Um caminho para a liberdade. Começando pelo horror

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1980/03/08. Aguardando revisão.

“Quero dedicar este livro às pessoas humanitárias. Não tenho certeza de que sairão vitoriosas, mas é só por meio de sua luta que a vida humana, no século XX, atinge a sua expressão plenamente” Leonyd Plyushch

Como primeira experiência brutal na infância, a fome.

Junto com a fome, a guerra. Em 1941 (as tropas alemãs tinham invadido a URSS, rompendo o Tratado de Amizade e Não-Agressão assinado em 1939 por Stalin e Hitler) o menino assinado Leonyd Plyushch é mandado com a irmã para um hospital. Não estão doentes, mas a avó sabe que lá pelo menos as crianças comerão. E a morte por inanição era um fato em todo o país, tendo havido até casos isolados de canibalismo em meio à neve e ao som dos canhões distantes nas florestas russas. Depois, a subnutrição deixou suas marcas no pequeno Leonyd já adolescente, terminada a guerra e substituído Stalin por Kruchev. A mãe escreve uma carta ao novo chefe do governo, pedindo que seu filho doente seja admitido num sanatório do Estado. Fica eternamente grata quando Kruchev defere o seu pedido e o jovem é mandado para uma clínica especializada. Primeira rebelião do inquieto Leonyd: “Não me senti nem me sinto hoje grato a Kruchev: sou da opinião de que num país em que o tratamento médico é grátis, ser admitido num sanatório estatal faz parte da lógica do sistema e nada tem de extraordinário em si.”

No sanatório, os sintomas de revolta se agravam: lá as autoridades impunham às crianças e jovens doentes uma campanha diária e ativa de ateísmo, insuflado dia a dia, tenazmente. Mas como ele e a maioria de crianças provinha de meio rurais e de famílias intensamente religiosas, como era possível aceitarem a ideia sacrílega de que Deus não existe, como insistiam os médicos encarregados do anticatecismo cotidiano? Por conseguinte, as curas milagrosas que a sua avó conseguia, os ícones brilhantes no altar doméstico, com a luz das velas brilhando diante deles não passavam de mentiras, superstições e ignorância?!

Então, o jovem Leonyd Plyushch abandonaria a Fé no Partido-Único, infalível. O sexo, por exemplo, era e continua sendo um assunto completamente tabu nas escolas e nos lares da URSS, na imprensa, no cinema, na tv, no rádio. Mas o sexo existe, o rapaz que atingia a puberdade reconhece. Cria então uma Tabela de Méritos segundo o procedimento sexual dos líderes da Revolução de Outubro de 1917: Lenin, por exemplo, era casado, tinha uma esposa, mas não tinha filhos. Isso queria dizer: um ponto para Lenin, que era virtuoso. Mas o camarada Stalin tinha filhos, conforme o próprio professor ensinara no ginásio! Isso então levava à conclusão de que... “Que coisa horrível de se pensar! Não encontrei justificação para Stalin, só quando cheguei à sétima série é que consegui perdoar (Stalin) por um pecado tão formidável”. Hoje, décadas mais tarde, o homem de meia idade, Leonyd Plyushch, matemático de renome internacional, olha para trás e acrescenta:

“A hipocrisia em lidar com assuntos de sexo está intimamente ligada com a hipocrisia política da ideologia oficial (soviética) vigente.”

Mas naquela época ele era muito mais discípulo jovem da desobediência civil, como outro jovem norte-americano, Thoreau do que de Reich. Leonyd Plyushch começa a estudar pormenorizadamente a Constituição Soviética. “Para minha desgraça (comecei esses estudos aprofundados). Pois foi através da Constituição Soviética que fiquei sabendo que todo cidadão soviético tem o direito constitucional de falar livremente. Foi um direito que comecei imediatamente a pôr em prática”. Porque o abismo entre a Lei escrita e a realidade tangível se tornava para ele, cada vez mais intransponível. Desde criança o ensino oficial lhe inculcara as ideais racistas de que os brancos são intrinsecamente superiores aos orientais, mulatos, negros e judeus. Os judeus, aliás, eram dignos do maior desprezo por parte de qualquer patriota russo, pois eram quase iguais às populações das Repúblicas muçulmanas, do Uzbesquistão e de Kirghiz, por exemplo, porque esses, bem, não havia como esconder, esses não passavam de “animais”.

