Woolf, ainda um enigma (a outra metade do artigo sobre Yourcenar será transcrito na próxima seção consagrada à escritora belga)

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1982/01/23. Aguardando revisão.

Mrs. Dalloway revelara à sua autora, Virginia Woolf, o abismo da autenticidade, naquele inocente passeio matinal pelas floristas e parques de Londres, como preparação da festa que daria esta noite, como membro da alta sociedade inglesa. Cada figura com que depara nesse percurso de algumas esquinas da capital inglesa é um repto a si mesma: o homem que por amá-la sacrificou sua vida e agora volta alquebrado e ainda esperançoso, da Índia, contrastando com a negligência da ética de Clarissa Dalloway a intensidade radical de um amor que duraria além da passagem do tempo e da distância geográfica. Depois, no parque da cidade, o soldado casado com uma italiana solicita e bondosa, revela à pacata dona-de-casa com sua consciência apaziguada pelo excesso de dinheiro, de status, as realidades que ela cuidadosamente sacrificou como “tolices” ou “perigos de menina estouvada” e que agora voltam para atormentá-la e revelar-lhe que a passagem do tempo se faz à nossa revelia e, frequentemente, à nossa custa. Saber que o militar psiquicamente mutilado pelos morteiros de guerra é o mesmo suicida de que lhe fala um distinto médico convidado à sua soirée requintada daquela mesma noite, de certa forma fecha o círculo apavorante que se une em torno de Clarissa Dalloway: ela renunciou, por covardia, conformismo e medo de viver a própria vida. Onde há coragem e mesmo a aniquiladora noção de que se abdicou de uma escolha individual para a sua própria vida, nada disso dá à Mrs. Dalloway outra sensação senão a de que sua vida foi passada em branco, por deliberação inconsciente, ou transformada em cemitério de uma vida robotizada em lugar dos sentimentos verdadeiros – o amor, o altruísmo, o sentido individual dado à vida – que Mrs. Dalloway conseguira, até então, auto sufocar.

To the Lighthouse, publicado logo depois, quando as crises provenientes da Segunda Guerra Mundial surgiam como premonições paralelas à de que o próximo colapso nervoso a deixaria definitivamente no manicômio, no qual ficava internada por períodos cada vez mais longos e a intervalos cada vez mais curtos – the jitters – como ela os chamava em seus diários ou para o seu paciente amigo, o marido Leonard Woolf – surgia simultaneamente com o propósito artístico que só se realizará plenamente em The Waves. Virginia Woolf impressionava-se, artisticamente, com a transposição, para a página do livro, dos meios pictóricos dos pincéis dos pintores impressionistas franceses: cada estado de espírito refletiria a sua específica tonalidade, cambiante ao sol como mutável a cada passagem, refletida simbolicamente, na natureza, por um sol que se põe, uma noção que se adquire em contato com outros ângulos da vida expostos por outras personagens.

Literariamente, o exemplo de Proust, mais do que o de Joyce, exercia um fascínio singular: voltar atrás no tempo, reconhecer a ação modificadora do tempo, tanto externamente na paisagem que muda, na luz que, ao se intensificar ou diminuir, acentua o brilho ou apaga o resplendor de uma pedra, de um vestido, de um trigal e dá às vozes uma interiorização, com que de confissão a meia voz dos propósitos, frustrações e sonhos de cada um ao traçar seu destino hipotético.

Se Mrs. Dalloway cumpre as regras clássicas de uma ação que decorre no percurso de 24 horas e acarreta modificações fundamentais nos seres humanos diante de novos conhecimentos, novas percepções de si mesmo, do seu comportamento e das vidas paralelas que correram ao lado da sua, modificando na sua concomitância de fiapos de matizes a cor final, em To the Lighthouse Virginia Woolf chegou à perfeição estética. Apenas três tempos, três atos abstratos, como juncos colocados na corrente heraclitiana do Tempo, no qual nunca podemos nos banhar duas vezes, assinalam, para os seres humanos e sua puerilidade pomposa, o decurso desta abstração indetível por relógios, calendários ou ampulhetas: o tempo.

Esses sumários três momentos a que poderíamos bruscamente reduzir os momentos cruciais de To the Lighthouse cifrar-se-iam na “janela” da casa à beira-mar da qual se avista o longínquo farol; o intervalo de tempo que leva o local à desagregação, devido à guerra, por conseguinte ao seu afastamento dos personagens do primeiro momento e com o que a uma síntese de abandono, de transformação em outra paisagem, inóspita ou indiferente à marca humana e o capítulo final em que a adiada viagem ao farol, símbolo de mais de dez anos de frustração das crianças que desde o longínquo primeiro dia tinham como ambição a chegada, o passeio ao farol e o círculo que se fecha, depois de tantas mortes e ausências iniciais: é um quadro que recupera, na sua inteireza, por meio da memória, a integridade que não pode ser realizada na vida.

