Politburo difunde maciçamente. O livro, porém, adentra-se frequentemente por longas digressões sobre a importância de se instituir o pluripartidarismo para conter a corrupção governamental e dar ao povo meio de controlar os impostos que, desviados dos bens de consumo, da melhor alimentação, da gratuidade dos cuidados médicos e dos transportes, são, ao contrário, arbitrariamente canalizados para a corrida armamentista, para aventuras árabe-africanas de resultados duvidosos e para voos espaciais, que, naturalmente, excluem qualquer judeu da tripulação: o infinito será a Terra da Promissão de Moisés ao Povo Escolhido por Jeová, à custa do povo russo e de seu governo todo-poderoso?

Filho de um dos mais íntimos colaboradores de Lenin – Grigory Yevseyevitch Zinoviev, vítima dos expurgos stalinistas sob a acusação falsa de formar uma organização terrorista para assassinar Kirov e outros líderes soviéticos –, o Zinoviev atual fica a meio caminho entre o humor negro burlesco de um Mihail Bulgakov, autor de O Mestre e a Margarida, e uma denúncia sob forma de ensaio a la Milovan Djilas, dos males intrínsecos do comunismo. Seus dotes literários ficam constantemente à espera de que terminem suas explanações teóricas sobre os erros implícitos no materialismo marxista para voltar à carga. Ora, evidentemente, uma obra indecisa entra a denúncia intelectual, racional e a zombaria de todo os absurdos inenarráveis da Grande Mentira Soviética é forçosamente uma obra fragmentada entre dois objetivos raramente coincidentes. O humorismo, amargo ou distanciado que seja, não se expandiu na sociedade que surgiu na União Soviética. Solzhenitsyn, Kuznetsov, Valery Tarsis – todos banidos da URSS – recorreram à descrição da tragédia russa com todo o pathos de uma grande literatura que já produzira Tolstoi, Dostoievski, Turgenev, Tchekov. Zinoviev não tem o talento de nenhum deles nem o mundo monstruoso que revela comove tanto quanto a biografia escorreita, dolorosa, real do poeta Ossip Mandelstam (também inédita em português, publicada pela Editora Fischer da Alemanha Ocidental sob o título Das Jahrhundert der Wölfe).

A exposição de sua crença no indivíduo o leva a coincidir com o historiador, também banido da União Soviética, Andrei Amalrik, na sua hipótese de que a sociedade comunista totalitária irá esfacelar-se, vítima de suas contradições internas, da ameaça chinesa crescente e da sua incapacidade antediluviana de adaptar-se a um mundo em constante mudança irreprimível.

Sua pletora de argumentos que provam que o sistema marxista-leninista leva à total despersonalização de cada um para melhor desaguar na delegação mística do seu eu ao culto da personalidade por mais monstruosamente assassina que ela seja, como no caso de Stalin e Lenin, embora convincente, nada tem a ver com o fluxo de um romance, nem mesmo de um romance comprovadamente de tese comprovável como este teorema semiartístico (e neste ponto hilariante) e semidocumental (francamente repetitivo) que é este Futuro Radioso.

Sua convicção de que o Comunismo é um câncer no organismo mundial não precisa de quase 300 páginas de valor desigual como “prova”: a leitura dos jornais demonstra mais que sucintamente a que ponto esse rebento do nazifascismo já serve de refúgio para todas as ambições de poder frustradas em todos os continentes e que tipo de “futuro radioso” ameaça as populações vietnamitas, laocianas, húngaras, tchecas etc., que fogem dele como os heréticos enfrentando as fogueiras de preferência ao Inferno murado de Berlim ao Cambodge.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Como vai a liberdade na URSS? Zinoviev responde .” In Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra os despotismos e os totalitarismos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 12. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.