Em 1953 Stalin morre. Os professores de Leonyd choram, interrompem-se as aulas. Só ele não consegue derramar uma lágrima pelo admirável Condutor dos Povos que levou a Rússia a derrotar o Eixo germânico-itálico-nipônico, a Besta-Fera.

Leonyd Plyushch raciocina: se ele era um líder tão perfeito, por que Stalin nada fizera para debelar a miséria, a fome e a pobreza que todos viam em suas vidas diárias e que contrastavam chocantemente com o nível de vida luxuoso e as mordomias dos altos dirigentes do Partido? “Minha mãe como cozinheira ganhava trinta rublos por mês, insuficientes para me manter e manter a minha irmã”. Pior: à noite ele ia à cozinha comer os restos de comida deixados nos pratos pelos pensionistas das mães. Enquanto isso, em Odessa, no sul ensolarado da Rússia, nos melhores balneários, os ricos eram quase todos judeus. Não era lógico que ele passasse a odiar os judeus? E Engels não se tinha enganado ao designar o antissemitismo como mero “socialismo dos idiotas”?

Nos regimes perfeitos é um crime contra o Estado pensar, agir então é uma agravante que só pode levar à prisão. Para Leonyd Plyushch o caminho foi pior: levou-o a uma prisão sui generis, cogitada já pelos cientistas nazistas, é verdade, mas só levada à cabo integralmente pelos governos de Stalin, Kruchev e Brezhnev: o internamento numa clínica psiquiátrica, único corretivo para quem ousa não seguir a linha de pensamento e de ação ditada inalelavelmente pelo Estado todo-poderoso.

History’s Carnival (Editora Harcourt Brace Jovanovich, Nova York, 1977) é um longo e apaixonante relato do matemático célebre, Leonyd Plyushch, sobre sua longa marcha de desobediência civil até o encarceramento em uma psikhuska (clínica psiquiátrica para tratamento dos dissidentes políticos, loucos, homossexuais, esquizofrênicos, psicopatas, maníacos de democracia e outros elementos destoantes da uniformidade desejada pela justiça do Estado). Nelas os “pacientes” são submetidos, à força, a tratamentos de maior ou menor duração: injeções de alucinógenos como o haloperidol ou injeções de enxofre. Nesse livro ainda não traduzido no Brasil, o matemático relata como foi obrigado a abandonar suas pesquisas com computadores de simulações bioquímicas e só sair da psikhuska – termo que ele insiste deve tornar-se tão conhecido no mundo quanto o do Arquipélago Gulag – quatro anos depois de lavagens cerebrais quase que inimagináveis. Sua expulsão da URSS se deve aos esforços de pedidos e pressões de centenas de matemáticos dignos no Ocidente, aos esforços ingentes de sua mulher e à pressão da Anistia Internacional, com sede em Londres, sobre o governo em Moscou.

Vastamente culto, leitor de teosofia, de Goethe, de Tolstoy, de Rousseau, Plyushch confessa que, apesar de todo o horror que viveu, continua marxista. Acha que no Ocidente (ele foi mandado para o exílio na Áustria depois que saiu da clínica psiquiátrica) a liberdade também é relativa, mas reconhece que escreveu esse livro porque é seu dever ineludível testemunhar, perante o tribunal da opinião pública livre, o fato de ele, marxista, ter passado por “um inferno marxista em meu país natal, a Ucrânia e na madrasta da Ucrânia, a Rússia e outras Repúblicas da URSS.

