Milovan Djilas. A denúncia da nova classe

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1979/12/29. Aguardando revisão.

Chegam ao Brasil ecos da ruptura de eminentes marxistas com esse ou aquele Partido Comunista nacional, como a de Althusser, na França ou de Jorge Semprun , longos anos membros do Comitê Central do Partido Comunista Espanhol no exílio na França. Até os “novos filósofos” franceses, ditados pela moda atual, discernem na filosofia alemã do século XIX e as raízes do dogmatismo totalitário dos regimes comunistas.

Menos conhecida é a tragédia de Milovan Djilas, que se acentua, à medida que se cristaliza, em cada novo livro que publica, a sua afirmação de que o Marxismo está em descompasso crescente com as sociedades modernas.

Djilas não é um “renegado” nem um “agente da CIA” e “profissional do anticomunismo”. Foi um dos combatentes comunistas iugoslavos, ao lado de Tito, contra as tropas invasoras hitleristas, ocupou cargos de importância no Comitê Central, chegou a ser ministro e até vice-presidente da Iugoslávia. A força das suas convicções íntimas, porém, não lhe permitiu hesitar entre o confronto do poder arduamente conquistado e a heresia da dúvida quanto às premissas e às conclusões do Marxismo que ele pregara pragmaticamente até então. Sua visão nova do poder totalitário que se arroga “científico materialista histórico” desemboca em livros de uma lucidez tão destemida que lhe causam encarceramentos seguidos. Durante sua permanência em Moscou, de suas anotações e verificações pessoais surge A Nova Classe, volume em que ele revela a existência de uma oligarquia privilegiada naquela suposta sociedade sem classes: os membros do Politburo, “mais iguais” perante a Lei, dotados de mordomias como carros oficiais com chauffeurs particulares, casas de campo, autorizações para viajar ao estrangeiro e outras regalias salariais e de status, inacessíveis à massa dos cidadãos russos, em cujo nome se instaurara, teoricamente, “a ditadura do proletariado” na Revolução de 1917.

No habilíssimo jogo de subtrair a Iugoslávia à órbita dos satélites escravizados por Stalin, Tito resolver prender – novamente – o autor de mais um relato inquietante pelas verdades que descobre: Djilas em Conversações com Stalin volta, ironicamente, para a mesma prisão onde as tropas da Casa Real Iugoslava e os nazistas o tinham mantido prisioneiro e torturado. Desta vez, ele era acusado de “difamar uma Nação (a URSS) amiga”.

Iconoclasta, de pensamento aparentemente desprovido de qualquer afetividade, seguindo uma lógica inflexível, Milovan Djilas adquire tons quase que proféticos na releitura de seu famoso The Unperfect Society (Editora Methuen & Co., Londres), de pouca repercussão entre nós.

Com determinação e experiência própria, Milovan Djilas ultrapassa as descrições de Arthur Koestler ao denunciar o totalitarismo stalinista e desmistifica uma a uma todas as prerrogativas do próprio Marxismo em que crera inabalavelmente. O próprio título do livro, que cria um neologismo traduzível talvez por “sociedade desperfeita”, pressupõe não um ceticismo, mas uma certeza de que toda crença Utópica, como o comunismo ou o nazismo, uma vez atingido o poder, diviniza-se a si mesma e destroça todos os que percebem as suas contradições ou incongruências. Categoricamente, ele afirma: “a sociedade, na realidade, não pode ser perfeita”. Isso não significa que se deva recusar a séries de visões e de idealismo de todos os que querem melhorar este ou aquele aspecto da sociedade. Mas a base para a declaração tão abrangente lhe vem da física moderna. A conclusão de Heisenberg de que “a natureza é imprevisível”, tanto no infinitamente pequeno da escala dos átomos pesquisados pela física nuclear quanto no macrocosmos da História, da Economia, das Ideologias, Djilas a extrapola para o terreno social e político. Segundo a sua conclusão, o próprio ser humano é profundamente imutável em seus anseios básicos, por mais mutáveis que sejam as circunstâncias ambientais que o cerquem. Daí a permanência das religiões que para ele, desprovido de todo e qualquer espírito religioso, sobrevivem justamente por estarem além das vicissitudes das sociedades que terminam com a morte. Por isso, a religião pode e pôde manter-se virtualmente intacta, como o Cristianismo em meio à hostilidade do panteão de deuses de Roma Imperial, assim como ao se defrontar com o ateísmo oficial da União Soviética ou da Polônia.

