O mundo exposto de Moravia

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1990/09/29. Aguardando revisão.

O escritor italiano Alberto Moravia, morto na quarta-feira, exibia aos seus leitores uma realidade feia: o homem com alucinado orgulho, um profundo desejo de morte, de violência, de destruição. Ele foi o escritor engajado politicamente, o ensaísta que combateu o fascismo e também fustigou o realismo socialista.

Alberto Moravia irrompeu pela literatura italiana adentro como um jorro de asco. Gli Indifferenti, tornado público em 1929, lançava à notoriedade e a uma fervorosa polêmica nacional aquele jovem de 22 anos, que desenhava seu nojo da sociedade armada pelo fascismo de Benito Mussolini como um painel amargo, sem ilusões de uma sociedade apodrecida pela corrupção, pelos pactos feitos com o totalitarismo e cujos deuses supremos – o sexo, o dinheiro, o prestígio social – manifestavam a esquizofrenia de uma época cuja linguagem não era apenas o maniqueísmo da verdade ou da mentira, mas a hipocrisia, um aparecer mundano, esvaziado de qualquer conteúdo vivo.

Os esbirros que sempre se adensam em torno do poder, principalmente o poder autoritário, escandalizavam-se. O mundo que Moravia colocava diante de seus leitores era imoral ou amoral? O Fascio deixara bem claramente delineadas as suas ordens: nada de literatura que tratasse de “problemas”, que se referisse a uma realidade “feia” ou que ferisse o pudor. Em quase tudo semelhante ao realismo socialista soviético imposto às artes, no Decálogo fascista sobressaía entre todos os mandamentos o do não “emporcalhar” a visão gloriosa da Itália, herdeira das supremas tradições do Império Romano.

E em vez de uma arte “requintada”, “superior às mesquinharias humanas”, com que depara o leitor? Com a luxúria mais devastadora, com a cupidez sem limites pelo dinheiro, não importando como obtê-lo. Que belo exemplo para a juventude, “primavera de beleza”! É como o sudário a envolver aquelas tramoias da pequena burguesia peninsular - a indiferença. Nada tem importância: tanto vale a crueldade quanto a caridade, o amor tanto quanto a libido ou a avareza.

Que resolveram fazer os altamente graduados, encarapitados na hierarquia que, como os labirintos do Minotauro da mitologia grega, conduziam ao Duce, diante de tal ousadia? Susurraram uns aos ouvidos dos mais graduados ou vice-versa que o melhor era ignorar completamente o nome de Alberto Pincherle, silenciando sobre as obras desse pequeno hebreu claudicante devido a uma longa enfermidade na infância e na adolescência.

Moravia/Pincherle não se deu por satisfeito: depois do seu segundo romance, Le Ambizioni Sbagliate (“As Ambições Desperdiçadas”, aproximadamente), de 1935, enveredou por contos que sugeriam nitidamente o fantástico, o fantasmagórico, como a coletânea de 1940, I Sogni del Pigro (“Os Sonhos do Preguiçoso”). Ah, exclamaram aliviados os censores privados de seu órgão vital, a tesoura: Agora sim vê-se que o bem comportado Signor Moravia tomou juízo; não veem que agora se preocupa só com histórias surrealistas, o que denota uma clara intenção formalista, como não?

La Mascherata, no ano seguinte e já em forma de romance, porém, ultrapassou todos os limites, francamente! Será que o Grande Condutor dos Povos, Mussolini, ele próprio, jamais se reconhecerá no ditador bufão, grotesco, desse texto destemido e ácido, Madonna?! O Grande Condutor cedeu às vontades da sua “corte”: proibiu a reimpressão de tal palhaçada, censurando-a pessoalmente com suas augustas mãos.