Ao dar meu depoimento, espero combater as ações desumanas cometidas por todos (grifado pelo autor) os governos do Ocidente ou do Leste, conjuntamente apoiado (nessa luta) pela Anistia Internacional, o Comitê Internacional Contra as Repressões e ao lado dos partidos políticos honestos e pensantes, e as igrejas honestas e pensantes em todo o mundo”.

No breve prólogo à sua narração de 413 páginas na tradução norte-americana, ele explica que motivo o levou a evocar toda essa medonha Via Crucis pessoal: seu livro é mais um caminho rumo à liberdade:

“Pois estou convencido de que uma das liberdades mais importantes é a oportunidade de ver o mundo com nossos próprios olhos”.

Sem fronteiras, sem depósitos compulsórios nem vistos de saída dados por regimes que impedem a liberdade humana de ir e vir sem empecilhos. Depois, para se defender da acusação de ser um “dedo duro”, um delator, justifica o fato de ter citado pelo nome todos os canalhas, sem escrúpulos, torturadores e criminosos coniventes que conheceu: está aderindo ao princípio de Solzhenisyn, segundo o qual cada país tem o direito de conhecer o nome dos seus criminosos e informantes da KGB (a polícia secreta).

Como brotou a ideia deste livro, no original russo manuscrito do autor V karnavale istorii? Plyushch relata que foi durante uma festa quando a sombra do cárcere já se delineava nitidamente sobre a sua intransigência e seu inconformismo. Na recepção conheceu um jovem operário, Vladimir Dremlyuga, sobre quem também pairava a mesma ameaça: o trabalhador tinha sido expulso tinha sido expulso recentemente da Universidade de Leningrado porque as autoridades soviéticas o tinham considerado politicamente “indigno de confiança” e, portanto, como é costume na URSS, lhe tinha vetado arbitrariamente o acesso à Universidade, ao ensino superior. O cientista e o operário, embora pertencendo a castas diferentes, tinham muito em comum, era o que descobriam, quanto mais conversavam. Ambos pertenciam ao ainda frágil e tateante Movimento Democrático e se perguntavam mutuamente por que as pessoas criticavam o regime soviético, a ponto de, passando por cima de suas opiniões às vezes até conflitantes, se unirem no Movimento Democrático. Depois ambos foram presos. Leonyd Plyushch perdeu a pista do seu companheiro de ideias operário nos labirintos temíveis da KGB. Ele próprio ficou preso na armadilha de uma psikhuska: Nessa “clínica psiquiátrica” com aspecto de uma fortaleza, vigiada dia e noite por guardas armados postados em torres altas e distantes dos centros mais povoados, o matemático não esmoreceu durante os quatro anos tenebrosos que foi obrigado a passar ali. Nos intervalos entre uma injeção e outra, de haloperidol ou de enxofre, pensou longamente sobre a razão da coesão e da persistência desse quixotesco Movimento Democrático erguido contra a denominada República Socialista, auto arvorada em Mãe Pátria do Socialismo Marxista-Leninista. Recordou uma lenda que lera sobre o grande místico indiano, Ramakrishna, que ao ver um camponês barbaramente chicoteado, por comiseração com ele começou, com cada chibatada a sentir o sangue escorrer de suas próprias costas, tão total foi a sua identificação com o sofrimento alheio:

“Esta consciência nua, desarmada, indefesa é que impede um ser humano de se adaptar a uma sociedade que o circunda; escondendo-se por detrás de alguma ideologia matreira que oculta dos demais seres humanos o sofrimento do seu semelhante”.

Pareceria cruel ou de mau gosto a observação seguinte de Leonyd Plyushch, pois à primeira vista ela concorda plenamente com as afirmações feitas na tv brasileira pelo líder do Partido Comunista Brasileiro, o octogenário possivelmente esclerosado, amnésico ou cínico, Luiz Carlos Prestes. De fato, confirma Plyushch, os psiquiatras e a KGB têm razão: toda pessoa que ousar falar mal do regime deverá realmente estar sofrendo de alguma perturbação mental. Mas, como num filme de Buñuel, passamos do choque e do espanto à compreensão de uma imagem à seguinte:

“Uma consciência desamparada; normal, uma incapacidade para conviver com mentiras e uma ruim adaptação a uma sociedade na qual as mentiras e o mal predominam – esses são todos os sintomas de que o paciente ultrapassou as fronteiras do conformismo e dos valores filistinos (que a regem)”.