Infelizmente, essa que é talvez a mias perfeita obra do romance inglês, não só de Virgínia Woolf, mas dentro de uma longa e riquíssima série de outros autores e outras tentativas, tinha todo o azar singular de cair nas mãos toscas e irresponsáveis de Oscar Mendes, que – que diferença faz?! – “traduzia” Virginia Woolf como se se tratasse de um policial com palavras difíceis, cujo sentido ele alterava a seu bel-prazer. Nestas mesmas páginas do Jornal da Tarde já tive ocasião de demonstrar que a “tradução” de Oscar Mendes deturpava o sentido original de Virginia Woolf, principalmente no tema crucial em que a autora reflete sobre as premissas e princípios da estética e da ética: poderão elas ser conciliadas ou a escravatura de muitos sempre servirá de base para a arte de uma elite? Desnecessário será dizer que Oscar Mendes, confundindo talvez To the Lighthouse com algum almanaque Capivarol que lhe estava às mãos enquanto fazia sua toilette matinal, misturou os textos e o resultado foi que Virginia Woolf teve a sua obra-prima no Brasil não só deturpada até não poder ser mais reconhecida, mas, ao contrário, era lícito até se considerar que ela não tinha sido traduzida, tal a incompetência crassa do alçado a “tradutor”.

Agora, a editora Nova Fronteira, sem dúvida a única que herdou o elã das suas predecessoras no tempo, as editoras Globo de Porto Alegre, sob a supervisão precisa de Érico Veríssimo, e a José Olympio, enquanto esteve à sua frente o audacioso fundador José Olympio, é a única que se propõe a rever esse estado calamitoso e constrangedor para um país que se quer civilizado. Os resultados? Confiado o indefesso Farol à Luiza Lobo, não se pode dizer que a nova tradução tenha descido aos subníveis quase etílicos de incompreensão da “tradução anterior”. O que acontece? Simplesmente que Luíza Lobo tem suas peculiaridades nada benfazejas à boa tradução. A primeira frase do romance, a frase de Mrs. Ramsay, já revela a incompetência e pouca sensibilidade da candidata a tradutora.

Em inglês: “Yes, of course, if it’s fine tomorrow, said Mrs. Ramsay. But you have to be up with the lark, she added – é traduzido em português de carregação:

“É claro que amanhã fará um dia bonito – disse a sra. Ramsay. Mas vocês terão que madrugar – acrescentou”.

Aquele se, if, em inglês, que prepara a subsequente frustração das crianças de mais uma vez não fazerem a excursão ao farol, além de referência ao despertar com pássaros madrugadores, com suas inferências shakespearianas do Romeu e Julieta, perdem-se numa espécie de “tradução” compacta e insatisfatória.

Da mesma maneira, toda a tessitura minuciosa dos moods de Virginia Woolf, passo, graças à tesoura arbitrária e à cola individual de Luíza Lobo, a cortes, interpolações que destroem totalmente o ritmo, o suspense e o estilo da insuperável novelista inglesa. Assim, por exemplo, deslocam-se frases inteiras logo neste parágrafo inicial e se perde a substância abstrata, musical do texto original, com um “arranjo” pseudocartesiano de frase que engloba, linhas adiante, conceitos e esclarecimentos que fazem parte do andamento rítmico e bem arquitetado do relato. Muitas palavras são deixadas de lado. Serão intraduzíveis, embora tão essenciais para a compreensão do texto, de uma sutileza digna de uma composição de Debussy? Por que não traduzir, por exemplo, the wheel of sensation deixando em seu lugar um esquálido e inoperante “qualquer oscilação de sensações”? Além do que um olhar candid em inglês não quer dizer “cândido” em português. Os absurdos se multiplicam à medida que as páginas avançam. Quando em inglês se diz “Any weapon that would have gashed a hole in his father’s breast and had killed him…”, a autora, sensível ao sangue, ainda mais de um hipotético parricídio, transforma tudo em algo mais diluído e bonzinho: “Ou qualquer outra arma à mão que abrisse uma fenda no peito do pai e por onde a vida se escoasse…”

Ou ainda: impropriedades grotescas intervêm, rompendo a delicadíssima estrutura de termos de Virginia Woolf, até num fragmento de frase psicologicamente determinante quanto este:

Em inglês se diz “But also with some secret conceit at his own accuracy of judment”, que para simplificar tais labirintos da psique humana, fica reduzido a um mero: “Mas, sobretudo, por causa da certeza íntima que tinha da exatidão de seus julgamentos”. No mesmo parágrafo, a tradutora se atreve a uma intervenção pudica: Seus filhos “sprung from his loins” transforma-se inexplicavelmente em “desde a infância”!

