A humanidade alucinada de Dalton Trevisan. Mostrada com sensibilidade e humor no livro Pão e Sangue

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1988-3-19. Aguardando revisão.

Dalton Trevisan conseguiu resumir sua implacável odisseia doméstica, sua feroz guerra conjugal, em frases telegráficas. Até em hai-kais mínimos, sintéticos ou em versos, ele pode relatar uma tragédia incongruentemente kitsch e inebriante:

“Uma vez até rasgou o biquini

Minha honra ameaçada

Só Deus e eu sabemos

Cansei de fingir que o amava

Ser a escrava, a mulher, a mãe

Bêbado queria fazer de tudo

Até o que uma mulher da rua tem vergonha

Antes de deitar esfreguei no corpo

O repelente contra mosquito

Sirvo pó de vidro e barata

Na sopa de feijão

Quebrou na pia o elefante vermelho

Derramo álcool no vestido, boto fogo.”

São cromos intercambiáveis dessa batalha sem fim. O alcoolismo, a libidinagem sufocada pela hipocrisia beata, o inferno do sexo nunca satisfeito têm agora um novo elemento: o negro. O negro, para a maioria preconceituosa de brancos do Brasil meridional, de origem europeia, representa o medo, o monstro de proezas sexuais inenarráveis, o ladrão e criminoso a ser temido e vagamente, inconfessavelmente desejado por esposas e solteironas insatisfeitas. Aqui, a imagem, é a que a pequena burguesia branca curitibana faz do homem de cor, desalmado, procurado pela polícia, capaz dos piores crimes e maldades, em busca de louras que possa cobrir de joias dos pés até a cabeça…

É inútil afirmar que Dalton Trevisan se repete. Um encontro amoroso também é uma repetição de gestos e nem por isso deixa de ser desejado e sonhado. Neste livro mais recente, Dalton Trevisan usa de um método novo, o relato à la Rashomon, isto é, um acontecimento visto ao mesmo tempo pelas vítimas, pela testemunha e pelo presumível malfeitor. Tudo se torna subjetivo: onde estará a verdade pirandelliana, Cosi è se vi pare, assim é, se assim lhe parece? A mulher afirma que três malfeitores mataram barbaramente o seu marido. Na delegacia de polícia o acusado nega e começa a dar detalhes escabrosos de como ela é que pediu para ser currada etc. O leitor é que deve tirar conclusões que lhe parecerem atendíveis: Dalton Trevisan iniciou sua “obra aberta”, aquela em que os doutos Umberto Eco e irmãos Campos distinguem a não-interferência do autor: o final fica em aberto, para ser completado por quem lê. Os “Três Mascarados” (seriam quatro, com o vulto impreciso, o quinto, mal e mal discernível na soleira da porta?) deixam em dúvida se a mulher foi conivente no assassínio de seu marido João, que dormia com ela, por facínoras armados de barras de ferro, ou se o depoimento de um dos criminosos é que reconstituía a verdade. A mulher, desta vez, não é a megera sádica a colocar vidro moído na comida do honesto cumpridor dos deveres da casa, é a mártir do amor impoluto. Mata-se no tanque até se descadeirar. Apanha ignominiosamente do marido eternamente bêbado, dorme com medo da ameaça de ele lhe cortar o pescoço assim que ela pregasse no sono. Até que resolve pegar a marreta escondida debaixo do assoalho. Com algumas marretadas sem piedade o deixa uma poça de sangue só. Certa de sua morte, ele ainda estrebuchando, rebelde, ela faz o escarcéu de chamar os sogros, acordar os vizinhos, em escândalo:

“- Sogra do céu. Mataram o João. Dois bandidos!”

Mas a sogra leva o caso para um plano de castigo mais terrível do que a cela da polícia:

“A velha me olhou bem:

Tremia de medo que ela descobrisse a verdade.

A história sofre uma alteração de 180º. A culpa é algo móvel: de quem partiam os maus tratos que destroçavam o coração de um vivente sensível, desesperado?

Dalton Trevisan se permite até paródias deliciosas com os versos famosos da Canção do Exílio de Gonçalves Dias, invertendo-a, porém, para despejar sobre a maldita Curitiba sua maldição eterna:

“Não permita Deus que eu morra

Sem que daqui me vá

Sem que diga adeus ao pinheiro

Onde já não canta o sabiá

Morrer ó supremo desfrute

Em Curitiba é que não dá

Nada de orador à beira do túmulo

Já imaginou o presidente da OAB pipilando o verbo

Os trezentos milhões da Academia Paranaense

Arrastando-se de maca, bengala, cadeira de roda

Às baratas leprosas com caspa na sobrancelha

Aos ratos piolhentos de gravatinha-borboleta

Sem esquecer das corruíras nanicas

Trincando broinha de fubá mimoso

Ah nunca morrer em Curitiba

Para sofrer até o Juízo Final

A araponga louca da meia-noite

Embebendo em gasolina o vestido negro de cetim

Vejam o que fizeram com a Maria Bueno

Depois de santa é líder feminista”

Como num rosário, aí estão as contas que compõem o mundo curitibano de Dalton Trevisan: seu horror às homenagens, as mulheres que são viragos implacáveis, as corruíras nanicas, a araponga louca da meia-noite, as bailarinas de inferninhos que se prestam a cerimônias longas de masoquismo masculino, empunhando um chicote e as esposas ou memos as amantes desesperadas ateando fogo às vestes, num “gesto tresloucado”, como o escrivão da delegacia de polícia geralmente consigna.

