Muito sveglia

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Veja, 1974-04-24. Aguardando revisão.

O fantástico sempre foi um dos componentes mais importantes da magistral contista pernambucana Clarice Lispector. E, nesta última coletânea de seus contos (Onde Estivestes de Noite?), o surrealismo de situações alucinantes é a tônica dominante. Por exemplo: uma mulher quer ter um filho com seu despertador, outra se perde nos labirintos do Estádio do Maracanã, sem saber como sair nem como entrou lá. Ao mesmo tempo, reaparecem os temas e protagonistas-chave de seus livros anteriores (Laços de Família e A Legião Estrangeira): a equiparação constante entre o ser humano desamparado e um animal (“De pé no banheiro era tão anônima quanto uma galinha”) ou a aguda percepção dos velhos como sucata humana imprestável na atual sociedade tecnológica de consumo (“Dona Maria Rita pensava: depois de velha começara a desaparecer para os outros, só a viam de relance”).

Alternam-se as histórias mais longas, iniciais, e os contos-relâmpago, de uma ou duas páginas apenas, como o vislumbre do sagui no ônibus e a história complexa dos múltiplos amantes em Niterói (“Uma Tarde Plena” e “Um Caso Complicado”). É uma Clarice Lispector que se compraz em esboçar uma cena tocante ou até mesmo em abandonar pelo meio uma narração semi-improvisada, semiverídica.

“À Procura de uma Dignidade” e “A Partida do Trem” são os momentos melhores do livro. Mas, em “O Relatório da Coisa”, o clima absurdo da mulher que fica obcecada pelo seu despertador de marca Sveglia é de admirável dosagem no crescendo ilógico, na ampliação de seus círculos concêntricos do irreal: “Tive uma empregada por sete dias, chamada Severina, e que tinha passado fome em criança. Perguntei-lhe se estava triste. Disse que não era alegre nem triste: era assim mesmo. Ela era Sveglia. Mas eu não era e não pude suportar a ausência de sentimento. Suiça é Sveglia. Água, apesar de ser molhada por excelência, é. Escrever é. Mas estilo não é. Ter seios é. O orgão masculino é demais. Bondade não é… E, por incrível que pareça, Coca-Cola é, enquanto Pepsi-Cola nunca foi”.

Sem a intensidade do esplêndido Água Viva nem a uniforme qualidade de Laços de Família, no entanto, Onde Estivestes esta Noite? (o conto que dá título ao livro é justamente o menos significativo de todos) deixa perpassar sempre a altíssima tessitura de pensamento, sensibilidade e estilo de uma das supremas escritoras da língua portuguesa. Ou como diria a autora, mesmo se algumas páginas são pouco Sveglia, outras têm Sveglia o suficiente para despertar uma Suiça inteira da atrofiada alma humana.

Reuso

Citação

BibTeX
@incollection{gilson ribeiro2021,
  author = {Gilson Ribeiro, Leo},
  editor = {Rey Puente, Fernando},
  title = {Muito sveglia},
  booktitle = {Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa,
    Clarice Lispector e Hilda Hilst},
  series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
  volume = {2},
  date = {2022},
  url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-2/2-clarice-lispector/04-muito-sveglia.html},
  doi = {10.5281/zenodo.8368806},
  langid = {pt-BR},
  abstract = {Veja, 1974-04-24. Aguardando revisão.}
}
Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1974) 2022. “Muito sveglia .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.