Psicologia e literatura. As boas e as más relações
A crítica literária é, historicamente, um ramo novo da literatura: começou com continuidade há um século apenas. Taine, Sainte-Beuve, depois Baudelaire, Henry James, Virginia Woolf foram seus grandes iniciadores, antes de se estabelecer uma categoria nítida de meditação intelectual sobre um texto literário, definição que prefiro dar à crítica como decodificação, sempre parcial, de uma linguagem e daquilo, não dito, o mistério que lhe está subjacente. (Daí, a linguística ser já filha da crítica, mas isso é outra história).
Portanto, houve, evidentemente, uma influência de ideias predominantes em certas épocas sobre o campo específico da crítica. Há, por conseguinte, fases da crítica: teológica, racionalista, política, antropológica e também psicológica. Vamos a esta que nos interessa mais de perto. Ela decorre do aparecimento, é óbvio, de Freud à cultura e ao pensamento contemporâneos pelo menos no âmbito da civilização ocidental.
Literatura e psicologia, no entanto, podem se dar bem?
Podem, desde que não se confundam os objetivos. A literatura social, reivindicativa, de protesto, esquerdizante, não pode absolutamente se limitar a uma constatação estatística de fatos numericamente comprováveis: “nas favelas a subnutrição, a falta de higiene e as endemias dizimam milhões de vidas que não atingem seu primeiro ano de subsistência injusta, monstruosa, precária, fruto da exploração do homem pelo homem” etc. etc., podendo-se multiplicar os chavões ao infinito. Da mesma forma, nenhum autor digno dessa denominação pode escrever uma tese junguiana ou de Melanie Klein ou de Freud para “demonstrar” um teorema psicológico através da literatura.
Faça-se um parêntese engraçado, além de grotesco: um crítico soviético obediente ao partido único escreveu uma tese para “provar” que o misticismo de Dostoievski se devia à sua arritmia cerebral. Quer dizer: epilepsia = crença em Deus. É um esquecível senhor de sobrenome Grossmann, que a Editora Civilização Brasileira nos fez o desserviço de traduzir, em má hora.
Voltando ao que interessa: existe uma literatura psicológica, válida também em termos de estilo, de profundidade de escrita? Na maioria dos casos, sim. Shakespeare é, eminentemente, um autor psicológico, séculos antes de Freud surgir em Viena. Otelo, Macbeth, O Rei Lear, Hamlet – para só citar estas peças – são estudos atemporais da psique humana. Não falo de estereótipos. Otelo não é só o ciúme personificado, nem Macbeth e Lady Macbeth são só um estudo da ambição sem escrúpulos, sedenta de poder a qualquer custo, até do crime. O Rei Lear não é apenas o estudo da soberba de um rei péssimo juiz de caracteres e da sinceridade de suas próprias filhas, muito mais propenso à adulação do que à justiça e à verdade. Nem, finalmente, o príncipe Hamlet é um esquizofrênico cindido entre a inação e o imperativo categórico moral de agir (mesmo que isto lhe custe a vida) para vingar o assassínio do pai.
O que fica claro é que Shakespeare, em seus momentos supremos, esquadrinhou profunda e exemplarmente as mil facetas do ser humano, que derivam de suas propensões básicas: o ciúme, a vaidade, a soberba, o egoísmo, a maldade, a inércia, a melancolia desiludida com a podridão do gênero humano. Em suas peças históricas – infelizmente inéditas em um português legível quatro séculos depois de encenadas – também Shakespeare estuda de forma imelhorável a ambição torpe e amoral de Ricardo III, que elimina todos os sucessores legítimos que o separam de seu objetivo supremo: o trono, que ele almeja como compensação por ter nascido deformado e monstruoso. Já em Ricardo II uma profunda e comovente transformação se processa no monarca incialmente arrogante, cheio daquilo que os gregos chamavam de hybris, ou seja: suicida tentativa humana de igualar-se aos deuses em sua onipotência e imortalidade, e a partir da queda do apoio que tinha, sua humilhação e rebaixamento, até sua execução, com seu trono usurpado por Bolingbroke, que conta com a adesão do povo e um apetite pelo poder habilmente dissimulado por suas proclamações de democracia e justiça social.
