A prosa dos poetas, oportuna e brilhante

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1984-5-26. Aguardando revisão.

Último jardineiro a cultivar as flores caboclas deste jardim brasileiro - a crônica - Carlos Drummond de Andrade, involuntariamente, mostra que a arte da crônica - a não ser em suas escalavradas e mágicas mãos - morreu.

De fato, a crônica só sobrevive pela persistência do mestre mineiro, teimoso, renitente. Como no poema famoso de Manuel Bandeira, todos os demais cronistas, a começar por ele próprio, hoje estão dormindo sob lápides silenciosas. Cecília Meireles, Clarice Lispector, Rubem Braga, aquele uirapuru da crônica captado por Dalgas Frisch, na imensidão amazônica da nossa mediocridade de “cronistas” atuais, calou-se em “royal and splendid isolation”. Os novos não se dedicam a esse gênero literário curto, incisivo. Hilda Hilst, Carlos Nejar, Mário Chamie, Roberto Piva, para ficarmos só entre os poetas. É verdade que desponta agora um mestre sempre novo, Gilberto Freyre, mas só Carlos Drummond “cronica” há décadas, podando, adubando, fazendo brotar da “última flor do Lácio, inculta e bela” esses brincos-de-princesa, essas damas-da-noite em cujos galhos as aves de lá, da Europa, não gorjeiam e são uma forma de novidade do Brasil.

Em países literariamente opulentos como a França ou a Inglaterra a topografia literária soergue-se majestosa, com castelos inigualáveis, esses Versailles e Chambords de literatura que são Flaubert, Stendhal, Proust, Mallarmé. No entanto, “França, Oropa e Bahia” se curvam diante dessa rara orquídea brasileira, esse hai-kai em prosa: a crônica. É um segredo brasileiro colocar dentro de dos palmos de texto imagens e frases breves para apresentar uma situação, delinear um sonho (é possível delinear um sonho?), criando um enxerto inadaptável a outros climas. É fusão de conto e devaneio, reflexão profunda e poema, embora sem a rima obrigatória nem a métrica apertada como um espartilho do século 19 e do tempo as saias-balão.

Duas reedições e uma coleção nova de crônicas nos infundem coragem. Manuel Bandeira - Prosa (Editora Agir), Boca de Luar e de Carlos Drummond de Andrade (Editora Record) e Problemas da Literatura Infantil, de Cecília Meireles (Editora Nova Fronteira) são lançamentos muito oportunos, pois a inteligência e a sensibilidade entre nós estão entre os itens da recessão geral e da independência nacional proibida de se desenvolver pelo FMI.

O leitor se alegra: está cansado de péssimos cronistas patrulheiros ideológicos globalmente maçantes, de cronistas que confundem graça com vulgaridade cafajeste, humorismo com banalidade. Que saudades da época anterior às crônicas que só comunicam a indigência cheia de empáfia de seus pobres autores!

Manuel Bandeira teve o grande defeito de ser democrata: como exumá-lo? Com que justificativa? Mas mesmo sua participação utópica na política, como candidato inelegível (e que não foi eleito), do Partido Socialista, e com seus versos sobranceiros a favor do brigadeiro Eduardo Gomes, faz parte de seu quixotismo e, é lógico, seu inconformismo contra fascismos e comunismos. Ora, tudo isso o votou duplamente ao esquecimento. A Agir redescobre para as gerações novas toda a pulsação comovente desse coração emotivo, passional, doente por estar-no-mundo e nada poder fazer para melhorá-lo, abrandar sua brutalidade de besta-fera, amansar os homens e as nações em sua cupidez e egoísmo cegos. A mesma tônica dos poemas de Bandeira - a melancolia misturada com uma pianola que tocasse música kitsch, numa resignação final impregnada de humorismo diante do que nos é imposto sem saída - é a tônica também da sua prosa.

