Beckett. A palavra como limite

Autor

Leo Gilson Ribeiro

Resumo
Jornal da Tarde, 1988/04/30. Aguardando revisão.

Uma peculiaridade da literatura contemporânea é a de se colocar no limite extremo do dizer. Com Balzac, Eça de Queiroz, Galdós, um romance narrava em sucessão cronológica o que acontecia com uma série de pessoas, todas movidas pela imaginação mágica e onipotente do autor. Com Kafka, essa literatura que se podia chamar de um relato perde todo o seu valor ilustrativo: a literatura se torna o sujeito em si mesma - uma revolução semelhante à da pintura abstrata, quando Kandinsky liberta as formas e as cores da verossimilhança com o real. Beckett reduz tudo à suas proporções mínimas: um eu onipresente conta o que lhe acontece. Os acontecimentos podem ser os mais banais possíveis, os mais naturalistamente chãos e prosaicos: o escarro, as fezes, a urina, o esperma, o vômito surgem lado a lado da paralisia do corpo, das deformações de pernas, cegueira, loucura, impotência, mudez. Se Hermann Broch em sua trilogia que ele mesmo denominava de “poli-histórica” (Die Schlafwandler, A Morte de Virgílio e Die Schldulosen) ainda celebrava a Arte e o Indivíduo como símbolos do significado social da arte, mas num contexto metafísico, Hilda Hilst formula as derradeiras perguntas em torno dos enigmas que rodeiam o ser humano o sexo, a morte, a derrelição, a humildade, o arrebato místico como um enxame de moscas atormentando Deus e eclipsando Seu rosto diante do homem.

Talvez uma das interpretações das múltiplas que se podem projetar sobre a sua criação seja a da impotência da Literatura. Impotência como arsenal guerreiro para mudar o mundo, instaurar o paraíso perdido na Terra, irmanar os homens dentro de uma estrutura social, política è econômica justa, não mais feras a se entredevorar numa concorrência mortal; mas ao contrário coletivamente todos fraternalmente juntos a construir uma sociedade humana. Diametralmente oposto aos idealistas que querem mudar as relações entre os indivíduos através do comunismo ou do socialismo, tirando a ferocidade dessas ligações em que cada um vive à custa do sangue de outrem, Beckett descrê completamente da ingenuidade leninista de que a Arte possa transformar as consciências, tornar-nos “bons”. A Arte é, sob esse aspecto, inútil. Nem tampouco a Arte tem o propósito ambicioso da Bíblia e de outros livros de sopro religioso de, sim, transformar o homem, mas por meio de castigos, recompensas, iras de um Jeová sanguinário ou por meio de frases que literalmente modificam o mundo como o apelo budista à renúncia ou a exortação de Jesus a que amemos o nosso próximo como amamos a nós mesmos.

Típica do seu ceticismo arraigado é a conversa que ele teve numa festa de intelectuais, na Inglaterra, quando um dos luminares lhe perguntou por que Mr. Beckett insistia em focalizar apenas os aspectos escabrosos, mórbidos, decadentes da miséria e do sofrimento humanos. Por acaso Mr. Beckett tinha tido uma infância infeliz? Ou sua mãe teria fugido de casa, deixando-o à mercê do desespero infantil? Beckett dignou-se a responder: Ao contrário, tive uma infância muito feliz. Nem jamais alguém de minha família nos abandonou, por qualquer motivo. Sei que aquele interlocutor deve ter me achado mais tarado e perverso ainda. No entanto, mal eu me sento no táxi para deixar aquela festa aborrecida, no vidro que separa o passageiro do motorista estão colados três apelos. Um pede que ajudemos os cegos. Outro lembra que não devemos esquecer as crianças órfãs. E o terceiro roga ajuda para os refugiados de guerra. Não é preciso procurar a miséria e o sofrimento humanos. Eles gritam alto para nós mesmo do vidro de um táxi em Londres.

Indagado se era judeu, católico ou ateu, Beckett respondeu com palavras tipicamente enigmáticas: Nenhum dos três. Quando da II Guerra Mundial, encontrando-se na sua odiada Irlanda natal, que declarara neutralidade em setembro de 1939 perante o novo conflito mundial, partiu desabaladamente para a França: Prefiro a França em guerra do que a Irlanda em paz, justificou-se. A Irlanda, como para tantos magníficos escritores irlandeses, é o bastião obtuso da Igreja Católica no que ela tem de mais retrógrado e inquisitorial. Na Irlanda, praticamente todas as obras de arte que compõem a literatura moderna e até O Banquete de Platão estão no índex de obras rigorosamente proibidas pela Censura tentacular desse país beato e inimigo da liberdade individual. Deixaram a Irlanda quase todos os seus gênios, com exceção do poeta Yeats, do dramaturgo Synge e do satírico Swift: Lawrence Sterne, o delicioso criador de Tristram Shandy e sua revolução total do romance moderno, Richard Brinsley Sheridan, autor da comédia espirituosíssima The School for Scandal, George Bernard Shaw, o grande renovador do teatro com Pigmalião, Cândida, Arms and the Man etc.; Oscar Wilde e suas comédias brilhantes como A Importância de ser Franco; James Joyce, um dos supremos reformuladores do romance e da literatura do século XX, com Ulysses e Finnegans’ Wake - a lista poderia estender-se por muitas linhas mais de exilados voluntários da sufocante e verde Irlanda.