Talvez os trechos mais cruéis são, de fato, as duas linhas de hai-kai, como por exemplo:

“A velhinha, meio cega, trêmula e desdentada:

Ou:

“Em agonia, suspirando e gemendo, afasta a mão pesada da velha:

Ou ainda:

“Nhô João, perdido de catarata negra nos olhos:

“Na hora de assinar, o velho muito fraquinho, com aquele óculo torto:

O magistral autor curitibano brinca com citações da Bíblia, com o Zen: “Não é o som de uma só mão que bate palmas?” E resume num relance livros inteiros anteriores com sua multidão “açoitada pela luxúria”, numa paródia dos versos famosos de Baudelaire “la foule fouettée par le plaisir” (“a multidão chicoteada pelo prazer”): “O arrepio lancinante no céu da boca é o mesmo das cocadas negras, rosa, branca de nhá Rita – ó suprema delícia da tua infância”, numa imitação sutil da evocação da infância de Proust através dos bolinhos de Madeleine. As maravilhosas frases-feitas da classe média baixa curitibana, que afinal simboliza toda a classe média baixa e seus valores, no Brasil e possivelmente em outros países também, se espelha no bom mocismo de fachada, no puritanismo fingido que mal esconde a vibração sexual de sátiros em maldita busca de ninfas nunca possuídas: “Basta beijar o pé da mulher, ela te espezinha. Se bem escrava do dinheiro, João não se iluda: o amor aqui não é chamado”. Essa retórica machista, que parte da desconfiança do homem e da sua crença no caráter essencialmente falso, dissimulador, da mulher o faz descambar para a frequência dos bordéis: “O amigo frequenta o apartamento da famosa tia Olga: bacanal a três, virgem louca e tudo”. E possivelmente a história intitulada “O Arrepio do Céu da Boca” seja o melhor deste 21º ou 22º livro de Trevisan. São instantâneos congelados de situações homem/mulher em toda a sua crueza.

Diante da posse iminente o homem delira:

“- Ó catedral, ó turbilhão, ó beijos, ó abismo de rosas!”

E as imagens são os lugares-comuns de sempre: a moça que recebe o cinquentão em seu apartamento foi “violentada de pé contra a máquina de costura”, por um primo no interior. “À palavra querido ele já leva a mão na carteira.” Quando ela lhe comunica que está grávida, mas “de você, não, bobinho”, ele ouve o coral dos anjos do céu: “O dedo de Deus enxuga o teu suor frio na testa – e ainda há tolos que não acreditam”. Ela, fiel a Jesus, tampouco quer se desfazer do filho: “- Crente, não sou? Esse filho eu quero. Vai me fazer companhia”, e o comentário seguinte do coronel aliviado: “Salve, salve a igreja quadrangular, glórias a Jesus Cristo dos últimos dias, aleluia”. Logo o pai postiço se preocupa com os maços de cigarro que a futura mãe fuma: “Não sabe que, cada cigarro, o nenê também fuma?” “Ah, coração da bem-amada é ninho de tarântulas cabeludas”…

Há os que acusam, injustamente, Dalto Trevisan de repetir-se. Não atentam para as pequenas originalidades, inovações de cada coletânea de contos. Aqui e ali o homossexual, em outras histórias, como agora, o negro, embora visto apenas pelo lado estereotipado, maléfico, do preconceito da classe média baixa de origem branca. Mesmo os crimes hediondos de esposas contra esposos e vice-versa adquirem aqui não mais aquela clareza quanto a quem é o assassino e quem a vítima. Fica tudo em aberto, as culpas talvez repartidas equanimemente.

Dalton Trevisan se atém, é verdade, a poucos temas: a luxúria, o alcoolismo, as frases-feitas da cafonice burguesa, as noções bíblicas de pecado, os terreiros de umbanda para desfazer amores malignos, os desígnios assassinos entre marido e mulher que vivem em permanente guerra, ilhados em suas solidões a dois. A mentira e o estoicismo autêntico, o desespero de uma vida infernal que só pode terminar com um crime, o desejo carnal elevado a uma obsessão tragicômica e humilhante – este é o seu mundo, que só poderá parecer limitado se for visto horizontalmente, mas que em profundidade de percepção humana é um tratado de Schopenhauer sobre a desumanidade do homem para com o seu semelhante, salpicada aqui e ali de mártires heroicos, homens e mulheres, crianças e velhos.

Até, nesta coleção, o descalabro do Brasil de hoje, com o desemprego, a carestia desenfreada entram como motivo para as tentativas de suicídio, para as explorações de uma relação sexual por parte do elemento sugador numa relação tão instável quanto falsa.

Afinal, mesmo quando se repete, Trevisan é um mestre, um espelho a repetir fielmente os trejeitos de sua humanidade alucinada, rebotalho do amor, como diria um de seus boleros kitsch. Lê-lo é sempre uma novidade, pelos labirintos novos de humilhação e baixeza humanas que apresenta, sem desculpas nem acusações nem promotor nem advogado, um sismógrafo finíssimo e cheio de humor dos tremores da fragílima condição humana.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1988–3AD) 2023. “A humanidade alucinada de Dalton Trevisan. Mostrada com sensibilidade e humor no livro Pão e Sangue.” In Grandes contistas brasileiros do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 10. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.