Kafka em Praga
Depois que Baudelaire celebrou o mistério fosforescente da grande cidade, grandes novelistas contemporâneos se vêm identificando indissoluvelmente com a metrópole moderna. Paris, espelhada na prosa de Proust, é parte determinante do matiz e da formulação estética de sua Recherche. Borges e Buenos Aires, Svevo e Trieste, Musil e Viena, são outros binômios ilustrativos dessa fusão crescente de toda uma gama de relações entre o artista e o seu clima ambiental. Desde o sarcasmo devastador que Thomas Mann arremessou contra a sua Lübeck provinciana ao apaixonado “I don’t hate it!” reiterado por Quentin Compson em relação ao Sul ancestral e violento da saga faulkneriana, há uma intensificação dessa interdependência, até atingir a ruptura do ódio. Joyce ao defrontar-se com a sua odiada-amada Dublin tipifica a dualidade de reação a um ambiente alternadamente execrado e exaltado, que descreve uma parábola: das vitriólicas e sombrias histórias iniciais de Dubliners até às imagens oníricas, tachistas da reconciliação final de Finnegans Wake.
A hostilidade sem alternâncias de ternura manifesta-se claramente no ódio que Kafka votava à sua Praga natal. Foi para ele sempre “die verdammte Stadt”, a cidade maldita, “das Mütterchen mit Krallen”, a mãezinha com garras, que não permite o expatriamento do prisioneiro, sob a guarda dos dois castelos, Hradeany e Vysehrad, como duas sentinelas soturnas vigiando do alto as suas tentativas frustradas de romper o cerco. Fora do Labirinto, ele pressente Canaã, a liberação, a plenitude sonhada mas inacessível: “havia, finalmene, um terceiro mundo, no qual o resto da humanidade vivia feliz, livre tanto das ordens quanto da obediência”. Como no conto “Diante da Lei”, Praga fechara a porta ao postulante Kafka em busca da sua identidade de prematura “displaced person”. Mais ainda: Praga murou-o de ambos os lados, “ché la diritta via era smarrita”, não lhe concedendo, por um lado, a fuga, nem, por outro, a ambicionada integração em qualquer dos “três guetos” que como círculos concêntricos selevam o seu inferno pessoal: a não aceitação pelo país de nascimento, pela colônia alemã ou pela minoria judaica às margens do Vltava. Condenado a permanecer equidistante, no seu isolamento, do mundo real e do Éden intuído, ele como o Karl Rossmann de Amerika, permanece “der Verschollene”, o desaparecido (título inicial da novela) sem aclimatar-se na América nem regressar à Europa.
Mas a germinação de uma obra literária, com as suas profundas raízes sociais e psicológicas, ao tranformar os elementos ambientais que a nutrem incorpora-os definitivamente à sua floração artística. Praga permeia assim a criação literária de Kafka e desempenha nela um papel kafkianamente ambivalente, estabelecendo o contraponto entre a sua onipresença e a hostilidade que desperta no rebelde impotente. Não são apenas as referências concretas, visuais, das pontes, ruelas e catedrais da esplêndida cidade barroca que se disseminam, identificáveis nos contos e novelas. A mera leitur de um guia turístico da capital tcheca revela a sua identidade paradoxal, a imanência do surrealismo que contém, como num quadro de Chagall ou de Tanguy, à espreita para arrojar-se ao mundo incontrolado do inconsciente e do pesadelo. Perto do gueto judeu, o relógio da torre negra e esguia marca as horas para trás, como que em busca do tempo perdido, uma ampulheta invertida desafia a lei da gravidade, uma formulação da relatividade einsteiniana das nossas convenções de espaço e de tempo. Apollinaire, ao visitar a cidade, cantou em seus versos o poeta “que retrocede lentamente pela vida/ rumo a Hradcany noite adentro/ e ouvindo como nas tavernas/ se cantam canções thecas”. Versos que poderiam descrever o encontro de Kafka com a sua urbs: ele reflete, na sua transfiguração poética da realidade, o retrocesso, no tempo, dos ponteiros retrógrados. A sua visão do gueto é idêntica à evocação proustiana do passado através da memória, mas a sua é uma visão demoníaca, de um passado de opressão. Sob a aparência higiênica do gueto recém-saneado que ele percorre agora, o gueto onde os judeus viviam “hinter dem Draht”, detrás da cerca de arame, em quarentena, só atingindo a igualdade perante a lei em 1860. Kafka divisa a imagem-arquétipo do Medo, do Terror, do pogrom violento:
“Vivem ainda em nós, sempre, as esquinas sombrias, os becos secretos, as janelas vedadas, as áreas internas imundas dos edifíceios, os botequins barulhentos e as pensões fechadas. Andamos pelas ruas amplas da cidade reconstruída. Interiormente trememos ainda commo outrora, nos velhos becos da miséria e da angústia. Nosso coração nada sabe ainda do saneamento urbano. A velha e insalubre cidade judaica existe com muito mais realidade em nosso espírito do que a nova e higiênica cidade que nos circunda. Acordados atravessamos uma paisagem de pesadelo, nós mesmos espectros de eras passadas.”
