A véspera do livro Nossa Senhora das Flores

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Correio da Manhã, 1965/07/31. Aguardando revisão.

Pela primeira vez em língua portuguesa, este Suplemento divulga alguns trechos do romance de Jean Genet, Nossa Senhora das Flores, cuja tradução vem custando a Leo Gilson Ribeiro meses de trabalho intenso. Ao transplantar essa flor do mal para as letras do Brasil, é preenchida uma lacuna importante, pois o fenômeno Genet é objeto de vivas controvérsias na França e em muitos outros países: Sartre decicou-lhe um monumental ensaio crítico e liderou a lista de intelectuais que solicitaram a comutação da pena imposta pelo Ministério da Justiça, em Paris, ao escritor ladrão, preso em quase todas as cidades da Europa, formulador de um demoníaco culto da violência, do roubo, do assassinato e do homossexualismo. Por motivos óbvios, só trechos incompletos são transcritos a seguir desse satânico documento de verdade, de horror e de poesia que ilumina um dos mais trágicos problemas do ser humano.

Primeira página:

Weidmann para vocês apareceu numa edição das cinco horas, a cabeça enfaixada em tiras brancas, religiosa e ainda aviador ferido, caído nos campos de centeio, num dia de setembro como aquele em que se tornou famoso o nome de Nossa Senhora das Flores. Seu belo rosto multiplicado pelas rotativas abateu-se sobre Paris e sobre a França, no âmago de aldeias perdidas, de castelos e cabanas, revelando aos burgueses entristecidos que sua vida diária é roçada por assassinos encantadores, alçados dissimuladamente até seu sono, que atravessarão por qualquer escada de serviço que, cúmplice, não rengeu à sua passagem. Sob sua imagem, espocavam com o fulgor da aurora seus crimes: assassinato 1, assassinato 2, assassinato 3 e até seis, anunciavam sua glória secreta e preparavam sua glória futura.

Pouco antes, o negro Anjo-Sol matara sua amante.

Pouco depois, o soldado Maurice Pilorge assassinava seu amante Escudero para roubar-lhe pouco menos de mil francos, em seguida cortavam-lhe a cabeça para celebrar seus vinte anos, enquanto, como vocês estão lembrados, ele zombava do carrasco irascível.

Enfim, um segundo-tenente da Marinha, mocinho ainda, traia por trair: foi fuzilado. E é em honra de seus crimes que escrevo meu livro.

Desta maravilhosa eclosão de belas e sombrias flores, só tive notícia em fragmentos: um me fora dado por um pedaço de jornal, outro citado negligentemente por meu advogado, outro dito, quase cantado, pelos detentos – seu canto se tornava fantástico e fúnebre (um De Profundis), como as lamentações que eles cantam, à noitinha, como a voz que atravessa as celas e chega até mim agitada, desesperada, alterada. No fim das frases, ela se rompe e essa ruptura a torna tão suave que parece suspensa pela música dos anjos, o que me causa horror, porque tenho horror aos anjos, que são compostos, segundo imagino, desta maneira: nem espírito nem matéria, brancos, vaporosos, e assustadores como o corpo translúcido dos fantasmas.

Esses assassinos agora já mortos chegaram, porém, até mim e cada vez que um desses astros de luto cai em minha cela, meu coração bate forte, um surdo rufar de tambores, se este for o sinal que anuncia que uma cidade capitula. E se segue um fervor comparável ao que me fêz contorcer-me e me deixo alguns minutos grotescamente crispado, quando ouvi sobre a prisão o avião alemão passar e o estouro da bomba que ele soltara bem perto. Num abrir e fechar de olhos, vi um menino isolado nos céus, levado por seu pássaro de ferro, semeando a morte às gargalhadas. Para ele sozinho desencadearam-se as sirenes, os sinos, as cento e uma salvas de canhão reservadas ao Delfim, os gritos de ódio e de pavor. Todas as celas tremiam, tiritantes, loucas de terror, os presos jogavam-se contra as portas, rolavam no chão, vociferavam, choravam, blasfemavam e rogavam a Deus. Eu vi, ou pensei ver, digo, um menino de dezoito anos dentro do avião e do fundo da minha 426 eu lhe sorri com amor.

Aparição de Divina

Divina apareceu em Paris para levar vida pública cerca de vinte anos antes de sua morte. Ela já era então a magra e vivaz que foi até o fim da vida, tornando-se depois angulosa. Entrou por volta das duas horas da manhã no Bar Graff, em Montmartre. A clientela era ainda de argila, barrenta, informe. Divina era de água clara. No enorme café de vidraças baixadas, cortinas cerradas sobre vergões de ferro ôco, soprepovoada e soçobrando na fumaça, ela depositou o frescor do escândalo que é o frescor de um vento matinal, a surpreendente doçura de um rumor de sândalo sobre o mármore do templo, e, como o vento faz virar as folhas, ela fez virar as cabeças que se tornaram ligeiras de repente (cabeças loucas), cabeças de banqueiros, comerciantes, gigolôs para senhoras, garçons, gerentes, coronéis, espantalhos.

Sozinha sentou-se a uma das mesas e pediu chá.

  • Mas que seja chinês, meu rapaz! Ela disse.

Sorridente. Para os clientes, ela tinha um sorriso de fanfarrona irritante. Era o que diziam com meneios de cabeça. Para o poeta e para o leitor, seu sorriso será enigmático.