Além das criminosas condenações arbitrárias que a tradutora concede, transferindo frases anteriores para um grupo de frases posteriores, é sempre a nuança, o matiz, que se perde – e o matiz em Virginia Woolf é tudo. Há assim (página 10 da edição brasileira) uma frase: “Faria alguma coisa para alegrá-los” que inexiste em inglês e que dá à personagem de Mrs. Ramsay uma personalidade diferente. E os erros vão crescendo de página a página: “Which an old woman could take from a young man without loss of dignity and woe betide the girl – pray Heaven it was none of her daughters! – who did not feel the worth of it, all that, it implied, to the marrow of her bones”. Absolutamente não é a mesma coisa que a tradutora colocou, desvirtuando a frase e eliminando frases até a sua completa incompreensão: “Que em sua idade poderia receber de um jovem sem perder a dignidade, enquanto a jovem rogava aos céus que não se desse o mesmo a suas filhas (não viam o verdadeiro e recôndito valor disso)”.

Em todo o livro há imprecisões graves: “To see the same dreary waves breaking week after week” não significa “ver sempre as mesmas ondas quebrando tristemente semana após semana”; pois dreary, aqui, está mais empregada como monótono, fatigante, tendo somente secundariamente a acepção de tristonho.

Seria inútil insistir no óbvio: o segundo placar assinala ainda uma derrota para To the Lighthouse, de Virginia Woolf, em suas traduções brasileiras. Muitas vezes um conhecimento insuficiente, seja da língua inglesa ou, simultaneamente, da língua portuguesa também, trazem o resultado final desastroso para o leitor que não souber inglês e se ativer apenas às idiossincrasias dos que se arvoram em tradutores e tradutoras, sem noções fundamentais de estilo em língua inglesa – quanto mais o estilo revolucionário de Virginia Woolf no continuum multissecular da literatura britânica.

Talvez uma última citação deixe claro que Luíza Lobo traduz como uma tradutora juramentada, mecanicamente, sem a mínima sensibilidade para as alterações de estado de espírito que, muitas vezes, no decurso de uma única frase, se manifestam. A autora inglesa, com seu ritmo difícil, pessoal, irretocável, coloca no meio de uma frase de encantamento e magia de uma criança a intervenção abrupta de um adulto, que pela sua intervenção paquidérmica destrói o encantamento fugaz: “Prue ran full ti tinto them and caught the ball brillianty high up in her left hand, and her mother said: Haven’t they come back yet? Whereupon the spell was broken”. Já a tradutora, rompenso a cesura, que há no meio da própria frase, banaliza-a, inventando uma nova sentença que essa, sim, rompe abusivamente e sem transições a magia anterior: “Prue percorreu com toda a velocidade ao seu encontro e pegou a bola brilhantemente no ar, com a mão esquerda, e sua mãe perguntou: - Eles já voltaram? – Contudo o encantamento se quebrou”.

É inútil. Seria como traduzir Debussy para realejo e rabecão, ou ouvir uma dupla sertaneja executar Clair de Lune. A magia se esvanece, a transposição para outra atmosfera, no caso de Virginia Woolf para um clima prosaico, ridículo, de mudanças aleatórias e grotescas se sentido, de nuances e de frases inteiras, resultou numa aproximação meramente física do Farol que continua, em português, diáfano e distante para todos que leiam apenas português, eclipsado pelas neblinas maléficas da presunção e da incompetência de quantos tradutores – aí de nós – dotados de boa vontade, mas nada equipados para esse passeio que desde 1938 é o enigma cuja esfinge tem devorado todos os seus afoitos exegetas pátrios. Não seria o caso de as editoras remunerarem melhor quem conheça literatura e as duas línguas ou ter um “auditor” eficiente de traduções na folha de pagamentos? Caso contrário, as traduções no Brasil serão sempre – com raríssimas e estoicas exceções – o resultado de acasos, dedicações mal remuneradas… o caos que testemunhamos.

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Woolf, ainda um enigma (a outra metade do artigo sobre Yourcenar será transcrito na próxima seção consagrada à escritora belga) .” In As três grandes damas da literatura europeia: Virginia Woolf, Marguerite Yourcenar e Doris Lessing, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 7. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.