Para todos os que falavam de uma “mística” de Esquerda, Djilas traz uma série de ângulos novos sob os quais observa o Marxismo. O aspecto dialético da visão marxista, a sua perspectiva de se atingir uma sociedade perfeita e final, a comunista, o levam a discernir no Marxismo origens claramente religiosas, equiparáveis à predição escatológica das grandes religiões como a Doutrina das Coisas Finais, o Advento do Dia do Juízo Final, a Chegada do Reino dos Céus à Terra etc. Como outros utopistas, Thomas More, Tommaso Campanella, Saint-Simon, Fourier, Oween, Marx sem o saber ergue toda uma “teocracia política” tomando como argamassa o Contrato Social de Jean-Jacques Rousseau:

“No Contrato Social Rousseau previu que todo indivíduo, sem exceção, se colocaria sob o comando indiscutível da vontade geral (la volonté générale), isto é, do Estado, que passa então a ser uma entidade infalível, pois deseja o bem comum e é, portanto, divina...”

“Fé” leiga de promessas falsas, o Marxismo não pode nem mesmo refugiar-se na ciência exata, porque seus prognósticos, pretensamente válidos universalmente, ano a ano sofrem a erosão inapelável do Tempo: Quem examinar as sociedades comunistas não poderá deixar de notar em todas elas as mesmas dilacerações e contradições das demais sociedades não-comunistas suas coetâneas. Uma teoria sociológica formulada a 125 anos não poderia, de forma alguma, prever a complexidade do mundo tecnológico hodierno, ficando circunscrita a uma única civilização – a da Europa – em um único período – a primeira metade do século XIX – em um único país – a Inglaterra. Milovan Djilas da sua cela de prisão parece, há dez anos atrás falar do mundo contemporâneo das manchetes de 1979:

“Todos os demônios que o Comunismo acreditava ter banido do mundo futuro como do mundo real instalaram-se sub-repticiamente na própria alma do Comunismo. O Comunismo, outrora um movimento popular, que em nome da ciência inspirava as massas oprimidas e exaustas da terra, com sua esperança de um Reino dos Céus sobre a Terra, e que mandou e continua a mandar milhões de seres humanos à morte em busca de seu sonho inacessível, hoje em dia transformou-se numa série de burocracias políticas nacionais e de Estados lutando entre si em busca de prestígio e influência, disputando as fontes de riqueza e os mercados, isto é:”lutando pelas mesmas coisas que os políticos e os governos sempre lutaram e lutarão”. O tênue pretexto de se tratar de uma fase de transição não oculta a cobiça comunista pelo poder totalitário, pondo a nu a fragilidade imemorial dos seres humanos em quaisquer regimes político-econômicos. Revelaram-se falsas as previsões das diferentes fases de “progresso” econômico que, segundo os planos detalhados dos comunistas, iriam abolir a produção de bens e levar ao consumo ditado pela demanda a ponto de, como escreveu Lenin, o ouro ser rebaixado a uma mera liga metálica utilizável na confecção de pias e privadas folheadas a ouro. Pior ainda: ao invés de abolir a guerra, as forças comunistas vencedoras estenderam a guerra às nações menores. E já em 1969 adverte Djilas textualmente: “Além do mais, a inquietação que grassa nos países do Leste europeu sob domínio soviético é óbvia e ninguém se deve surpreender com o aparecimento de um conflito entre Hanói e a China depois da unificação do Vietnã pelo governo de Hanói”. Nem – ele sublinha – se verificou a derrocada dos nacionalismos com o advento de um regime comunista: o que se verifica é que cada nação tem a “sua” versão “pura” do Marxismo!