Para o leitor fora da Rússia oficialmente ateia de hoje causa pasmo saber que um intelectual, dentre muitos outros, como o cientista Leonyd Plyushch, embora mantendo-se imune ao misticismo, tenha, no entanto, estudado ioga com a profundidade de propósitos que caracteriza o autor de History’s Carnival. Na Biblioteca Lenin, em Moscou, ele teve permissão para ler os livros obre misticismo e ioga. Por que a ioga? “A ioga me ensinou realmente a respeito do inconsciente (que nunca foi discutido na psicologia pavloviana soviética), deu-me percepções-relâmpago no interior da psicologia da vida diária e me revelou uma sutil análise do homem e suas relações consigo mesmo, com os outros e com Deus. A noção de que a mente deve ser guiada e desenvolvida pareceu-me de fundamental relevância.” Daí seu interesse pelos autores de ficção científica, dos quais ele cita apenas, entre os ocidentais, Ray Bradbury os irmãos russos Arkady e Boris Strugatsky e o autor polonês Stanilaw Lem e, de forma crescente, seu amor pelas pinturas de Van Gogh. Aí Plyushch chega a uma conclusão que faz parte do Brahmanismo e que no Ocidente já Jacques Maritain apreendera há 30 anos, mas que é significativa como honestidade, vinda de um cientista que não se crê onisciente como tantos de seus colegas mais arrogantes e menos inteligentes:

“Eu compreendera finalmente que a apreensão intuitiva precede o pensamento e que todas as tentativas para se compreender a beleza apenas com o intelecto estão destinados ao fracasso.”

No quinto ano de Universidade ele estuda o materialismo histórico e a política econômica socialista “e esta me impressionou por ser totalmente anticientífica”. Mais ainda: “Nela não há postulações profundas, nem estatísticas, nem leis logicamente justificáveis.” Desilude-se com Stalin “e mais ainda com Mao Tsé-tung (como era chamado o Grande Timoneiro antes da reforma ortográfica no Ocidente para a pronúncia do seu nome) que substituem o método leninista de expor uma ideia por meio de simples silogismos que passam a ser repetidos como fórmulas hipnóticas”.

Convencido da profundidade artística do Marx ao ler seus Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844 e da vital interligação que Lenin e Marx davam ao pensamento, ao conceito e à forma pela qual eles são formulados, ele realça a beleza do estilo alegórico de Cristo e de Nietzsche e o de Marx:

“O estilo dialético de Marx tem uma flexibilidade que reflete a dialética da natureza e da sociedade. A fórmula ‘A Religião é o ópio do povo’, por exemplo, é usada pela propaganda ateia soviética para referir-se apenas à função narcotizante da religião como estupefaciente. Tolstoy chegou a uma conclusão semelhante sobre a religião da igreja instituída: referiu-se a ela como sendo um clorofórmio. Mas o ópio também constitui um anestésico. Marx desenvolveu seu conceito e disse que a religião constitui ‘o coração dentro de um mundo sem coração’, mas esta ideia nunca foi estudada na ideologia soviética.”

Aproximando-se mais e mais das teorias da não-violência (ahimsa) do hinduísmo, admirador de Vivekananda, da escola vedântica da filosofia religiosa da Índia, Plyushch começa a compreender os milagres de Cristo relatados na Bíblia. Se um professor pode dar uma aula e repartir com seus alunos um cabedal imenso de conhecimentos e continuar sem perder essas informações transmitidas aos discípulos, por que o Cristo não poderia alimentar milhares de pessoas com o milagre dos pães? Para concluir que o Cristo, Buddha e Maomé surgiram como expressões de uma nova moral, necessária para dar um significado universal à vida e restringir o egoísmo. Ora, tal nova moralidade não podia surgir do nada, portanto, tinha de ser uma negação dialética da moral prevalente anteriormente. As três grandes religiões – o Cristianismo, o Budismo e o Islamismo – têm em comum o traço de serem todas elas sistemas de tabus morais colocados como algemas nos pulsos do egoísmo humano, afirma.