No Brasil, ultimamente, embora com atraso de quase 30 anos - ai de nós! -, pelo menos as traduções de Beckett têm merecido um cuidado e uma sensibilidade especiais. Molloy, da Editora Nova Fronteira, excelente tradução de Leo Schlafman, traz para o leitor brasileiro um dos componentes da trilogia Molloy, Malone morre e O Inominável. Como sempre, o fascinante autor irlandês escolhe para seu campo de observação os escorraçados da sociedade, como Genet. São geralmente pessoas tornadas imóveis, decompondo-se, apodrecendo lentamente que ele deixa que falem. São pessoas comuns, banais, às vezes inescrupulosas até atingir a amoralidade e o assassínio. O início de Molloy é característico e célebre:

“Estou no quarto de minha mãe. Quem vive ali agora sou eu. Não sei como cheguei. Talvez numa ambulância, mas seguramente num veículo qualquer. Ajudaram-me. Sozinho não teria conseguido. Aquele homem, que vem todas as semanas, talvez seja graças a ele que estou aqui. Ele diz que não. Me dá um pouco de dinheiro e leva as folhas. Tantas folhas, tanto dinheiro. Sim, agora trabalho, mais ou menos como antigamente, só que já não sei trabalhar. Parece que não tem importância. Quanto a mim, gostaria de falar das coisas que me restam, despedir-me, acabar de morrer. Eles não querem. Sim, parece que eles são muitos. Mas é o mesmo que vem sempre. Fará isto mais tarde, ele diz. Bom. Já não tenho muita disposição, como se vê. Quando vem buscar as novas folhas, traz consigo as da mana anterior. Estão marcadas com sinais que não compreendo. De qualquer maneira não releio. Quando nada faço nada me dá, e me repreende. Mas não trabalho por dinheiro. Então para quê? Não sei. Francamente não sei grande coisa. A morte de minha mãe, por exemplo. Já estava morta quando cheguei? Ou só morreu mais tarde? Quero dizer morta de enterrar. Não sei, talvez não a tenham enterrado ainda. De qualquer maneira, o quarto dela é o meu agora. Durmo na sua cama. Defeco em seu penico. Tomei o seu lugar...”

Este homem que esqueceu seu próprio nome e a ortografia e que declara de si mesmo “Não funciono mais” é não a imagem abstrata, simbólica, da impotência e do lento desmoronamento biológico e mental de um agonizante. Ele é a situação do homem moderno ou da própria condição humana contemporânea: sem saída. Talvez um mero talvez a profunda, abissal interrogação filosófica de Beckett se dirija ao niilismo temperado de um humor ácido, amargo. Ele alude frequentemente a assuntos teológicos de forma espúria, brincalhona: um rato que comer uma hóstia consagrada está absorvendo o corpo do Cristo numa eucaristia blasfematória? A sua, de forma expressa prosaicamente, é uma Busca de um Deus que não existe? Sua imprecação fundamental se prende à maldição de ter nascido. Todos os seus personagens (haverá alguma exceção?) são deformados, têm pernas amputadas, são atingidos pela cegueira, pela mudez. Alguns afundam no lixo, outros recordam supostos dias felizes enquanto a areia sobe e lhes recobre a boca, impedindo-os de falar. Seu pessimismo se aproxima do de Machado de Assis, que se regozijava de não ter legado o fardo inútil da vida a outro ser gerado por ele. Em Esperando Godot, que ele escreveu em francês, os mendigos esperam por um Godot impreciso que não vem nunca. Muitos exegetas da obra beckettiana imaginam que Godot seria uma corruptela de God, que em inglês significa Deus, mas se esquecem de que no linguajar comum, de todos os dias, na Irlanda, Godda quer dizer ficar flanando, à espera de nada... Seus livros foram mandados a um semnúmero de editores, anos a fio, e sempre foram recusados. Beckett não se importava, pois, como dizia com segurança íntima:

“Nunca ter sucesso junto ao público, ser lido por muitos foram coisas que nunca significaram muito para mim. De fato, sempre me senti mais à vontade, como se estivesse em casa, com o fracasso: foi seu sopro estimulante que aspirei durante toda a minha criação, até os últimos dois anos passados, aproximadamente...”

Reservadíssimo, calado, introspectivo, tendo vivido a vida inteira modestamente fazendo traduções, ao receber em 1969 o Prêmio Nobel de Literatura, Samuel Beckett fugiu da imprensa, escondendo-se no Marrocos, esquivou-se de ir à cerimônia pomposa do recebimento da distinção em Estocolmo e recebeu os milhares de dólares indiretamente, sem discursos de agradecimento, sem fotos nos jornais, sem uma entrevista sequer.

Uma de suas raras incursões na vida real de todos os dias foi sua adesão a um grupo de resistência na França ocupada pelos alemães, a partir de 1940, tendo escapado das garras da Gestapo por pouco. Grande admirador de Vico, de Dante, de Giordano Bruno, de James Joyce, durante cujos anos finais ajudou, lendo para o autor do Ulisses já cego obras clássicas e corrigindo os erros de Joyce no manejo do grego clássico, Beckett é um dos mais lúcidos e desesperados fotógrafos da esqualidez humana. Raramente há um efêmero lampejo de esperança nestas centenas de páginas povoadas por personagens que se movem entre a morte, a loucura e a irrisão. Como se ele antecipasse a dolorosa, espinhosa pergunta de Virginia Woolf antes de suicidar-se: “Por que, para que viver?” com um conceito ainda remotamente teológico: “ter nascido é o maior pecado”.

Reuso

Citação

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Por favor, cite este trabalho como:
Gilson Ribeiro, Leo. 2024. “Beckett. A palavra como limite .” In Aspectos do Teatro Contemporâneo, edited by Fernando Rey Puente. Vol. 11. Textos Reunidos de Leo Gilson Ribeiro. https://doi.org/10.5281/zenodo.8368806.