O golpe de misericórdia dado ao dogmatismo marxista para Milovan Djilas é o da ciência moderna. Em 1905, quando Einstein publicou a sua teoria da relatividade, nenhum dos formuladores do Comunismo tinha conhecimentos científicos suficientes para incorporar os ensinamentos de Einstein à sua propalada descoberta do “materialismo histórico”. Stalin, ele acrescenta, com o seu instinto para farejar perigos e suspeitos, buscou inicialmente uma plêiade de cientistas capazes de refutar a teoria da relatividade. Aquele universo não sujeito a nenhum determinismo, a nenhuma lei universal pré-estabelecida, constituía um acinte à dialética de Engels e Lenin, segundo a qual o universo tinha de ser controlado, com toda a matéria nele contida, sobretudo o gado humano, a ser guiado pelo “Dirigente dos Povos” rumo a seu bem-estar beatífico.

Adentrando-se minuciosamente pela análise científica, Djilas explica que seu propósito ao escrever este livro não é o de descrever ou refutar apenas o Marxismo, “mas sim, o de revelar a inevitabilidade da violência e da corrupção dos seres humanos – tanto da massa quanto dos indivíduos – tão logo o Marxismo na sua totalidade tenha sido aplicado, ou melhor: imposto à sociedade”.

Ele opõe frontalmente as duas teorias: a de Engels e Lenin, segundo a qual o Marxismo dá os meios de se fazer prognósticos certeiros quanto ao mundo, à sociedade, ao ser humano e a visão objetiva, científica, da física nuclear moderna: se “a Natureza é imprevisível”, concluíra o físico Heisenberg, Einstein sepulta a tese marxista ao asseverar: “Como já ficou convincentemente demonstrado por Heisenberg, de um ponto de vista empírico toda e qualquer conclusão referente a uma estrutura estritamente determinística do mundo natural fica excluída de uma vez por todas...” Complementando: a física moderna relacionou o conceito de matéria reciprocamente com a energia, eliminando portanto as concepções estáticas que Engels e Lenin tinham obviamente mantido apesar da sua argúcia e apesar da abordagem dialética por eles adotada.

“Até o século XVIII e até mais tarde era possível definir-se a matéria. Hoje em dia seria difícil cogitar-se de uma definição que abarcasse toda a insubstancialidade caleidoscópica e objetiva da matéria.” Com exceção do Escolasticismo medieval, o Marxismo é então o único dogma dos tempos modernos. Desprovido de suas premissas de objetividade científica comprovável, ele surgiu como uma necessidade política do Partido Social-Democrata na Alemanha, como Engels relata na sua tese Anti-Düring. A previsão desafiadora de Engels, segundo a qual “o Marxismo deverá mudar de aspecto de acordo com as descobertas de cada época no campo das ciências naturais” não se cumpriu. Afirmando-se mais como um mito e um dogma inquestionável, a sua inflexibilidade assume, ao contrário, características tragicômicas: a União Soviética produzia bombas nucleares a mesmo tempo que teoricamente rejeitava as implicações da teoria da relatividade de Einstein, e seu corolário, a equação fundamental para a formulação da energia nuclear. De ano para ano, a Grande Enciclopédia Soviética tenta “assimilar” a teoria da relatividade às noções do determinismo econômico e do materialismo científico, até se chegar ao cúmulo de recentemente se tentar apresentar a crítica da física de Newton empreendida por Engels como... a obra de um precursor de Einstein...