De heresia em heresia, ele vai concluindo que o stalinismo não era simplesmente um culto de uma personalidade, mas o renascimento de uma autocracia baseada numa nova classe. “O Congresso na URSS declara que o país não era mais uma ditadura do proletariado, mas, ao contrário, um Estado de todo o povo. Em termos do leninismo clássico isso era um contrassenso e era necessária uma análise marxista desse novo conceito. Afinal, o Estado é uma máquina que uma classe usa para oprimir outras classes. Um Estado de todo o povo seria o equivalente à quadratura do círculo.”

Desencantado com a censura onipresente, com a corrupção, a mentira, as fraudes eleitorais, a farsa da liberdade e da democracia soviéticas, farto de ler uma imprensa amordaçada e da deificação do Grande Líder dos Povos, termo que ele usa especificamente (deification, p.44, op. cit.) Plyushch recebe as denúncias de Kruchev no 20º Congresso do Partido Comunista da União Soviética como um jato de luz em meio a uma noite de trevas densíssimas. Kruchev denunciava os crimes de Stalin e logo depois permitia que a revista literária “liberal”, em termos soviéticos, Novy mir (Novo Mundo) publicasse o relato de Solzhenitsyn Um Dia na Vida de Ivan Denissovitch (já publicado no Brasil, traduzido em português).

Kruschev, porém, não tarda a revelar-se como outra ilusão efêmera. Kruschev proíbe toda e qualquer arte que não seja otimista, proletária, obediente aos critérios filistinos do Partido e do suposto homem comum. Plyushch não se conforma:

“De modo genérico, a literatura é sempre ideológica, porque reflete as aspirações, a consciência, o subconsciente e o conceito estético de uma específica nação, classe ou grupo. No entanto, não há correlação direta entre as afiliações do escritor e aquilo sobreo que ele escreve. As observações de Marx a respeito de Balzac são bem conhecidas: sem ter minimamente a intenção de fazer tal coisa, mas graças à sua genialidade, Balzac exprimiu a psicoideologia de parte da burguesia. Como que se antecipando à burrice de seus seguidores, Marx escreveu que um poeta é como um rouxinol: não se pode pô-lo numa gaiola de ouro se quisermos que ele cante.” Pior do que tudo: Kruschev o desencantara porque se soube que ele, Kuschev, possuía 33 datchas (casas de campo ou de veraneio) luxuosas, tinha apoiado Lysenko em sua genética mentirosa e Kruschev explorara a Ucrânia, mandando todos os cereais ucranianos para a Rússia. E Plyushch começou sua descida aos Infernos: começou a expor suas ideias na imprensa clandestina, proibida pelo governo, copiada à máquina por pessoas dedicadas e denominada, em russo, samizdat (auto editada). Fala da importância que Marx dá à liberdade de imprensa, de associação, de autoexpressão , de sindicatos e agrupamentos políticos livres, conceitos contidos nos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1884 do jovem Marx. Escreve que a mais valia estava sendo apropriada agora dos operários não em benefício dos patrões, mas da nova classe rica e servida por acintosas mordomias. Exige que o salário corresponda ao tipo de trabalho desempenhado, exige o acesso a cargos de mando por meio de eleições livres; exige ordenados para ministros não superiores ao de um trabalhador comum; exige liberdade para criticar o governo e um desmoronamento gradativo do Estado como entidade coercitiva dos direitos humanos individuais e coletivos: “Minhas teses fundamentais eram as de que a democracia é essencial para que haja o socialismo; o Estado soviético funciona como um Estado capitalista abstrato; economicamente a URSS é uma sociedade de capitalismo de Estado; em sua forma atual constitui uma ideocracia que se tornou uma idolatria. Os burocratas não são os novos opressores, mas sim vassalos, um capitalista abstrato – o Estado – que divide os lucros com eles.”