Seria difícil saber onde termina a prosa, onde começa a poesia desta prosa escorreita, sem melosidade, quase staccato de tão seca, do triste poeta pernambucano, petropolitano e carioca por adoção. Sem contar a passagem por um sanatório suiço para tuberculosos que, dada a algidez da maioria da população que inventou os relógios de cuco e as contas numeradas ou “banhadas de sangue”, deve ter-lhe esmagado a última esperança na bondade e na solidariedade do próximo, made by Nestlé…

A prosa de Bandeira nos relembra surpresas: o contato intenso, por carta, com o ubíquo gênio de Mário de Andrade formou seu estilo, cinzelou seus versos. Depois, as reservas que Bandeira sempre teve para com a Semana de Arte Moderna, de 1922, em São Paulo. Tirou proveito do que ela trazia de “novidades” da Europa, mas não participava do ridículo a que os “modernistas” atiravam os poetas parnasianos, simbolistas, à métrica, à rima, por exemplo. O criador do poema delicioso “Balada das Três Mulheres do Sabonete Araxá”- uma ironia ingênua e finíssima dos anúncios publicitários - confessa seu gosto mesclado pelo classicismo e pelo vocabulário popular, quase chulo.

“A mim sempre me agradou, ao lado da poesia de vocabulário gongorianemente seleto, a que se encontra não raro na linguagem coloquial e até na do baixo calão”

Manuel Bandeira, porém, tinha em comum com a Semana de 22 trazer a poesia para o cotidiano. Assim como Carlos Drummond de Andrade chocava os bem-pensantes com versos que falavam de sopas de macarrão que esfriavam enquanto o poeta apaixonado procurava a letra y nas letrinhas que boiavam no caldo, Bandeira se atreve a declarar: “A poesia está em tudo - tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas.”

O fascínio pela palavras estranhas como “bragadoccio” e outras lhe vinha do pai, que cultivava o nonsense e só dava esmola a pedinte que soubesse, anes, recitar trovas como a docemente lírica, quase camoneana, que termina com o sexteto:

“Dois tostões tinha de meu:

Tentou-me o diabo, joguei-os.

E fiquei se ter mais brios.

Tinha uns chinelos… Vendi-os.

Tinha uns amores… Deixei-os.”

O vate opina que quando tudo não tem mais solução “o melhor é tocar um tango argentino” era um estoico, isolado em suas moradas cariocas modestas, no Curvelo, na Lapa, perto do Aeroporto Santos Dumont. E é funda a sua comoção socia com os pobres. Deles é que brotam seus versos pungentes, solidários como esclarece:

“A rua do Curvelo ensinou-me muitas coisas. (Ribeiro) Couto (seu amigo, o artista de Santos) foi avisada testemunha disso e sabe que o elemento de humildade cotidiano que começou desde então a se fazer sentir em minha poesia não resultava de nenhuma intenção modernista. Resultou, muito simplesmente, do ambiente do morro do Curvelo.” Por isso, insiste, jamais aderiu tampouco à escamoteação do vocabulário incompreensível;

“Aproveito a ocasião para jurar que jamais fiz um poema ou verso ininteligível para me fingir de profundo sob a especiosa capa de hermetismo. Só não fui claro quando não pude - fosse por deficiência ou impropriedade de linguagem, fosse por discrição.”

Sem editor para seus livros; argutíssimo crítico dos poemas de Mário de Andrade, que compara aos poemas ingleses - “essa ardência que não consome, esse afeto que não meia nunca, essa transubstanciação de sentimentos em pensamentos é uma especialidade deles” (os poemas ingleses); Manuel Bandeira, evocando o humílimo caderno de despesas da mão ou o fato de que entreviu a rainha da Inglaterra em rápida cerimônia na Abadia de Westminster é sempre uma novidade com sua elegante correção de linguagem, sua emotividade contida, originalidade de melancolia tragicômica e mansamente aceita. Até na carta-crônica ao marco da literatura brasileira que corresponde para nós, ao Ulysses de Joyce, o Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, continua irrepetível de mestria e graça:

“Amigo meu, J. Giumarães Rosa, mano-velho, muito saudar!

Me desculpe, mas só agora pude campear tempo para ler o romance de Riobaldo. Como que pudesse antes? Compromisso daqui, obrigação dacolá… Você sabe… viver é muito dificultoso…………… Eu levei dias para ler. Ainda bem que você virgulou tudo, minudente. E o caso do Diadorim, seria mesmo possível? Você é dos gerais, você é que sabe. Mas eu tive a minha decepção quando se descobriu que Diadorim era mulher - Honni soit que mal y pense, eu preferia Diadorim homem até o fim. Como você disfarçou bem! Não maldei nada.”