Milovan Djilas considera a complexidade do mundo moderno um obstáculo intransponível para qualquer teoria se arrogar o direito de interpretar os acontecimentos humanos, no entanto, Marx não vacilou em dar um valor genérico equivalente quase a uma Lei ou a um indetível processo biológico a uma série de eventos vividos na sua época, mas que atualmente mudaram de significado. E exemplifica abundantemente: quando formulou suas teorias, Marx estava ainda sob a vívida influência da Revolução Francesa de 1789 e a nítida divisão de papéis a serem desempenhados: os capitalistas como proprietários dos meios de produção, e os proletários como fornecedores de mão-de-obra; e, ao analisar a queda de um tipo de sociedade substituído por outro, na sua luta em torno de novas relações de produção, ele generalizou muito mais amplamente, raciocinando que de agora em diante a História seria a história da luta de classes; ao admitir o declínio de certas formas de civilização, englobou o fenômeno apressada e arbitrariamente sob o rótulo de “progresso”. Da mesma forma, quando descobriu o mecanismo das forças produtoras, isto é, a soma dos meios de produção com a mão-de-obra, erroneamente o tomou pelo impulso material, antevendo até o surgimento de uma sociedade sem os antagonismos do passado. E cada cristalização dos dogmas marxistas torna a compreensão da mutabilidade típica das sociedades humanas em seu curso histórico mais difícil, senão impossível como Djilas assinala: “As mudanças nas relações entre os homens – ou com outras palavras, a História vista como uma série de eventos – desenrolam-se com a participação de todas as forças, materiais e intelectuais, ora um grupo desempenhando um papel dominante, ora outro. Dessa forma, a História é, na essência, uma ação global, resultado das decisões de nações que defendem a própria sobrevivência e dos pensadores que descobrem seus fatores inevitáveis e os líderes que revelam possuir ideias claras, práticas e talento para a organização. A criação da História constitui um ato criador no qual é impossível isolar, quanto mais avaliar, os papéis desempenhados pelos seus vários fatores constituintes.”

E aponta para os sofismas e absurdos necessários para se interpretar o mundo e a sociedade hodierna em termos exclusivamente marxistas ou segundo qualquer outra teoria única:

Se as relações de produção “correspondem a um estágio específico no desenvolvimento das forças produtoras materiais”, como então se explica que numa sociedade de estágio supostamente “mais avançado” como a da União Soviética o nível das forças produtoras está e continuará a sê-lo durante muito tempo inferior ao dos Estados Unidos, de um nível “inferior”?

Se as relações de produção variam no Ocidente e no Oriente, como se verifica obviamente, que explicação existe para o aparecimento de fenômenos semelhantes nas artes e nas ciências, no comportamento e nas escolhas feitas pelos jovens de ambos os lados?

Se, conforme Marx previu, os sistemas comunistas fossem administrados cientificamente, eliminando-se, portanto, os antagonismos típicos dos “meios burgueses de produção”, como se explica então que surjam tantas crises econômicas imprevistas nos sistemas comunistas e porque neles se produzem amiúde conflitos sociais em meio a uma atmosfera de total desânimo?

Por que motivo, apesar das diferentes “relações de produção” ou de “relações de propriedade” e os mesmos ou quase os mesmos “níveis de desenvolvimento... no campo das forças materiais produtoras” nós nos defrontamos com ideias semelhantes, fenômenos sociais semelhantes, semelhantes dificuldades e projetos semelhantes tanto na economia dos países “capitalistas” quanto dos países “socialistas”?

Uma infinidade de perguntas poderia ser formulada sem reposta convincente. O dogma marxista e sua imobilidade são arcaísmos e meras máscaras para esconder a cobiça das grandes nações ou o terro do Gulag de Stalin. Na verdade, “as ciências, as comunicações modernas, os meios de informação de massa contraíram o tempo e o espaço no campo das nossas percepções e conceitos. A tecnologia demoliu os monopólios e destruiu até mesmo as”vantagens” desta ou daquela ideologia, transformando, como Marshall McLuhan demonstrou, o mundo em uma vasta aldeia e disseminando a existência humana espaço afora”.

Num ponto o Ocidente e os países comunistas coincidem: no culto nutrido pelo século XIX de que o progresso é contínuo e ininterrupto para a raça humana. Como seria possível acreditar numa lei universal e inexorável do progresso no século em que vivemos e que assistiu a carnificina humana dos campos de concentração nazistas e stalinistas? O cidadão de Atenas ou de Roma antigas não gozavam de mais liberdade e de mais direitos do que grandes, incalculáveis massas humanas hoje sob tiranias e a humanidade inteira ameaçada pela destruição da espécie pelo holocausto atômico?