A KGB capta o nome de quem escreve artigos tão irretorquíveis na imprensa proibida: é Plyushch denunciado por “amigos” informantes da infame polícia secreta russa atual. Levado para a “clínica psiquiátrica” de Dnipropetrovsk, ele tem um primeiro encontro com a médica de plantão, a dra. Ella Petrovna Kamenetskaya, que conclui o exame do “paciente” com a observação gélida: “Aqui logo vamos curar o sr. dos seus delírios políticos.”

Os enfermeiros da “clínica” são criminosos que em vez de irem para a prisão ficam na enfermaria, pagando por crimes de assalto a mão armada, roubo, câmbio negro ou vadiagem. Um deles, mais piedoso, o aconselha a obedecer a todas as ordens, porque os prisioneiros políticos são os piores alvos da diretoria da “clínica”. Administram-lhe, constatada a mais leve infração daquele regulamento totalmente lunático, injeções de haloperidol e de enxofre.

“Os tranquilizantes e tudo o que eu via a meu redor me deixavam abúlico moralmente e emocionalmente. Embora eu tentasse cuspir fora as drogas sempre que podia, elas estavam sufocando meu desejo de ler ou de pensar, e a mera ideia de política tornou-se, para mim, nauseabunda. Minha memória estava desaparecendo gradualmente e minha fala tornou-se convulsiva e abrupta. Fui dominado por autismo e misantropia e durante dias a fio ficava na cama tentando dormir... Eu estava ficando cada mais com mais medo de que a minha deterioração fosse irreversível e de que eu ajudasse meus torturadores ficando louco. Muitos pacientes sadios ao pensar que não haveria fim para este inferno se desesperaram a ponto de pensar no suicídio. Eu também estava perdendo minha vontade de viver. Consegui me segurar e conter-me somente por meio da repetição sempre e sempre: Não devo ficar amargo! Não devo esquecer! Não devo desistir!”

Os prisioneiros que recebem tal medicação perdem a consciência durante quase 15 dias, período necessário para o organismo eliminar totalmente o efeito dessas drogas alucinógenas potentíssimas. A angústia, a dor e o desespero levam muitos pacientes à loucura genuína, induzida por remédios. Ou ao suicídio: burlando a vigilância dos “enfermeiros” alguns prisioneiros quebram a vidraça das janelas com barras de ferro e com os cacos de vidro conseguem, às vezes, cortar as próprias gargantas e morrer antes que sua tentativa de suicídio seja descoberta. Outros, literalmente alucinados, comem as próprias fezes. É tudo inútil, quando não se consegue a morte: quem infringir qualquer regra banal é surrado pelos “enfermeiros”, impedido de ir ao banheiro, para só então lhe serem aplicadas as injeções de produtos químicos depressores da psique e capazes de levar os menos robustos à demência total.

Plyushch manteve íntegra a sua mente e a sua memória, com uma teimosia heroica. Sakharov, atualmente exilado em Górki e privado de todos os seus títulos honoríficos pelo Politsburo do Comitê Central do Partido Comunista da União Soviética, está diante da mesma ameaça, por dirigir um movimento dos dissidentes, a favor do cumprimento da Constituição soviética no referente aos direitos humanos da população governada e a outros direitos que a URSS assinou na capital da Finlândia, em 1975, por meio do Tratado de Helsinque: o direito de livre acesso à informação, o direito de sair de seu país e voltar a ele ou de emigrar dele para sempre, etc.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Um caminho para a liberdade. Começando pelo horror .” In Vocação para a liberdade - Escritoras e escritores contra os despotismos e os totalitarismos, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 12. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.