… Divina era graciosa e no entanto semelhante a todos esses vagabundos de quermesse, remexedores de vistas raras, de visões de arte, bons jogadores que arrastam atrás de si toda a farragem fatal dos magic city. Ao mínimo gesto, se dão o nó na gravata, sacodem a cinza do cigarro, acionam aparelhos de jogatina. Divina dava nó, garrotava carótidas. Sua sedução era implacável. Se só dependesse de mim, eu faria dela um heroi fatal como eu os amo. Fatal, quer dizer, que decide a sorte dos que os contemplam, petrificados como quem fita a Medusa. Eu a faria com ancas de pedra, faces polidas e planas, pálpebras pesadas, joelhos pagãos tão belos que refletiriam a ineligência desesperada do rosto dos místicos. Eu a despojaria de todo o aparato sentimental. Que ela consentisse ser a estátua enregelada. Mas bem sei que o pobre Demiurgo é forçado a fazer sua criatura à sua imagem e que ele não inventou Lúcifer. Em minha cela, pouco a pouco, terei que dar meus arrepios ao granito…

… O garçom que a serviu teve vontade de rir zombeteiro, mas não ousou diante dela por pudor. Quanto ao gerente, veio para perto de sua mesa e decidiu, logo que ela tivesse acabado de beber, pedir-lhe que se retirasse, a fim de evitar sua volta outra noite.

Finalmente, ela deu palmadinhas em sua fronte de neve com um lenço florido. Depois cruzou as pernas: viu-se então presa a seu tornozelo uma correntinha terminada por um medalhão que sabemos conter alguns fios de cabelo. Sorriu para a roda que a circundava e cada um respondeu voltando-lhe as costas, mas isso era uma resposta. O café estava silencioso a tal ponto que se ouviam distintamente todos os ruídos… Divina não insistiu: de uma minúscula bolsa de alça de cetim preto tirou algumas moedas, que depositou sem barulho sobre a mesa de mármore. O café desapareceu e Divina foi metamorfoseada num desses animais pintados sobre as muralhas – quimeras ou grifos – porque um cliente, sem querer, murmurou a palavra mágica pensando nela!

  • “Pederasta!”

Evocação do passado de Divina

Foram, na cidade, os passeios ao acaso pelas ruas negras, pelas noites insones. Ele parava para olhar pelas janelas os interiores dourados, através da renda ilustrada com motivos trabalhados: flores, folhas de acanto, cupidos armados, cervos de renda, e os interiores lhe pareciam escavados em altares maciços e tenebrosos, em tabernáculos velados. Diante e dos lados das janelas, lampadários como círios montavam uma guarda de honra em meio de árvores ainda folhudas, que se abriam em buquês de lírios de esmalte, de metal ou de tecido, sobre os degraus de um altar de basílica. Eram afinal essas surpresas de jovens vagabundos para os quais o mundo está aprisionado numa rede mágica que eles mesmos ao redor do globo tecem e atam com o dedo do pé tão ágil e duro quanto o de Pavlova. Esses tipos de jovens são invisiveis. Um fiscal não os distinguem num vagão de trem, nem a polícia nos cais, mesmo nas prisões eles parecem ter-se introduzido com fraude, como o tabaco, a tinta para tatuagem, o luar ou os raios de sol, a música vinda de uma vitrola. O menor de seus gestos lhes prova que um espelho de cristal, que seu pulso, algumas vezes estrela de uma aranha de prata, encarcera o universo das casas, das lâmpadas, dos berços, dos batismos, o universo dos humanos. O menino que nos ocupa estava neste ponto fora daqui, de sua fuga devia guardar na memória: “Na cidade, as mulheres de luto usam belos vestidos.”

Mas sua solidão lhe permite enternecer-se com miúdas misérias…; .., diante dos espelhos dos restaurantes explodindo de luzes, de cristais e de baixelas de prata, ainda vazios de clientes, ele assistia, transfigurado, às tragédias que neles desempeham os garçons de fraque, trocando deixas cheias de brio, disputando por questões de precedência até à chegada do primeiro casal elegante que joga por terra, e rompe, o drama; pederastas que lhe davam só cinquenta centimes e fugiam, repletos de felicidade durante uma semana; nas grandes estações de bifurcação ferroviária ele observava, da sala de espera, à noite, as multidões de trilhos percorridos por sombras másculas carregadas de tristes fanais; sentiu dor nos pés, nas espáduas. Sentiu frio.

Divina pensa naqueles instantes mais dolorosos para o vagabundo, quando um carro em disparada pela estrada o ilumina de repente e põe em evidência para ele mesmo e para o veículo seus pobres farrapos. O corpo de Mignon arde. Divina está aninhada na sua concavidade. Não sei se ela já devaneia ou se rememora: “U’a manhã (era já de madrugada), bati à tua porta. Eu não aguentava mais errar de ruela em ruela, esbarrar de encontro aos trapeiros, às imundícies. Eu buscava tua cama sempre escondida entre a renda, o oceano de rendas, o universo de rendas. Do ponto mais longo do mundo, um punho de boxeur me jogou rolando para dentro de um esgoto diminuto. Bom nesse instante o Ângelus soava. Agora ela adormece em meio à renda e vagam no espaço seus corpos enlaçados.”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “A véspera do livro Nossa Senhora das Flores .” In Testemunhos Literários do século XX, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 3. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.