Maldito Moravia! Não é que insiste? De novo?! De novo! Desta vez alguns críticos atilados que restaram em meio às tumbas de silêncio comedido advertiram, sotto você, quase a cochichar cautelosamente entre si nos cafés literários de Roma, Florença, Milão, Bolonha: L’Epidemia vai custar ao autor no mínimo a prisão ou quem sabe o exílio para terras conquistadas ao Negus da Abissínia (hoje Etiópia) e à Líbia, no norte da África? L’Epidemia é o ápice de uma coleção de histórias, racconti, sem dúvida ardilosa: num país qualquer, não especificado, o odor nauseabundo que emana da cabeça dos que contraíram uma doença ignota – a epidemia – se torna tão entranhado nas narinas de todos que – milagre! – todos se deliciam com aquele repulsivo cheiro de carniça em adiantado estado de decomposição a ponto de o considerarem um perfume requintadíssimo. Haveria uma condenação moral mais fulminante da submissão que se apoderou de grande parte da população submetida às fanfarronices histriônicas encenadas no balcão do Palazzo Venezia, em Roma?

Pressurosa, a Igreja Católica não se fez de rogada, como mais tarde os bispos católicos alemães abençoarão os tanques nazistas e borrifou suas bençãos sobre os que defendiam o Lar, a Pátria, a Família fascistas e colocou a obra de Moravia – ora, onde já se viu! – no Índex de textos proibidos a sadios olhos católicos. Que pena que a Inquisição fora abolida!…

Alberto Moravia parece sentir-se, como Pasolini, mais à vontade quando retrata tipos populares de Roma, as prostitutas, o zé-povinho em La Romana, La Ciociara, relato do qual o diretor De Sica fez um filme inesquecível com Sophia Loren e intitulado entre nós Duas Mulheres. Suas várias facetas de homem mundano, cercado de mulheres belíssimas, de escritor engajado politicamente, mas que martela incessantemente em suas discussões ferozes com os marxistas, o que chama “a autonomia” da arte de ideologias políticas construídas a priori. Moravia exemplifica a lucidez da Esquerda italiana, incapaz de se entregar, atada dos pés à cabeça, ao stalinismo, como os “simpatizantes” do Partido Comunista filo-moscovita francês com seus Althussers, Sartres e Mmes. de Beauvoir. Como Pasolini e como um socialista italiano do destemor de Craxi, Moravia fustiga a noção de “realismo socialista” em uma de suas obras que deveria ter sido publicada entre nós pela luz meridiana e sem sectarismo que lança sobre os contatos da arte com uma ditadura ou melhor com o totalitarismo soviético anterior à era atual de Mikhail Gorbatchóv.

Seu profundo livro L’Uomo come Fine e altri Saggi (“O Homem como fim e outros ensaios, completado por suas visões (menos interessantes) da África:”A quale tribu appartieni?” (“A que tribo pertences?”) destila raciocínio e sabedoria, mesmo agora, com a desintegração do marxismo-leninista de Moscou, a queda do Muro de Berlim em novembro passado e a democratização de toda a faixa de países ex-satélites do império soviético, da Polônia à Tchecoslováquia, à Hungria, à Bulgária e à Romênia.

O ensaísta como que se confessa já desde o prefácio, aludindo ao motivo maior pelo qual o mundo moderno é anti-humanista: o mundo hoje exibe com alucinado orgulho um profundo desejo de morte, de violência, de destruição: o ato suicida final das duas grandes guerras mundiais. Há um desgaste no mundo do pós-guerra, um cansaço, o ruir do humanismo tradicional, um imobilismo e um conservadorismo completados por uma atitude de hipocrisia diante dos eventos bélicos sumamente trágicos da primeira metade de nosso século. Ele liga esse anti-humanismo, em linhas gerais, à saturação do consumismo proveniente do neocapitalismo: para Moravia o homem dotado de todas as geladeiras, supermercados, automóveis, aparelhos de tv e mísseis como que se afoga no tédio, no asco, na impotência e na irrealidade de sua situação. As artes contemplam e refletem esse nada, esse zero que aflige as massas e os indivíduos. Provavelmente a nulidade da arte se deve, ele especula, à transformação das artes em bens de consumo. O que significa que a arte moderna é um sucedâneo, um Ersatz ou que pelo menos para as massas ficaram apenas os sucedâneos da indústria cultural.