É um livro aparentemente leve, ameno, que esconde erudição e uma sensibilidade doída, como a música de um cravo distante, mas como é grande Mestre Bandeira!

Já Carlos Drummond de Andrade, que os leitores deste jornal têm o privilégio de saborear em datas inconfundíveis com outras, enfeixa aspectos humanos, surrealistas, engraaçados, enternecedores do Rio de Janeiro no seu dia-a-dia. O Poeta-Maior do nosso idioma é o Sancho Pança de seu próprio Dom Quixote: a crônica é o seu lado “chão” mas saboroso, a poesia é seu lado transcendental. Na prosa ele já se atrevera, num arco-íris de imaginação, a fazer chegar Greta Garbo a Belô (Belo Horizonte , para os que não são da urbs das Alterosas), sequiosa do leite das vacas mineiras e altiva a declarar na estação de trem seu famoso e final: “I want to be alone”, que procunciava suecamente “I vant”.

Aqui pululam episódios de relacionamente fervilhante da grande cidade, todos cosidos pelo mesmo retroz de uma visão caricata mas compreensiva de seus semelhantes, essa fauna surpreende e as minúcias de seus dias banais, realçados, no entanto, por sua filosofia hedonista, prática de vida.

“Último Ato” é, talvez, a crônica mais polifônica, mais plural, mais colorida. Seu ambiente de dramalhão passional encantaria Nélson Rodrigues, desde sua abertura.

“O monte de rosas avançava como se as flores, tomando corpo, caminhassem sozinhas. Rosas rubras, imagem de sangue em movimento.

Seguem-se as disputas trágicas, hilariantes: a amante deveria ter permissão para ver pela última vez o corpo do amado morto ou esse era propriedade da mulher legítima? Depois, por que o morto morrera (ou provavelmente fora morto) na quadra de desfile da Escola de Samba a que pertencia? Enquanto divagam sobre o motivo do crime, o funeral, em hora inoportuna, não atrapalharia os três dias de glória nas ruas nem os ensaios preparatórios?

“Não diz uma besteira dessas, companheiro. Carnaval sai de tarja preta, sai de vela na mão, mas sai.

… Daí a horas, o enterro. Um único som: o surdo.”

Se a perfeição parece fluir de forma fácil para Drummond (o encontro com o minúsculo inseto que visita a folha lierária noturna, no diálogo de dois seres mutuamente incompreensíveis; o dia da secretária, um dos piores para ela pelo acúmulo de trabalho, a bolinagem do patrão e outras crônicas), a suprema obra-prima não estará no momento intitulado “Eles Nunca Mais Foram Vistos?” Fala dos desaparecidos, sem pistas nem razão, do convívio com suas famílias, com seus empregos, seus encontros, com sua identidade, comentada essa evasão misteriosa da vida de forma sublime:

“Some-se porque a vida como está ficou intolerável. E procura-se outra, que não existe, mas deve ser melhor. Some-se por opção, mas some-se também porque outro interfere em nossa vida e quer mudá-la para fins que só ele sabe. Some-se porque há matadores tão espertos que não deixam rastro de corpo, mancha de sangue, botão de blusa branca ou trapo de calcinha arrancada à força, por vários motivos se some. Também por motivos insuspeitos, que jamais serão descobertos.”

Diante da mudez geral das universidades, da imprensa, dos estudantes, dos bispos, dos sindicatos, dos artistas, intelectuais e campeões de audiência na TV ou nos estádios de futebol, da mesma forma, não some sem ruído um Andrei Sakharov, a consciência do povo russo, como sumiram mlhares de latino-americanos sob tortura, fome, miseria, indiferença?

A diferença é que diante da mortalha que amortalha os que se acham vivos é só esta: os poetas não calam.

Reuso

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. (1984–5AD) 2022. “A prosa dos poetas, oportuna e brilhante .” In Poetas brasileiros contemporâneos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 4. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.