Evocação de Clarice

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Inédito, 1994/06/12-13. Aguardando revisão.

(Especial para o aniversário do Nicolau)

Estávamos sentados ao final daquela tarde deliciosa do falso outono carioca, ainda no início da década de ’60. Dali do terraço onde morava Tati de Moraes, em Ipanema, descortinávamos todo o burburinho domingueiro da Praça General Osório com sua feira hippie.

Entrevistar Clarice Lispector, sempre arisca a esse tipo de jornalismo que julgava impertinente e aborrecido, era uma tarefa difícil. Lembro-me de que uma frase sua afinal, não saiu, no hoje extinto Correio da Manhã, sob a seca declaração, sem desculpas, de que “não coubera no espaço” …

Clarice contemplava de vez em quando o perfil escuro dos morros que começam na rua Barão da Torre e sua voz fanhosa, ucraniano-nordestina, misturava o enfado com o tom peremptório de uma certeza já indiscutível, axiomática. Insistia, intensamente, que para ela escrever era um fardo que não escolhera: ela tinha lido pouco. E, concluí eu, não estava preocupada com as interpretações ditas críticas e cerebrinas, tantas vezes partidas de um imaginário delirante e de análises enfadonhamente abstrusas. Lera pouco, dizia com simplididade: encantara-se com a frase “perto do coração selvagem”, mas não era absolutamente uma leitora assídua.

Clarice Lispector nunca, durante as décadas em que nos conhecemos, me pareceu estar presente inteiramente, ela parecia viver num clima próprio, de abstração, num mundo de buscas incessantes e só seu. Viajada, extremamente refinada, sutil, de uma allure magnética, ser riso rompia a timidez só quando se sentia entre amigos, mas ria sem maldade, de um dito popular, da imitação despretensiosa de alguém, de uma piada: aí seu sorriso sempre um tanto melancólico cedia a uma risada sonora, de menina estouvada colhida de surpresa.

Lembro-me nitidamente de uma noite sem cerimônia, improvisada por um casal de seus admiradores que morava no Leblon com uma vista deslumbrante do mar azulado à noite, os transatlânticos cruzando a barra. Todos formávamos, inconscientemente, um círculo, uma mandala, um ritual mudo em torno a ela. Elegante e altiva num vestido beige com listas negras, ela estava pouco à vontade, sempre primara por fugir do centro das atenções. Trechos de seus contos que eu lia, informalmente, lhe pareceram estranhos, provindos de outros escritores, histórias das quais emergiam elefantes redivivos em nossa imaginação naquela sala coberta de belas geometrias persas. Ninguém conseguia dizer alguma coisa durante alguns instantes de embaraço. Até que o humorista Jaguar rompeu o silêncio com a nota hilariante da noite: “Pois é, todos te homenagearam aqui, com justiça, Clarice, mas para me mandar um recado delicado você veio vestida de jaguar…”

À medida que nossa amizade se estreitava, quantas vezes ela me telefonava, de madrugada, do Leme, do seu apartamento no Rio para a minha casa em São Paulo, fazendo-me descer as escadas meio sonâmbulo e uma vez aos trombolhões! Do outro lado do fio aquela voz rouca, ainda expectante quando raiava a manhã, queria que eu participasse da sua alegria inesperada: “as ondas de um mar cerúleo (ela pronunciava cerrúleo), de uma beleza inimaginável, Leo, só vendo!…”. Depois passou, ano após ano, a interessar-se vivamente pela leitura de mãos, pela astrologia e por acontecimento inexpicáveis. Íamos de taxi, de manhã, procurar mágicas videntes e cartomantes em suas vilas modestas do Alto da Tijuca ou de Vila Isabel. Uma delas passou a ser um episódio lendário que nos deixou boquiabertos. A senhora, que nas horas de trabalho “sério” era lavadeira, assim que pôs as cartas na mesa entrou em transe. De olhos fechados, começou a dar uma série de datas, nomes e locais de minha infância e adolescência com uma precisão indescritível. Não se devia fazer perguntas durante o transe, advertira-me Clarice, e tinha sempre “uma nova, muito recomendada”, mas morava longe, em Belo Horizonte ou numa das pequenas cidades perdidas no vasto mapa de Minas.

Dentre tantas características que a marcavam: a lealdade, a generosidade, a doçura, a integridade sobressaía talvez a sua independência, que podia se transformar em ira quando sentia que seus direitos estavam sendo pisoteados. Sua cólera tanto podia abranger um editor inescrupuloso que usara indevidamente seus contos ou trabalho jornalístico abusivamente, sem remunerá-la, como a eterna incompetência profissional brasileira. Às três da manhã naquele hotel de Porto Alegre onde estávamos hospedados os convidados de um Congresso Literário que incluía escritores argentinos e uruguaios, a voz de Clarice era a do inconformismo: “Como o Sr. não consegue Coca-Cola numa cidade como Porto Alegre?! Não me interessa se a copa só abre às sete, eu trouxe minha garrafa térmica com café quente, preciso misturá-lo com Coca-Cola para me despertar e começar a escrever!”.

Foi ainda em Porto Alegre que essa mesma independência toldada como que por um amuo, uma impaciência a se acentuar depois que sofrera terríveis queimaduras. Estávamos participando de uma barulhenta reunião de alunos da Aula Magna da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nós, três ou quatro críticos e escritores, estávamos ao lado de Clarice em torno de uma mesa oval voltada para aquela plateia buliçosa de estudantes universitários, estávamos todos atentos para o momento em que terminassem as brincadeiras com aviõezinhos de papel atirados dos degraus mais altos do anfiteatro aos mais abaixo. Depois, pouco a pouco, da primeira à segunda fila, depois à terceira até os bancos lá de cima encostados às janelas. Eram talvez dois mil alunos de olhos fixos em Clarice Lispector, imantados pela sua presença que não há exagero em definir como majestosa. Era aquele silêncio feito de temor e respeito que em inglês se designa com a palavra awe. O que poderia a plateia ainda tão moça saber da revolução quântica que aquela mulher de porte indômito e lábios crispados naquele momento, trouxera à literatura tão frequentemente provinciana do Brasil? A metafísica de Clarice envolvendo com o afeto de sua atenção as pessoas deslocadas na sociedade utilitarista: os velhos, as criadas, as crianças, os bichos, as mulheres, sobretudo as de “prendas domésticas ou domesticadas”? Quantas pessoas estariam conscientes da profundidade do olhar que Clarice lançara sobre os excluídos por uma marginalização hierarquizada pelo lucro vil?

Foi um dos momentos em que captara indelevelmente aquela dimensão do sofrimento humano de forma reminiscente do testemunho de Simone Weil diante do imposto degredo humano. Uma sensibilidade que se revoltava, se assim se pode dizer, com a “inércia” da literatura. Como sua visão blakeana se retratara toda naquela frase cortada do Correio da Manhã e não encontrara o seu espaço: “Eu queria ter sido médica”, ela dissera, com um olhar dirigido às favelas que lentamente o crepúsculo fazia desaparecer da vista.

(Esta breve “evocação” da caleidoscópica Clarice Lispector dedico, di tutto cuore, ao meu amigo Wilson Bueno, talento maior contemporâneo)

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2022. “Evocação de Clarice .” In Os escritores aquém e além da literatura: Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Hilda Hilst, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 2. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.