Essa argumentação enlaça-se com o ensaio magistral, o mais importante, talvez, que Moravia jamais escreveu, intitulado Il Comunismo al Potere e I Problemi della’Arte (“O Comunismo no Poder e os Problemas da Arte”). Para sua agudíssima percepção – e hoje em dia podemos compreender melhor do que nunca as suas palavras – qualquer determinismo, como o comunista, por exemplo, não só no plano econômico determina a morte da arte como uma flor sem ar. Os marxistas – argui - querem uma arte completamente social, mas aos temas impostos como o quadro homenageando o operário-padrão namorando uma moça que o admira por isso um belo dia ficará impregnado, não mais de propaganda das metas econômicas ditadas pelo Estado ou pelo Partido, pois o erotismo subentrara tal comemoração, pois “A natureza é que rege a arte, não a sociedade”. A diferença entre a arte coercitiva dos comunistas, sempre fidelíssima à linha ideológica ditada por outrem, e a arte dos pintores da Idade Média italiana é que estes não podiam deixar de ser fiéis à Fé cristã, ao passo que os artistas comunistas têm o direito de escolher entre ser ou não ser comunista, ou teriam esse direito sempre que se respeitasse a autonomia, quer dizer, a liberdade criativa, que lhe é inerente. As teorias marxistas que concernem as supra estruturas aplicam-se ao problema da produção industrial da arte de algum modo, porém, conduzem a uma nova definição, apenas a uma arte “correta”, mas feia, manquée. A arte já floresceu, obliquamente, em tempos privados de liberdade, o que é mais importante ainda para que a arte floresça é que o corpo social seja feito da mesma matéria que a arte em si. A submissão da arte a uma teoria extrínseca à arte comporta pelo menos riscos e está cheia de decepções. Imagine-se por um momento o contrário: a política concebida segundo ditames estéticos…

A sociedade comunista até hoje, ao lado dos artefatos de engenharia mecânica nada produziu que se compara a Guerra e Paz de Tolstoi nem a Boris Godunov. Por quê? Porque o realismo socialista consegue ser realista a respeito de tudo exceto a respeito do socialismo. Uma sociedade que por algum motivo não pode, não quer ou não sabe contemplar, eis a sociedade que resultou de tais diretrizes.

Moravia libera a arte de propósitos morais estreitos, aderindo a a uma visão francamente grega, helênica, pagã. A arte se relaciona com a vitalidade de uma sociedade, não com a sua moralidade. A teoria do marxismo com relação à arte pensa mais na utilidade da arte do que na sua autonomia. Daí uma arte que não se desenvolve, presa fixamente a um ideal imóvel. Assim como a lei da mais-valia aliena o operário em termos econômicos, a alienação do artista na ditadura comunista será no campo expressivo.

Com o comunismo no poder, a arte “celebra” os feitos que lhe são impostos, portanto a arte entra em crise, sob os tenazes do dogmatismo e dos preceitos a que se deve submeter à força. Quando Mao Tsé-tung em 1973 asseverou que a arte, seja em que nível for, deve trabalhar para o povo e somente para o povo, é justo perguntar-se: mas de que modo? O proletariado imita, quase sem o saber, a burguesia do pior período vitoriano, na URSS.

De Alberto Moravia nos fica um legado vário, rico, não homogêneo, que só o tempo permitirá avaliar, escolher, sopesar melhor. Como a validez candente de sua pergunta a um questionário que lhe submeteram, há décadas, antes que se pudesse prever a Comunidade Europeia de Nações que se inaugura solenemente em 1992: “É possível existirem ainda histórias nacionais na Europa?”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “O mundo exposto de Moravia .” In Perscrutando a alma humana: A literatura italiana do pós-guerra, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 8. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.