Mesmo que seu ceticismo esteja errado do ponto de vista realmente científico e, ao contrário do que tudo leva a crer, exista o progresso dos seres humanos como indivíduos e das sociedades em que eles vivem, Djilas reflete, mesmo assim a ninguém é dado dispor dos métodos nem da velocidade com que esse progresso será conquistado: “A tirania começa quando se formulam teses definitivas sobre o homem e a sociedade”. Neste ponto Djilas se aproxima bastante da hipótese do historiador britânico Arnold Toynbee, segundo o qual a sobrevivência de uma civilização depende da eficácia da resposta que essa mesma civilização der ao desafio específico do seu tempo. O Marxismo, com suas verdades finais, ou qualquer outra teoria tão inquestionável, impede a expansão dos conhecimentos humanos e, portanto, proíbe a adaptação do homem e da sua sociedade à mutabilidade, essa constante num mundo de variáveis.

Ora, como será possível o mundo comunista soviético viver isolado da sua época, dos seus avanços e recuos? Subordinando – como faz agora com Cuba, por exemplo – outros países a intermediários na sua exportação de revoluções? Tornando permanente o reino do terror imposto ferreamente por Lenin e Stalin? Será este o novo ícone da Nova Igreja Ortodoxa Russa? Ou não será muito mais evidente o fenômeno que o economista norte-americano John Kenneth Galbraith definiu como “a estrutura de mercado dos sistemas industriais”, prevalente em ambos os sistemas, o capitalista e o socialista?

A marcha fúnebre que Lenin tocou para o final do capitalismo, o advento do imperialismo, soou cedo demais: não só as nações capitalistas do Ocidente e o Japão, devido à sofisticação de sua tecnologia e seus computadores, não tombaram vítimas de rebeliões nas metrópoles, às quais se sucederam inevitavelmente a independência das antigas colônias metropolitanas, como a esfera capitalista passou, ela própria, por profundas modificações, que a tornaram mais flexível e incapaz de corresponder à visão caricatural que dela se fazia há mais de 100 anos: várias indústrias importantes tornaram-se propriedade estatal; estendeu-se o campo do domínio comunitário; surgiram Estados regidos por uma política de bem-estar social; os impostos se tornaram progressivos; o estado assumiu um papel muitas vezes preponderante no setor industrial; os salários cresceram: a ditadura do proletariado, a ser erguida, segundo as previsões de Marx, dos escombros do capitalismo e da total estatização de todos os meios de produção, de fato não se deu. Ao contrário do que foi predito, a massa dos assalariados nas grandes nações industriais do Ocidente aglutinou-se a ponto de se tornar idêntica à classe média, perdendo, portanto, todo o seu élan e sua justificativa revolucionária, no sentido marxista-leninista do termo.

O livro não aborda, escrito em 1969. As mudanças fundamentais ocorridas na China após a morte de Mao Tsé-tung e a busca da tecnologia e da modernização científica, social, cultural, de Hua e Deng atualmente, mas desmistifica impiedosamente toda e qualquer noção romântica de “revolução” que as rebeliões estudantis de maio de 1968 e Paris pudessem provocar: os estudantes anarquistas e de esquerda podem ter deflagrado uma greve geral, mas os operários sabiamente optaram por uma luta em prol de maiores salários e melhor distribuição dos lucros das empresas. Na realidade, dentro da comunidade mundial existente pelos falsos profetas: a forma comunista de propriedade tornou-se uma prova concreta de subdesenvolvimento de certos países como a Rússia ou a Iugoslávia, incapazes de promover a industrialização nacional por meio da propriedade capitalista privada. Na realidade, é o Comunismo que sofre todos os males que antigamente eram considerados “típicos do capitalismo”: a burocracia do Partido, exercendo um monopólio incontestável na administração e controle de todos os meios de produção. Para isso, Djilas usa estatísticas, “um meio favorito dos comunistas para apresentar, de forma inescrupulosa”, seus sucessos e omitir as conquistas em outras partes do mundo.