Fora da dramaturgia de Shakespeare, e principalmente o romance que dá vazão a um rio paralelo à literatura: a anotação psicológica arguta e perene. Eça de Queiroz estudou o fanatismo religioso levado às raias da hipocrisia mais repugnante com a Titi de A Relíquia, assim como contestou a validez das linhagens aristocráticas das mais nobres casas portuguesas em A Ilustre Casa de Ramires. Sem esquecer que, para escândalo dos provincianos portugueses da sua época, ele ousou tocar em temas tão revolucionários como o incesto em Os Maias (um incesto consciente, no final do livro), o desafio do celibato sacerdotal, a libido rompendo o decoro e o voto eclesiástico, com a cópula do representante de Deus na terra que comete justamente o intitulado Crime do Padre Amaro. E sem omitir que foi ele quem falou primeiro em nossa língua do adultério de Luísa em O Primo Basílio e focalizou a figura amoral do conquistador belo e barato, sofisticado e sem escrúpulos quaisquer, que usa a mulher como um mero objetivo de prazer sexual, mesmo que isso determine o suicídio da sua vítima, o que lhe é totalmente indiferente.
Mas não só no estrangeiro há exemplos válidos dessa dupla aderência à literatura e à psicologia. No Brasil – e falar de Machado de Assis seria encher todas as páginas desta revista – basta citar um autor pouco conhecido, mas importantíssimo pelo seu pioneirismo temerário na Fortaleza sonolenta e beata de meados do século passado: Adolfo Caminha. Adolfo Caminha deve ter sido o primeiro autor (das Américas? do mundo?) a abordar simultaneamente dois tabus jamais tocados por escritor algun antes dele. De fato em seu romance que é uma obra-prima, O Bom Crioulo (que está a exigir uma reedição urgente) ele trata simplesmente da discriminação racial contra as pessoas de cor na Marinha e da tragédia amorosa homossexual entre um marinheiro preto e um rapaz insensível e frívolo. As reações das personagens são minuciosas e magistralmente descritas, com matizes, sem estereotipações, de forma a tornar esse livro um clássico ainda não reconhecido em toda a sua grandeza entre as raras obras-primas da nossa narrativa.
Outro exemplo frisante é o de Marcel Proust. Com as quase 4000 páginas de sua magnífica A la Recherche du Temps Perdu (Em Busca do Tempo Perdido, Editora Globo) o supremo escritor francês, talvez, de vinte séculos de literatura francesa, traça um panorama vasto, profundo, minucioso da sociedade da belle époque. Predominam, é verdade, os ambientes da alta aristocracia, do dinheiro ou da nobreza vergada sob títulos altissonantes de Princesas, Gran-duquesas, Viscondessas etc. Mas em Sodome et Gomorrhe pulula o povo – cocheiros, cobradores de hotéis, cocotes etc. etc., bem como em Du Côté de Chez Swann ele retrata o campo, a província francesa, a família, os rituais religiosos e sociais cristalizados por gerações de uma tradição nunca questionada. O importante é que Proust, um pouco como Shakespeare, capta a raiz das suas personagens e daí pode traçar a sua dinâmica comportamental. A Mme. Verdurin é uma falsa amante da artes, que visa apenas ascender na escala social? O Barão de Charlus é aparentemente um arrogante sofisticadíssimo, mas, na realidade um homem bom, terno, solitário, amante verdadeiro das artes, da literatura, do pensamento, da justiça, da verdade. Swann é um requintadíssimo conhecedor da história das artes, que sucumbe ao amor por uma quase prostituta, em tudo indigna da sua paixão avassaladora a Odete superficial e tola, cultivadora de toilettes e de um pseudo-amor pela Inglaterra e tudo que venha da Grã-Bretanha. O Duque e a Duquesa de Guermantes são dois monstros de insensibilidade. Pensam exclusivamente em seus privilégios: seu sangue “é mais puro do que o dos réus da França”, conhecem a genealogia e a heráldica como um eminente cientista conhece seu ramo profissional, seja a entomologia, a física nuclear, a bacteriologia etc. Não se regem por outro mandamento que não o do dinheiro, símbolo palpável da sua opressão sobre os demais. Quando seu amigo Swann vem anunciar-lhes que está morrendo de câncer (o que é verdade), o que mais os preocupa é combinar as sapatilhas da Duquesa com a fantasia que ela usará em um baile de máscaras. Eles estão mortos espiritualmente, mas adoram o Olimpo do Luxo, da Aparência, mesmo se o Duque não ama a Duquesa, que o ama, e é por ele traída acintosamente.