A sinagora principal da cidade é incoerentemente de estilo gótico, que inspirara as esplêndidas catedrais da Fé cristã e tem o nome de altneu (Velha-nova), numa justaposição de antônimos que em Praga não causa espanto. Não é fortuita assim a escolha de Marienbad por Alain Resnais para a elaboração do seu magnífico caleidoscópio – a Tchecoslováquia confirma aquela pluralidade de verdades, que coexistem com possibilidades de verdade, com enigmas e enganos num complexo embaralhamento de interpretações, todas possíveis e todas relativas. Como a sinagoga ambivalente, velha e nova, a mesma dicotomia dilacera a visão que Kafka haure do mundo: para cada conceito alemão há outro tcheco e outro ainda, judeu; cada sucesso na carreira burocrática da Cia. de Seguros em que trabalhava exclui um sucesso na criação literária; ao Sionismo se opõe a assimilação ao meio cristão; à possibilidade de casamento o celibato, propiciador da literatura, sacerdócio laico mas não menos transcendente. Sem esquecer a cisão angustiante entre “os outros” que o circundam – participantes plenos daquela vitalidade animal que Thomas Mann exaltara como virtude inacessível ao artista – e o seu mundo de heróis anêmicos, abulicos quase, que não dominam a realidade palpitante, grosseira, viva, como os “ineptos” de Svevo Kafka capta integralmente essa relatividade de critérios e a reflete como angústia e frustração. Em seis anos, por exemplo, sua família muda-se cinco vezes de residência, sem sair porém do enclace judeu do “Altstaedter Ring”. As casas em que morou sofrem profundas metamorfoses: de convenos beneditinos transformaram-se em cabarés e bibliotecas. Tudo se apresenta em fluxo, mutável, instável.Essa instabilidade se espelha no seu nos seus relatos em que vários personagens principais são viajantes, obedecendo à dinâmica interior de uma busca incessante: K. em O Castelo, Karl Rossmann em Amerika, o visitante da ilha na Colônia Penal ilustram a frase de Kafka contida no seu Diário e que reflete a mesma atração de Rimbaud pela “délice fluyant des stations”:
“Talvez eu não possa, não me seja permitido permanecer muito tempo no mesmo lugar; há pessoas que só conseguem sentir-se”em casa” quando estão em viagem”.
Esse tema de fuga, da emigração desde cedo o preocupava: é possível que Amerika simbolize o seu anseio frustrado de aceitar o mundo circundante: materialista, prosaico, mecânico, robusto, já que a intergração só podia significar, a seus olhos, a “cura” do seu humanismo, do seu pendor artístico. Karl Rossmann é foguista e aspira a ser engenheiro, profissões práticas, que interferem concretamente na vida humana, deixando de lado tudo que é abstrato, inútil, “artístico”. Da periferia da vida da qual observava os demais, Kafka considera a princípio como uma transgressão da Lei esse ostracismo e recorda a observação de Flaubert, a respeito dos camponeses, que vivem “dans le vrai”, livres de esteticismo e da inação. Seu sentimento de culpa, que já erigira o Pai em Jeová vingativo, em juiz supremo, acarreta a punição terrível: Gregor Samsa transforma-se em monstruoso inseto, o transgressor sobre em Colônia Penal o diabólico castigo, em O Julgamento o filho arroja-se da ponte e em O Castelo e O Processo os personagens centrais são sentenciados sem apelação por tribunais inflexíveis. Exponencialmente, Karl Rossmann fica prensado entre a inadaptação à América e a impossibilidade de voltar à Europa: o grosseiro parque de diversões de Oklahoma não siginifica a esterilidade do waste land moderno, de um mundo secularizado, sem princípios nem valores espirituais? Temor assinalado nos seus monólogos: “Era certo que eu encontraria um meio de acesso a este mundo? Não poderia o exílio de um lado, coincidindo com a rejeição por parte do outro, ter-me esmagado no ponto de seu choque?”