A produção de carvão nos Estados Unidos em 1850 era de 10 milhões de toneladas, em 1910 já atingira 500 milhões: a produção de aço por volta de 1872 era inferior a 100.000 toneladas, aumentando 250 vezes no decurso dos próximos 38 anos; nos Estados Unidos, em 1902, a produção de eletricidade alcançou 5.969.000.000 de kilowatts, na década de 60 ultrapassara já um trilhão de kilowatts, ou seja, um incremento de 180 vezes a mais em sessenta anos.

Em contraste flagrante, e apesar da imensidão do território soviético, de 1913 a 1970 a produção de carvão crescera de 29.000 toneladas métricas para 670.000; a da eletricidade de 1.900 milhões de kilowatts para 845, a produção de aço de 4.200 toneladas para 125.000, sem levar em conta que se o desenvolvimento da indústria pesada foi mais célere nos EUA do que na URSS, o da indústria de consumo, o dos transportes e sobretudo da agricultura foram incomparavelmente maiores nos EUA. Até nos altos escalões soviéticos é reconhecida a maior produtividade norte-americana: no início deste século ela superava uma vez e meia a produtividade da Europa Ocidental e quatro vezes a da União Soviética: recentemente o próprio Kossiguin teve de admitir que ela continuava sendo o dobro da soviética. Não estaria aí mais uma prova do fracasso do materialismo histórico de Marx e de sua tese de acordo com a qual o nível das forças produtivas é que determina as relações de produção e a vida política e intelectual em geral? O monopólio da propriedade enfeixada totalmente nas mãos do Estado conduz à estagnação e impede a rentabilidade, impede uma conexão com o mercado externo, o livre movimento de mercadorias e de capital, a convertibilidade das moedas bem como a eficácia na administração e na economia nacional. Se substituirmos a terminologia de Marx veremos que o destino que ele designou como típico do capitalismo é na realidade o da administração comunista: “O monopólio do capital (substitua-se por monopólio do Partido) torna-se um empecilho que acorrenta dos modos de produção que floresceram sob seu domínio e lado a lado com ele.” E o que se constata hoje em dia? A aliança dos comunistas ao comprar grãos dos capitalistas decadentes e burgueses com os EUA, o Canadá, a Austrália, ou a “pacífica coexistência” preconizada pela détente e sublinhada pelos acordos de armas nucleares, Salt, entre os EUA e a URSS.

O Comunismo, sempre que sujeito a ambientes pacíficos e livres, revela-se como o regime mais fraco como eficácia; uma vez no poder, elimina toda e qualquer dissidência e, ao bloquear qualquer crítica, elimina também a eficiência, baseando sua autoridade na polícia e na vigilância de todos os cidadãos pelo Estado, sucumbindo à era da automação, da tecnologia avançada, da eletrônica recentíssima. A mistura letal se compõe da esterilidade do dogmatismo unida à inércia da economia regida por tais temas ideológicos arcaicos, daí o choque entre os comunistas no poder e os segmentos da sociedade oprimida por eles, o que por sua vez resulta no nascimento de novas ideais e novos movimentos dentro e fora do Comunismo. No entanto, não há fins que se façam justificar por meio da opressão de uma oligarquia partidária esclerosada sobre a massa vigiada e indefesa. A transformação das sociedades comunistas, apesar da falta secular de tradições democráticas na União Soviética, sobreviverá, contudo, acredita Djilas, de forma não violenta. O método será semelhante ao de Gandhi: o uso de meios que não sejam violentos – demonstrações, greves, marchas de protesto, resoluções, manifestos e sobretudo a crítica firme e moralmente vigorosa dos dissidentes, pois: “O Comunismo não perde batalhas históricas: o que ele perde é a batalha da História, apesar do fato, ou talvez precisamente devido ao fato de ter acreditado que possuía o conhecimento das próprias leis da História.”

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Milovan Djilas. A denúncia da nova classe .” In Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra os despotismos e os totalitarismos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 12. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.