Proust aborda também temas históricos e de raízes psicológicas milenares como o antissemitismo: a parte perto do final de A la Recherche du Temps Perdu trata do processo Dreyfus que indignou Zola e cindiu a França entre os “patriotas” – a direita endinheirada – e uma minoria liberal que acreditava na inocência – afinal comprovada – do militar injustamente acusado e mandado para a prisão da Guiana, a famosa e infamante Ilha do Diabo.
Haveria material para dez artigos mais alentados do que estas breves notas sobre o enlaçamento perene da literatura e da psicologia. Bastaria falar de Henry James e de seus maravilhosos retratos femininos, que mostram uma precoce percepção da servidão da mulher, subjugada por um machismo sutil, mas não menos castrador em Portrait of a Lady ou um feminismo prematuramente desafiador em Daisy Miller.
Há também autores quem que a sombra psicológica não se projeta com tanta intensidade, desde Homero até Clarice Lispector. Sucede que a obsessão mística pode diluir a descrição psicológica a ponto de ela ser escassa, como nas deslumbrantes Ficções de Hilda Hilst (Editora Quíron). Ou que a renovação estilística e o empenho social ofusquem Freud, como em alguns romances de Oswald de Andrade (Memórias de João Miramar e Serafim Ponte Grande) ou Germinal de Zola.
Um terreno pouco fecundo para a psicologia é a poesia, de modo geral, talvez porque ela seja já intermediária entre a música, abstrata, portanto e menos interessada em estruturas, como a psicologia, e mais no individual visto globalmente, a essência do poético. Aí a psicologia pode se aplicar ao poeta: Emily Dickson e Henriqueta Lisboa solitárias e estoicas observadoras e retratistas do Belo e do Efêmero, João Cabral de Melo Neto preocupado com a miséria nordestina e sua transmutação poética. Jorge de Lima veiculando seu catolicismo e sua descoberta do negro em poemas como os de Túnica Inconsútil e Poemas Negros.
O terreno propício para a simbiose literatura/psicologia é, porém a prosa, nela se incluindo evidentemente a dramaturgia, (mesmo quando poética e rimada, como em Shakespeare), o conto, o romance, se quisermos falar em gêneros literários que hoje em dia se diluem no polivalente do termo genérico de “ficções”. Mas o terreno ideal é o da biografia: literária, histórica etc.
E como ensinava a sabedoria imorredoura da Grécia Antiga: com a justa medida obtém-se o ideal. A virtude reside em não deixar que a psicologia sufoque a literatura, virando uma tese doutoral, nem que a literatura dilua a psicologia das personagens a ponto de invalidá-las em sua credibilidade e autenticidade. Fora disso, talvez não seja exagerado dizer que há literatura sem psicologia, porque ambas coincidem na análise e, em certos casos, se possível, na diagnose do homem, isolado ou em convívio com seus semelhantes. Suas conclusões podem divergir, mas ambas partem da mesma premissa de autoinspeção do abismo que os russos, como Dostoievski, chamavam de alma e que hoje chamamos de condição humana, como preferia Malraux. O que, afinal de contas, vem a dar no mesmo.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Psicologia e literatura. As boas e as más relações},
booktitle = {Conferências, ensaios e alguns artigos especiais},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {9},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-9/06-psicologia-e-literatura-as-boas-e-as-mas-relacoes},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {Psicologia Atual, sem data (revista editada de 1977-86).
Aguardando revisão.}
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