Há porém uma reviravolta decisiva no confronto de Kafka com a vida, a princípio conformista e impotentemente passivo. Diante da pluralidade de tudo, ele sentia o repto mais profundo ainda da bifurcação do idioma, a matéria-prima por excelência do escritor. Nas cartas a Milena, são frequentes as referências ao idioma tcheco, no qual ela lhe deve escrever porque representa o que Milena é, ou seja: no idioma está a vitalidade, o idioma representa a autenticidade o indivíduo, mormente se ele for um artesão da palavra. Para um músico ou para um pintor, essa dualidade de linguagem é secundária: seus meios de percepção e de expressão são visuais, auditivos, e independem de uma cosmovisão traduzível em palavras, sendo universalmente compreensíveis como imagem, som, ritmo e cor. Mas para Kafka os elementos contraditórios das duas línguas assumiam uma feição concreta ao deixar sua “reserva” residencial e verificar o desaparecimento brusco dos nomes alemães nas praças, avenidas, lojas e bares fora do “quisto” germânico citadino. Durante longo tempo ele não decifra esse enigma de elementos que se eliminam mutuamente, tornando indecisa e impotente uma visão do mundo, porque arbitrária, relativa. Para restabelecer a Lei por ele tão frequentemente invocada, Kafka inverte audazmente a sua interpretação: a Lei que não se pode infringir, reconhece agora, é a do indivíduo, não a do anátema da coletividade, mas sim a que determina que sejamos fiéis a nós mesmos: “O que é essa Lei então? É aquilo que é indestrutível em nós mesmos, é ser indestrutível ou, mais precisamente: ser”. Para restabelecer o reino do Absoluto, única saída do labirinto da relatividade. Submerge, como relata Emmanuel Frynta, na totalidade da palavra, conceito cabalístico judaico:
“Como e angustia eque terrível é não podermos arrojarnos em cada palavras com tudo o que somos, de forma que quando esta palavra for atacada, possamos nos defender ou ser integralmente destruídos!”
Como nas seitas ocultistas cujos ensinamentos deslumbraram Baudelaire ao atribuir à palavra o poder de fixar a essência da Beleza além da morte física (como em “La Charogne”), a palavra é reconhecida por Kafka como sendo dotada de um poder mágico, encantatório, como ele respodera à pergunta de Gustav Janouch: “Não diria que a literatura conduz à religião, mas certemanente conduz à prece”. Kafka, incapaz de ação no mundo físico, passa do conceito goethiano do Fausto – no princípio havia ação – para o da Bíblia judaica: no princípio havia o Verbo. A palavra em suas mãos passa a ser um elemento dinâmico, de liberação, ele assume a sua condição humana através da literatura. Saída do seu exílio de passividade e segregação, a palavra é o exorcismo da maldição ancestral de Praga.
Reuso
Citação
@incollection{gilson ribeiro2021,
author = {Gilson Ribeiro, Leo},
editor = {Rey Puente, Fernando},
title = {Kafka em Praga},
booktitle = {Testemunhos Literários do século XX},
series = {Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro},
volume = {3},
date = {2022},
url = {https://www.leogilsonribeiro.com.br/volume-3/4-franz-kafka/03-kafka-em-praga.html},
doi = {10.5281/zenodo.8368806},
langid = {pt-BR},
abstract = {O Estado de São Paulo - Suplemento Literário, 1966/03/12.
Aguardando revisão.}
}